segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

A COISA QUE RASTEJAVA PELO ERMO

escrito por Arthur Ferreira Jr.'.





Delicadamente, a grande forma rastejava pela planície negra. Era um ser quieto e peregrino, de cerca de trezentos metros de comprimento por pouco menos de cem metros de largura, e se alguém conseguisse nele subir, estaria a mais ou menos setenta metros de distância do chão.

    Suas cores eram o que mais perturbava a paisagem. Aquela terra árida, devastada, nunca vira antes tons tão berrantes e chamativos. Dir-se-ia que um verme ou uma lagarta gigante andava por um pedaço de húmus, se não fosse o trecho de húmus, na verdade, toda uma faixa de terra estéril e abandonada pelo homem.

    Mesmo assim, alguns poucos homens arriscavam-se a atravessar aquele ermo, buscando certas ervas esotéricas que cresciam pouco abaixo do solo, como tubérculos ou trufas. Como estas últimas, ninguém sabia criá-las no próprio quintal, nos poucos quintais que haviam restado no mundo. Estes aventureiros, caçadores de plantas que provocavam revelações alucinógenas, as vendiam por um preço exorbitante aos sacerdotes das Terra Castanha.

    Um desses caçadores era Dova, uma menina de pouco mais de treze anos. Seus instintos quase sempre lhe diziam onde estavam enterrados os polpos mais maduros e as raízes mais arcanas; os sacerdotes chamavam isso de Prodígio, e abençoavam sua família com moedas de latão.

    Nascia o sol e estava Dova contemplando o horizonte, sacola nas costas, cheia dos fungos vivos que infestavam aquele subterrâneo, quando enxergou a grande forma, rastejando pela planície negra. Os raios de sol davam àquela fera pachorrenta a aparência da própria aurora boreal, viva e peregrinando pelos ermos da condenação.

    Dova conteve a respiração e retirou um dos fungos de sua sacola, com uma certa cautela (é sabido que eles mordem se forem apertados com muita força), notando a admirável semelhança. E, como todo membro da espécie humana, Dova foi tentada.

    Quanto valeria aquela imensa trufa-da-aurora, vendida aos sábios da Terra Castanha?

    Duas semanas depois, no outro lado do universo, as criaturas alienígenas que haviam enviado seu mensageiro, a enorme forma colorida que vagava pelo ermo, criada à distância, a partir da vida do próprio ermo, finalmente recebiam um contato de retorno. Exultaram. Seria fascinante ouvir os relatos mentais do mensageiro, falando sobre as criaturas do terceiro planeta além da estrela amarela.

    Entretanto, tudo que ouviram foi uma série de cânticos e súplicas, preces dirigidas a deuses de que nunca haviam ouvido falar, enviadas pelos sacerdotes embriagados e alucinados da Terra Castanha ...




EDIT:
Esta pequena fábula acabou se tornando o ponto de partida, o episódio piloto da série experimental de minicontos, a SAGA DOS PRODÍGIOS.

Aproveite e Leia o Episódio Seguinte, descubra o que aconteceu com Dova!

domingo, 27 de fevereiro de 2011

LIBERTAÇÃO

Arthur Ferreira Jr.'.



How much deception can you take?
How many lies will you create?
How much longer until you break?
Your mind's about to fall
And they are breaking through
They are breaking through
They are breaking through
Now we're falling, we are losing control

Muse, MK-Ultra




O BURBURINHO VAI AUMENTANDO NA IGREJA, conforme eu vou me espremendo pela multidão. Muita gente vestida de terno e gravata, saias compridas, roupas de mangas e golas mais envergonhadas, até mesmo crianças vestidas desse modo, presas em sua ânsia de brincar naquele lugar sagrado. Já era meu costume usar gravata no dia a dia, apesar de ninguém jamais me ver assim durante a noite – a verdadeira noite, quero dizer, não essa que se sente lá fora, no sereno úmido e na lua redonda. Súbito, o alvoroço da multidão cessa, e ouço retumbar nos alto-falantes uma bateção nervosa feita com os dedos, aquele praxe para checar o áudio e ao mesmo tempo avisar aos devotos que o pastor começará seu sermão. E aquela voz. Vibrante, impetuosa, quase furiosa: “IRMÃOS!”

        E nesse momento, eu sei, com toda certeza e verdade: estou na Igreja da Libertação de Deus.

        O pastor começa a vociferar aleluias e prometer dádivas divinas aos fiéis, castigo aos impuros e, mais importante, a libertação aos aflitos. Contrariando o que eu em parte esperava – já havia estado em algumas igrejas evangélicas, embora, ao entrar ali, eu já soubesse que não se tratava exatamente uma igreja normal de crentes – o pregador não pediu dízimos nem ofertas, não exaltou a necessidade da Igreja de ser sustentada pelos frequentadores, nem ordenou a passagem de saquinho de doações, nem mesmo usou de expedientes visíveis para forçar a culpa na garganta dos presentes, que poderiam se sentir mal se não contribuíssem. Se eu esperasse um local normal de pregação, estranharia também a falta de culpa nas noções do pastor, já que, embora eles raramente falem essa palavra (lidar com a palavra culpa é algo largado mais na mão dos católicos), a culpa seja algo de que a maioria desses cristãos buscam se livrar – mas que sempre os perseguem. O pastor não falou de culpa, nem pediu dinheiro. Não fez nada disso, e pareceu aproveitar o tempo que essa omissão lhe dava para exemplificar a libertação dos angustiados: chamou a primeira pessoa a ser liberta.




VAMOS RETORNAR ALGUNS MESES. Minha filha ainda estava viva. Cátia era uma garota esperta, cheia de vida, como canta o clichê. Uma moça que eu gostava de acreditar ser inocente (não no sentido de virgindade, mas sim de pureza de caráter, de ideias), de andar nos trilhos da normalidade. Algo lá no fundo me alertava que essa e outras crenças que eu mantinha não passavam de ilusões. Como sempre, não prestei a atenção a essa sensação, até que fosse muito tarde.

        Catuxa (era o apelido que minha mulher lhe dera) começou a sair muito à noite, e voltava estranha, seu comportamento alterado. Discutia com a mãe, me xingava, e depois se trancava no quarto. Eu e minha esposa discutimos sobre a possibilidade da menina estar consumindo drogas. Pois bem, estávamos certos, mas aquilo era só a ponta do iceberg, estávamos apenas … arranhando a carne da verdade.


   

FUI ARRANCADO DO DEVANEIO pelo berro da moça no tablado onde o pastor se movimentava, microfone em punho. Ela chorava, dizia sentir algo dentro de si que a atormentava dia e noite, queixava-se de dores, calafrios, e culpava o diabo. O pastor a agarrou pelos braços, deu cinco sacudidelas bem fortes, gritando nomes estrambóticos, que meses atrás me pareceriam ridículos. Eram palavras arrastadas, diria mesmo guturais, mais surpreendentes e assustadoras que o costumeiro espetáculo do religioso manifestando o pretenso dom de línguas.

        Nada daquilo parecia forjado – pelo contrário, a sensação de verdade, de autenticidade, permeava o ambiente. Não havia nada de hipócrita no comportamento do pastor, e eu tinha total certeza disso. Nos últimos tempos, eu desenvolvera um bom juízo de caráter, estando completamente certo de que aquele homem – chamava-se Pastor Neemias – acreditava piamente em tudo que fazia. Mesmo um tanto chocado com a violência do ritual e com as vociferações de Neemias, o estranho era que eu simpatizava com ele.

        Mas não com a moça escorrendo baba e convulsionando diante do pastor; ela merecia morrer.




A MOÇA SE PARECIA MUITO com minha filha Cátia. Olhos amendoados, grandes, pele bronzeada, cabelos lisos de índia, os contornos jovens de seu corpo tornados evidentes pela roupa um tanto apertada. Minha filha, tão esperta e cheia de vida. Minha filha, escorrendo baba e convulsionando diante de mim, há cinco meses atrás.

        Eu não sabia bem o que fazer. Era uma overdose. Ela não chegara em casa muito bem, trocando pernas, dizendo que enxergava coisas pela casa, reclamava do cheiro forte do lixo que ainda não fora trocado … trancou-se no quarto depois de um breve escândalo, coisa a que já estávamos acostumados.

        O que não estávamos acostumados era ao silêncio que se formou na casa, com ela dentro do quarto: normalmente, ela colocaria o som a altos brados, ou então resmungaria coisas estranhas que eram ouvidas no corredor. Forcei a porta, agoniado, e lá estava ela, num estado muito parecido com o da moça sendo curada pelo pastor …




O PASTOR SACUDIA OS BRAÇOS da moça, e num momento julguei enxergar que as unhas do pastor haviam se tornado garras afiadas, e rasgado a carne da menina convulsa. Mas essa impressão não durou menos de quatro segundos; talvez tenha mesmo acontecido.

        A moça praticamente desmaiou e foi retirada do palanque por um assistente. Quando passou perto de mim, carregada, eu enxerguei uma marca – praticamente um desenho – um arranhão profundo em seu braço, e ao vê-lo a sensação de que a moça deveria morrer aumentou.

        Essas ideias estranhas, esses impulsos mórbidos e imperativos, me perseguiram nos últimos meses. Não sei mais o que fazer, e vim aqui na igreja buscar alívio. Será que vim ao lugar certo?




CÁTIA ESTAVA INTERNADA num hospital, recuperando-se da overdose da qual sobreviveu. Foi nessa época que ouvi falar pela primeira vez da Igreja da Libertação de Deus, pela boca de uma prima.

        Ela falava dos milagres realizados pelos Pastores Simão e Neemias, que traziam alívio a endemoniados e viciados. E haviam vários viciados naquela comunidade onde ficava a sede da igreja. Os pastores chegaram até a atrair a atenção dos traficantes da região, mas depois de uma conversa a sós – assim corria o boato – o “dono” do morro deixou de interferir com a Igreja. Talvez tenha notado que essas “curas” não afetavam seu comércio; na verdade, um número cada vez maior de consumidores surgia, e as curas também aumentavam.

        Essa última opinião, cheirando a teoria da conspiração, emitida pelo sogro de meu vizinho, não era ouvida nem considerada pelos simpatizantes e defensores da Igreja da Libertação. Meu vizinho mesmo dizia que, no mínimo, a Igreja deveria ter algum valor ou caráter, porque não via as explorações que enxergava em outras igrejas do mesmo gênero. O sogro, seu Raimundo, argumentava que nem toda igreja evangélica explorava, que a Igreja da Libertação de Deus nem mesmo era evangélica de verdade, e que achava que as pessoas que iam lá sofriam uma lavagem cerebral.

        Só essa palavrinha desmoronava todo o crédito que eu poderia dar a seu Raimundo. Todos caíam na gargalhada, na rodinha de cerveja em frente ao botequim onde eu me reunia com os amigos, e a coisa ficava por aí, seu Raimundo envergonhado e seu genro acabava balançando a cabeça numa ironia muda, virava mais um copo e todos o imitavam, e o assunto mudava para outro qualquer.

        Eu estava frequentando demais aquele botequim, porque o problema de minha filha me angustiava sobremaneira. Os amigos já evitavam tocar nessa questão, e pouco a pouco eu já ia lá sem os amigos – afogava as mágoas na cachaça, sozinho, em plena madrugada, quando a insônia e os pensamentos recorrentes não me deixavam dormir.

        Uma culpa, principalmente, não me deixava dormir. Aquilo só podia ser culpa minha, porque minha mulher era tão cuidadosa, e eu, tão distraído. Eu deveria ter sido o pulso firme dentro da casa, ser mais homem, mais pai de família, enfim. Eu estava com quarenta e um anos, mas me sentia uma criança diante daquilo tudo, isso sim.

        Queria me livrar da culpa; me libertar.




O PASTOR NEEMIAS SE RETIROU do palanque e era a vez do Pastor Simão falar. A voz de Simão era bem mais suave, mais melíflua, quase tentadora. O pastor se enchia de piedade pelos escravos do mundo, dizia. Satanás tinha este mundo preso em suas garras, repetia pela terceira vez. “Irmão,” continuava o pastor de traços magros e tez pálida, olhos muito vívidos mirando a congregação, “sim, estou falando com você que veio hoje pela primeira vez. Não sei quem você é, mas não está mais sozinho. Porque o diabo – o diabo … – o diabo o tinha em suas garras e o afastava do caminho certo, mas você conseguiu fugir dele. Está aqui agora como os outros pintinhos, aninhados pelas asas da galinha, salmo 91, versículo 4. Ficai conosco, irmão! Essa angústia que sentires a será exterminada pela espada do anjo vingador!”

        Quando se empolgava, Pastor Simão misturava os tempos verbais e as citações bíblicas, mas ninguém ali estava ligando para isso – só a possibilidade, o aceno da libertação importava. Na verdade, ninguém se importava com a espada do anjo vingador, por mais próxima que ela na verdade estivesse …

        O que eles queriam era o êxtase, a glória do Senhor, e isso, ou algum sucedâneo ainda mais viciante que o sentido em outras igrejas, era o que Simão ia lhes dar. Depois de algum tempo falando, e se enrolando, Pastor Simão começava a jorrar bênçãos sobre a assistência, falando em línguas sussurrantes, quase orientais e pseudo-semíticas, um sussurro híbrido, tão alto que era ouvido de um canto a outro da igreja.

        Eu não me refiro só à amplificação do alto-falante. Havia algo naqueles sibilos que preenchia a sala, hipnotizava, e as pessoas começavam a também gritar em línguas, dançar frenéticas, rodopiar, pôr as mãos nas cabeças umas das outras, em nome do Senhor … a princípio não parecia nada muito diferente do que eu poderia presenciar em outros lugares assim, mas se numa outra ocasião eu ria daquilo tudo, agora me sentia tocado. A glória me invadia, e queria expulsar a angústia em meu coração.
   
        Não era só isso que era diferente de outras igrejas – enquanto eu dançava ritmado em meio ao povo, vi várias pessoas se beijando compulsivamente, e pessoas que eu pensava que eram estranhas umas às outras. Outras pessoas não eram tão estranhas assim – logo percebi, quando vi duas irmãs se beijando num abraço nada fraterno.

        Mas era a glória de Deus, a libertação de Deus. Nada de culpa, nada que me faria lembrar de minha filha … oh, não, mas uma das duas irmãs se parecia tanto que aquela amiga de Cátia que me procurou um dia …



CHAMAVA-SE VANESSA. Lábios finos, um sorriso tímido, cabelos cacheados e castanhos, pálida, baixinha e de óculos, mas muito graciosa. Atenciosa. Depois de um tempo ela largou os óculos e passou a usar lentes de contato de cores estranhas. Às vezes essas lentes brilhavam no escuro, era o que eu percebia quando ela vinha pedir notícias de minha filha, vinda da rua em sua iluminação defeituosa. Parecia estar se vestindo do mesmo jeito que minha filha, mas seu comportamento não era tão preocupante.

        Eu me preocupava mais com essas vindas quase à meia-noite, o bairro estava se tornando perigoso naquelas noites, talvez fosse a proximidade da favela, mas por outro lado, aqueles assassinatos que apareciam nos noticiários não pareciam coisa dos traficantes. Os especialistas no jornal diziam ser latrocínios perpetrados por alguma gangue, e não queima de arquivo ou coisa do tipo.

        A última vez que vi Vanessa não havia muito escuro lá fora, porque a lua estava bem cheia no céu. Dava para enxergar um halo bem forte ao redor do satélite, suas cores estavam quase psicodélicas, quando as formas e o rosto da menina ficaram visíveis diante da janela do segundo andar – eu estava arrumando meu armário e quase tomei um susto quando ouvi o “psiu” da amiga de minha filha.

        “Vanessa! Que diabo é que está fazendo aí na árvore?”

        “Tio,” falou a mocinha a coisa de um metro de distância, “o senhor precisa me ajudar. Deixa eu entrar, escancara a janela pra mim.”

        Minha mulher tinha saído naquela noite, visitando uma amiga. Foi uma coisa que de imediato me causou vergonha, mas estar daquele jeito com uma jovem assim, ainda mais amiga da minha filha, me excitou um pouco. Abri a janela.

        O que se seguiu foi estranho.

        Ela pulou da árvore para dentro do quarto e caiu perfeitamente em pé, a cinco centímetros de mim; seus olhos brilhavam e aquela minha excitação que havia sido tingida de vergonha, se converteu em medo do desconhecido … até que percebi que os olhos brilhavam pela incidência da luz da lua sobre suas lágrimas: ela estivera chorando!

        “Tio, ela está morrendo … e eu não pude fazer nada pra evitar!” Desesperada (assim parecia), me abraçou com força. Não tive jeito de reagir ou de a recusar.

        A pele dela era quente, o abraço, forte. Mais forte do que deveria ser o abraço de uma menina daquele tamanho. E ela parecia tão cheia de vida … a minha excitação voltou, superando a pena e a confusão. E ela reagiu, rápida, à minha excitação. Já estava agarrando meu torso, o apertou com mais força e me beijou na boca.

        Sua saliva era quente e de um gosto bem mais forte do que qualquer boca que já beijei; sua carne, deliciosa ao toque e seu cheiro de mulher, que ficava mais forte, avassalador. Eu poderia me perder naquelas sensações. Mas algo me ocorreu e segurei-lhe os braços, impedindo que aquilo continuasse: “Que é isso? E quem está morrendo, Vanessa?”

        “Cátia. Me perdoe … eu … eu fiz besteira ...” mas balançou a cabeça como se estivesse dizendo bobagens, e consertou: “quer dizer, eu acho que ela está muito mal, eu sonhei com isso.”

        “Não quer dizer nada. Ela está no hospital, e bem. Senão eu teria sido avisado. E, Vanessa …”

        “Mas eu não suporto. E será que fiz errado em passar aqui? Preciso de apoio. E também, não consigo me concentrar com …” interrompeu o próprio discurso de novo. “Me traz um copo d'água? Não tou muito bem.”

        Assenti, meio aliviado de ter alguns instantes para avaliar a situação, enquanto descia para pegar a água. “Traga dois copos!” gritou ela do quarto enquanto eu descia as escadas.

        Peguei logo uma jarra e subi de volta, rápido; nem consegui, também, me concentrar no que estava de fato acontecendo. Era como se eu fosse um hiperativo.

        “Minha família é espírita,” ela foi explicando assim que entrei de volta no quarto, “e eles dizem que beber água fluidificada faz bem quando a gente está assim, abalada. Então vamos nos concentrar um pouquinho, eu não quero rezar, nem sei rezar direito, dizem que a água se energiza e se bebemos, faz bem, acalma, sei lá.”

        Achava aquilo uma tolice, mas concordei por talvez poder acalmá-la. Por outro lado, a situação era meio … broxante, para usar a palavra exata. Eu havia estado extremamente excitado poucos minutos atrás e agora ia “fluidificar” água junto com aquela garota.

        Ficamos um tempo parados, sentados no chão do quarto, a luz da lua caindo sobre o aposento mergulhado em penumbra. Até fechei os olhos, entrando na onda dela, para melhor me “concentrar”. Logo depois que fiz isso, ela disse, “Vamos beber, então.”

        Tomei a bebida a goles sôfregos, queria acabar logo com aquilo. Ela também bebeu o copo dela bem rápido, e não contou conversa, me agarrando de novo. Ela não saiba o que queria, afinal de contas!


        Nos abraçamos e ela ficou por cima de mim, ávida, feroz. Acabamos tirando a roupa e começamos a fazer sexo ali mesmo, no chão. Parecia tudo muito bem (eu havia esquecido completamente a existência de minha mulher e de minha filha hospitalada), o cheiro dela invadia todo o quarto, era como se fosse uma nuvem invisível me afetando, me atiçando … até que ela começou a se empolgar demais.

        Os dois sentados um diante do outro, as pernas em tesoura na penetração, ela arranhava minhas costas com uma força além de qualquer outra mulher que havia me arranhado antes. Era dolorido e as unhas pareciam mais garras que outra coisa. Além disso, eu estava começando a me sentir esquisito: me mexia dentro dela com uma velocidade anormal, como se fosse um animal selvagem, e minha vista começava a … borbulhar na minha frente, distorcendo o que eu enxergava. Os cheiros começavam a ficar mais fortes, além do cheiro dela, eu sentia o cheiro de madeira da chuva da tarde, que havia subido pelas casas há várias horas; o cheiro do perfume de minha mulher, que estava bem longe dela, mas ficou parada pondo perfume na porta do meu quarto, enquanto conversava comigo, umas duas horas antes; o cheiro de comida vindo da geladeira fechada. O cheiro da luz da lua entrando no quarto. O cheiro de minha mente estalando, o cheiro da fome de Vanessa.

        Ela me derrubou no chão, grunhindo: “Sente o sangue ferver? Sente tudo mais forte? MAIS VIVO?” Suas formas pareciam animalescas, diante de mim. O que eu enxergava era uma mulher e um bicho ao mesmo tempo, sua vagina era quente e apertada, apertava demais, ela tinha escamas por todo o corpo e seus olhos brilhavam com uma luz muito amarela, vívida. A língua (parecia bífida) vibrava para fora da boca, que se escancarava ao gritar, gemer, num ângulo impossível para uma mandíbula humana; como se ela fosse uma cobra prestes a engolir um touro.

        E eu me sentia sendo engolido.

        Logo, isso se provou literal. Ela avançou sobre meu ombro, me segurando com toda força, e eu não conseguia reagir, ainda preso sob ela e entre suas pernas. Me sentia como se estivesse drogado. E ela me mordeu o ombro; não só mordeu, mastigou e arrancou pedaços do meu ombro. Senti-me devorado vivo e desfaleci de dor, não sem antes as alucinações piorarem e eu enxergar Vanessa tornando-se uma serpente gigante, enroscando-se em volta de meu corpo, me estrangulando …

        Acordei no chão, com uma dor de cabeça incrível. Já era de manhã e a luz do sol entrava, iluminando tudo de modo tênue. A porta do quarto estava fechada e dava para enxergar a chave virada nela, deixando-a trancada. Droga, a minha mulher … onde será que ela havia dormido?

        Com a cabeça rodando, examinei meu corpo e vi que havia, sim, uma marca no ombro – mas podia ser muito bem uma marca de uma queda, eu poderia ter caído da cama … parecia uma mordida, e ao mesmo tempo não parecia. O ferimento ardia e eu sentia quase como se ele estivesse se fechando.




ME PEGUEI BEIJANDO A MOÇA que parecia Vanessa. Bom, agora eu não tinha satisfações para dar à minha mulher: ela havia me deixado, depois da morte de Cátia. Sim, porque Cátia havia, sim, morrido no hospital naquela mesma noite; e minha esposa havia esmurrado a porta do nosso quarto, tentando me avisar, mas eu juro que não ouvi nada, naquele sonho estranho com Vanessa.

        O salão havia se convertido em uma quase orgia. Ainda bem que a igreja não era do tipo de portas abertas, aceitando os fiéis ou curiosos que passam pela rua. Não, a igreja – aquela filial da igreja – ficava num antigo cinema, mas a assembleia acontecia mais para dentro, na sala de cinema propriamente dita. Não vi cenas de sexo propriamente dito, mas era tudo como uma bacanália, em vez de bacanal: uma celebração dionisíaca, vários cantavam hinos em meio à liberação.

        Então, de maneira quase orquestrada, simultânea, todos começaram a louvar a Deus num hino, pulando e erguendo os braços. O pastor Neemias reapareceu no palco e voltou a bradar em línguas … só que, desta vez – e eu já estava bastante alto, como se estivesse alcoolizado, e olha que fazia uns dois dias que não bebia – “entendi” o que ele gritava, era também um hino, mais ou menos assim (aquelas palavras ficaram gravadas a fogo em minha mente, e era só em minha própria mente que as compreendia):

        Ave, Senhor Tsathoggua, Pai da Noite!
        Glória, ó Antigo, Primogênito da Entidade Exterior!
        Salve, Aquele Que Já Era Antigo Além do Imemorável
        Quando as Estrelas Geraram o Grande Cthulhu!
        Todo Poder ao Rastejante Ancestral, sobre os lugares podres de Mu!
        Iä! Iä! G'noth-ykagga-ha!
        Iä, Iä, Tsathoggua!



        Depois que pronunciou aquelas frases (algumas das palavras eram percebidas como pura insensatez, como esse “Tsathoggua”), os fiéis foram se dispersando em fileiras mais ou menos organizadas, saindo do salão de assembleia e dirigindo-se às saídas; mas nem todos.

        Fiquei meio sem jeito com tudo aquilo (sei que andava mal da cabeça e do coração, nos últimos tempos, mas aquilo superava muito, em estranheza, o que eu esperava) e já ia dando mostras de também ir embora, sem chegar a falar de fato com ninguém, quando senti uma mão no meu ombro.



        Era o Pastor Simão.

        Ele tinha um pouco de mau hálito, disfarçado pelo uso de balas de canela (dava para perceber com nitidez). “Você parece não pertencer ao rebanho, irmão” disse o pastor.

        “É a primeira vez que venho aqui, e …”

        Ele riu. “Não era disso que eu estava falando.” Seus olhos brilhavam, intensos, meio que me sondando. Ficou alguns segundos esperando que eu disse algo, talvez, e completou: “O Pastor Neemias quer falar com você.”

        Como assim? Não estava entendendo nada, será que alguém do bar falara dos problemas com esse pastor? Só fiz assentir e Neemias fez um gesto para que o seguisse. No meio do caminho, algumas pessoas desativavam os aparelhos de som, enquanto outras, bem menos numerosas, se encaminhavam para a parte ainda mais interna da igreja.

        E foi para lá que nos dirigimos. Chegando numa sala mais ou menos ampla, embora bem menor que o salão, cheia de cadeiras e (o que era estranho para uma igreja) divãs, ou sofás de reclinar, parecidos com aqueles dos filmes romanos. Havia ali também uma espécie de púlpito.

        E, recostado sobre ele, de jeito quase displicente, o Pastor Neemias, cofiando a barba grisalha. Era um homem robusto, apesar da idade talvez já acima da casa dos cinquenta.

        “De onde veio, você, irmão?” perguntou ele, ríspido, entrando em choque com a simpatia que senti por ele, que viera ali quase disposto a contar tudo dos últimos meses, como se ali fosse um confessionário católico. Da morte da minha filha, dos sonhos estranhos, das ideias despropositadas, da fim do meu casamento, do sumiço de Vanessa. Talvez eu viera no lugar errado. Talvez não.

        “Me recomendaram esta igreja, eu ando meio angustiado, e …”

        “Corta essa conversa de crente. Dá pra sentir o seu cheiro, você achava que não?” Despegou-se do púlpito e veio avançando na minha direção.

        “Do que é que você está falando?” Apreensivo, olhei para os lados: eu, os dois pastores e mais umas três pessoas, incluindo aí duas mulheres. Vestidos do jeito padrão para um grupo de crentes, mas com uma postura corporal totalmente distinta. Diabos, um deles parecia estar mostrando os dentes para mim!


        Aquilo, mais Neemias se aproximando como se fosse fazer círculos ao meu redor, me despertou uma espécie de reação automática. Minha postura ficou um pouco mais curvada, os membros, tensos, pronto para responder com violência, se fosse necessário.

        “Isso aqui é nosso território,” sussurrou estranhamente aquele que se dizia Pastor Simão. “Não acha que fez mal ir entrando sem ter avisado antes?”

        “Não faço ideia do que estão falando,” repeti. “Para mim, isto aqui era apenas uma igreja … normal.” Esta última palavra demorou um pouco para sair; eu mesmo sabia que estava mentindo, nunca ouvira falar da Igreja da Libertação de Deus como igual às outras. Apesar de nunca ter me chegado notícia de orgias, antes.

        A cara que Neemias fazia era de raiva e confusão. E eu, se não estava totalmente assustado, estava muito apreensivo. “Que é isso de território?” perguntei, dando um passo em direção à porta por onde havia entrado.

        Mas fui impedido de me movimentar com mais liberdade, porque o homem que mostrava os dentes para mim, nos cantos da sala, avançou também e cortou minha saída. Talvez tivesse agido contra mim, se uma das mulheres não segurasse seu pulso, vindo rápida na direção dele, e falasse alto, para todos:

        “Esperem! Ele pode ser um apagado … um novato que não sabe o que é. A Garra anda provocando muitos desses, ouvi dizer.”

        “Mas o cheiro dele é diferente,” interrompeu Simão. “Tem alguma coisa diferente nele, é como se fosse um licantropo há anos!” Licantropo? Aquela palavra estranha me deixou mais confuso, onde já a houvia encontrado …?

        “Não importa” falou o homem de dentes expostos – o cheiro dele também era forte, como de um cachorro que não tomava banho; olhando também para a mulher que havia intercedido, percebi que ela tinha um cheiro insinuante e forte, e que, na verdade, a linguagem corporal de todos eles se parecia com a de animais. “Se é um novato, vai ter que se submeter a nós.”

        Submeter? Eu começava a ficar ainda mais nervoso.

        “Calma,” interveio Neemias, agora um pouco menos tenso. “Vamos lá, irmão. Faça o que veio fazer aqui, ou o que disse que veio fazer aqui. Conte seus problemas.”

        Os outros relaxaram um pouco a postura de alarma, era como se Neemias fosse o chefe deles, incondicional. Então desabafei, contei tudo que esperava contar, dos sonhos, da minha filha, de Vanessa (esquisito que quando mencionei esse nome e o incidente, alguns deles ergueram as sobrancelhas), das alucinações … nesse ponto, perguntei, “Quem é Tsathoggua?”

        “Ah, irmão!” reagiu Neemias. “Então você é digno de saber a verdade do nome de nossa igreja. É um duplo sentido, sabe … a Libertação é a Libertação de Deus, você veio aqui se libertar do próprio Deus, porque o Deus que aqui cultuamos não é esse deus fraco que se faz de forte, que os homens conhecem mal e por medo, o procuram; veneramos um deus como nós. Como eu e você. Ele é um guia, Tsathoggua. Um ser amorfo, divino, como você e eu.”

        “Como eu e você?!?”

        “Sim, mas acho que uma imagem vale mais que mil palavras. Chegue aqui, vamos até o porão. Vai ter que confiar em mim, e sabe que não tem muita escolha. Mas não te desejo mal, e você sabe disso, também. Não é?” De novo, aquela aura de simpatia e confiança, mesmo no meio de estranhas conversas e algaravias em línguas desconhecidas.



        DESCEMOS AS ESCADAS SUJAS que se escondiam atrás de uma porta discreta. Eu ia ao lado de Neemias, enquanto Simão e os outros (que disseram se chamar Teodoro, Liziane e Marluce) vinham logo atrás. Por um instante pensei que ia encontrar um tipo de calabouço iluminado por tochas, ou então um local ritualizado, cheio de velas, mas não era nada disso; no caminho alguém apertou uma tecla e luzes fluorescentes encheram o pavimento inferior. Foi então, ainda no alto da escada, que a vi.

        Aquela coisa. O cheiro dela era ainda mais forte que o dos outros, extremamente familiar e ao mesmo tempo surpreendente. Uma mulher (via-se pelo contorno dos seios, de bicos muito pontudos, e pelos quadris arredondados) coberta de escamas muito grossas, negras … e a cabeça era totalmente ofídia, com um capelo de naja, no lugar dos cabelos. Ela estava nua, acorrentada a uma das paredes daquele … deveria chamar de dormitório? Estava cheio de camas de campanha.

        Ao nos ver, o monstro começou a se debater e berrar. “A porta lá em cima está bem fechada?” perguntou Simão a uma das mulheres, que assentiu afirmativa.

        “O … o que é isso? Será que estou sonhando, de novo?”

        Neemias foi me empurrando pelas escadas e falou, na voz uma seriedade forçada contrastando com o rosto alegre e excitado: “Não a reconhece? É ela. Aquela que matou sua filha.”

        “Matou minha filha, como assim? Minha filha morreu de infecção hospitalar!”

        “Não exatamente. Sua filha só estava naquelas condições, para começar, por causa de … Vanessa.” Aquela era Vanessa? Percebi então como aquele ser se parecia com as formas do corpo da moça que eu só havia visto nua uma vez, em sonho; e que parecia não muito sonho, agora; e foi então que me lembrei de como o sonho terminou …

        “Nós sabíamos da sua história, indiretamente,” falou Simão, mais uma vez num sussurro, mais um sibilo agora, “por ela, que era parte do bando. Agora está aí, de castigo. Foi ela que apresentou a droga Garra para sua filha; foi ela que tentou reanimar sua filha no hospital, e falhou; foi ela que, depois de falhar, foi se consolar com você, e acabou fazendo de você … um aperitivo. Já fez isso antes, matou um tal Caio, melhor amigo dela … Mas ela não imaginava que ao … temperar você, acabasse te despertando.”

        “Bando? Tempero?” Então, me veio o choque. Ela havia me drogado, posto algo na água, enquanto eu me concentrava, naquela noite terrível. “Mas porque ela fez isso???” perguntei desesperado.

        “Porque ela gosta do tempero da droga na carne humana … a GARRA que desperta ALGO naqueles destinados, a Garra na carne humana … coisa que você também vai aprender a gostar,” respondeu exultante Neemias, me segurando pelo braço, “porque você é um de nós!”


        A coisa serpentina diante de nós começou a se debater quando Neemias se transformou, seu agarrão no meu braço tornando-se cinco garras me prendendo com força. Era um monstro peludo, que ao crescer rasgou o paletó de Neemias, postura curvada e cabeça como a de um gigantesco chacal ou lobo.

        “ENTÃO,” grunhiu Neemias, “JÁ SABE AGORA O QUE VOCÊ É?”



        Os sonhos. Os sonhos que eu havia tido naqueles últimos meses, me vieram como um baque sobre a cabeça. A vontade de matar era genuína, porque eu era um monstro. Não sabia se tinha mesmo estripado inocentes daquela forma que me lembrava, nos sonhos, mas era tudo vividamente real. Eu corria pelas ruas da cidade, livre, caçava e matava e devorava.

        Os outros assumiam formas animalescas menos evidentes, mas mesmo assim assustadoras: Simão exibia escamas de um mosqueado verde-amarelado, e olhos tão serpentinos quanto o de Vanessa acorrentada; Teodoro tinha os braços muito peludos e dentes muito afiados, e estava barbado como não era poucos minutos antes; Marluce exibia olhos azuis, de um azul que não era humano, e garras como as de um gato; enquanto Liziane era de todos a mais assustadora, com a pele viscosa coberta de ventosas, os braços flexíveis como tentáculos.

        E o mais estranho, para mim, era que eu sentia muito medo, mas o medo não me dominava. Era como se eu já estivesse acostumado com aquilo – e com todas aquelas metamorfoses, eu seria o único humano ali no porão … se não fosse a reação que me possuiu: minha pele coçava como se estivesse alérgica a alguma coisa no ar, e aquilo piorou chegando a arder, a queimar; o tempo parecia parar enquanto aqueles animais me rodeavam e eu me aproximava da acorrentada, presa a grilhões de cor muito prateada.

        Então vieram as alucinações – os cheiros muito mais fortes, a umidade do ar parecia mais espessa, e se mexer, reagindo aos movimentos do bando de monstros; haviam zumbidos, silvos e estalos por toda parte; um ruído surdo preenchia minha cabeça … e naquele instante interminável, vi a luminescência, aquele halo hediondo e psicodélico que havia enxergado na lua, na noite em que Vanessa me havia visitado.

        O halo envolvia as correntes de prata que prendiam a moça, monstro, parente, fêmea, consorte, estranha e familiar, favorita e odiada, prostituta e santa, deusa monstro. E eu sabia que as devia tocar: para tocar na pele da minha deusa e amante, devia estraçalhar os grilhões … era a mensagem que me vinha à mente, tão verdadeira quanto o cântico em línguas, declamado por Neemias.

        “É A SUA CHANCE, “bradou Neemias, “PODE SE VINGAR DELA, VOU TER O MAIOR PRAZER DE ASSISTIR, É UMA PUTA TRAIDORA.”

        “BANDO … PORRA NENHUMA!!!” Num só movimento, agarrei as correntes de prata e as puxei, quebrando o pino que as prendia na parede, e sacudi aquele excesso de grilhões sobre o rosto – não, o focinho – de Neemias. Meus músculos pulsavam com uma sensação de poder nunca antes sentida, e punir o pastor só aumentava o prazer daquela sensação de poder. Eu não tinha mais nada a perder na vida, a não ser Vanessa.

        “Como assim ele é imune à prata???” gritou apavorada, aquela coisa cheia de ventosas e tentáculos. Tinha muita razão para estar assustada; eu mesmo me aterrorizava ao perceber que minha pele era agora um couro espesso, cheio de escamas e espinhos, rasgando minha camisa.

        Os três mais fracos estavam como que paralisados frente à cena. A prata, me veio a ideia no fundo da mente. Estilhacei o anel do braço direito de Vanessa, lhe dando mais liberdade de ação e a libertando, também, da dor da prata. Enquanto eu vibrava novamente o emaranhado de correntes na pele do lobisomem – sim, era isto que ele era, sem a menor dúvida, agora – dei tempo suficiente para que Vanessa superasse, um esforço tremendo, a dor e quebrasse o anel de prata do outro pulso. Coisa que nunca mais conseguirá repetir na vida.

        A cabeça animalesca de Neemias estava banhada de sangue e suas feridas eram graves. Ele ainda tentou me atingir com suas garras, mas consegui me esquivar da maioria dos golpes e só um deles me acertou – e o ferimento pouco me atrapalhou, começando a sarar quase que no mesmo instante.

        Aproveitei um momento em que Neemias se contorceu de dor, e o instinto de fuga assumiu: empurrei Vanessa na direção da escada, e corremos. Eles não ousaram nos seguir, os três devem ter tentado cuidar de seu … líder, pastor, o que seja. E que o tal deus amorfo deles se fodesse.

        Quando ultrapassamos a porta que separava o porão do fundo da igreja no nível térreo, consegui ouvir a voz sussurrante de Simão, “É o Dragão … o monstro que devora a lua ... estamos acabados …”

        Na câmara onde haviam aqueles divãs todos se encontrava também um grande espelho na parede, como numa sala de dança ou ensaio teatral. E eu me vi. Um monstro reptiliano, de garras malignas empunhando correntes de prata, cheio de escamas e espinhos de cor azulada, a cabeça deformada, draconiana, os olhos de uma cor mortal e prateada.

        As formas de Vanessa começaram a suavizar e seu rosto assumiu as feições femininas que eu conhecia, “Rápido! Não temos tempo pra ficar se olhando no espelho, tio!” Puxou o lençol que cobria um dos sofás e cobriu sua nudez. Minha vontade era de a possuir ali, de novo, como naquela noite, dessa vez, seria tão mais pleno …

        Os olhos de Vanessa se estreitaram e percebi a serpente nela se manifestando, sibilando: “NÃO. AGORA NÃO É O MOMENTO. Vamos sair daqui,” sua voz foi voltando ao normal.

        Naquela noite corremos pelas ruas como dois malucos perdidos num labirinto, depois de ter quebrado uma janela dos fundos da igreja. Em um certo momento paramos e ficamos abraçados como se fôssemos dois indigentes na noite fria e enluarada, marido e mulher, suados e ofegantes, ela muito pior que eu, as minhas roupas rasgadas e ela envolta num cobertor.

        Passou um anônimo na rua, sentiu pena, meteu a mão no bolso e foi tirando umas moedas, dizendo, “Tá precisando de uma pratinha pra alimentar sua esposa, amigão?”

        “Prata?" respondi, finalmente rindo depois de tanto tempo, assustando o transeunte. “Não, pode deixar … já tenho toda a prata que preciso ...”

        No meu sorriso brilhava a luz da lua; nos meus olhos prateados, a certeza da libertação.



sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

O DESAFIO DO ALÉM - Postagem Final - ROBERT E. HOWARD e FRANK BELKNAP LONG

História Colaborativa escrita por C. L. MooreA. MerrittH. P. LovecraftRobert E. Howard e Frank Belknap Long
Traduzida por Arthur Ferreira Jr.'.




Quarta e Quinta Partes:


[Robert E. Howard]


Deste último intervalo sem sentidos, emergiu com total entendimento da situação. Sua mente estava aprisionada no corpo de um aterrador nativo de um planeta alienígena, enquanto, em algum lugar no outro lado do universo, seu próprio corpo hospedava a personalidade do monstro.


Lutou contra um horror irracional. Julgando a partir de uma perspectiva cósmica, por quê sua metamorfose deveria horrificá-lo? A vida e a consciência eram as únicas realidades no universo. A forma não era importante. Seu corpo atual era horrendo apenas de acordo com os padrões terrestres. O medo e a repulsa se afogaram na empolgação da titânica aventura.


O que era seu corpo anterior senão um manto, que de todo modo seria descartado após a morte? Ele não tinha ilusões sentimentais quanto à vida da qual havia sido exilado. E o que esta o dera, senão esforços, pobreza, frustrações e repressões contínuas? Se aquela nova vida diante dele não oferecia mais, pelo menos não oferecia menos. E a intuição o dizia que ofereceria mais – muito mais.


Com a honestidade possível apenas quando a vida é despida até seu fundamento mais cru, percebeu que só lembrava com prazer das delícias físicas de sua vida anterior. Porém, há muito havia exaurido as possibilidades físicas contidas naquele corpo terráqueo. A Terra não mais oferecia emoções novas. Mas, na posse daquele novo corpo alienígena, sentia a promessa de alegrias estranhas e exóticas.


Uma exultação bastarda crescia nele. Era um homem sem mundo, livre de todas as convenções e inibições da Terra, ou deste estranho planeta, livre de todas as restrições artificiais do universo. Ele era uma divindade! Divertia-se macabramente, quando pensava em seu próprio corpo, movendo-se pela sociedade e transações da Terra, enquanto isso um monstro alienígena observava das janelas que eram os olhos de George Campbell, fixos nas pessoas que dele fugiriam, se soubessem a verdade.


Que ele andasse pela terra matando e destruindo como pudesse, a Terra e suas espécies não mais significavam coisa alguma para George Campbell. Ali, ele seria mais uma de bilhões de não-entidades, congeladas por um amontoado acúmulo de convenções, leis e costumes, fadadas a viver e morrer em seus sórdidos nichos. Porém, num único movimento às cegas, ele havia colocado-se além do lugar-comum. Aquilo não era morte, era renascimento – o nascimento de uma mentalidade madura, com uma nova liberdade que fazia pouco da catividade física em Yekub.


Ele começou. Yekub! Era o nome daquele planeta, mas como ele sabia? Então soube, já que sabia o nome daquele corpo que ocupava – Tothe. A memória, **grooved nas profundezas do cérebro de Tothe, estava remexendo-se dentro dele – sombras do conhecimento que tinha Tothe. Gravado lá no fundo dos tecidos físicos do cérebro, falavam tênues, como instintos implantados, na mente de George Campbell; e sua consciência humana os arrebatou e traduziu, para mostrar-lhe não só a segurança e a liberdade, mas o poder que sua alma, reduzida aos mais primitivos impulsos, ansiava. Não como um escravo ele habitaria em Yekub, mas como um rei! Da mesma forma que os antigos bárbaros haviam se sentado nos tronos de impérios arrogantes.


Pela primeira vez, voltou sua atenção ao que o cercava. Ele ainda continuava sobre a coisa parecida com um sofá, no meio daquele aposento fantástico, e o homem centípede diante dele, segurando o objeto de metal polido, e batendo seus espículos do pescoço. Era dessa forma que falava com ele, sabia Campbell, e o que ele dizia podia ser suavemente compreendido, através dos processos mentais implantados de Tothe, da mesma forma que ele sabia que a criatura era Yukth, senhor supremo da ciência.


Mas Campbell não deu atenção a isso, pois havia decidido seu plano desesperado, um plano tão alienígena aos costumes de Yekub, que estava além da compreensão de Yukth, e o pegou totalmente de surpresa. Yukth, como Campbell, viu a lasca de mental de ponta afiada numa mesa próxima, mas para Yukth, era apenas um implemento científico. Nem mesmo sabia que poderia ser usada como uma arma. A mente terrena de Campbell suplementava o conhecimento e a ação que se seguiram, impelindo o corpo de Tothe a fazer movimentos que nenhum homem de Yekub jamais havia feito antes.


Campbell agarrou a lasca afiada e golpeou, rasgando para cima, com selvageria. Yukth ergueu-se e cambaleou, suas entranhas espalhando-se pelo chão. Num só instante, Campbell atingia a porta. Sua velocidade era impressionante, exultante, a primeira realização da promessa de novas sensações físicas.


Conforme corria, totalmente guiado pelo conhecimento instintivo implantado nos reflexos físicos de Tothe, como se estivesse alojando uma consciência separada em suas pernas, o corpo físico de Tothe o estava levando por uma rota que havia sido passada dez mil vezes, quando animado pela mente do alienígena.


Descendo por um corredor espiralado ele correu, subiu uma escada distorcida, passou por uma porta entalhada, e os mesmos instintos que o haviam trazido aqui disseram-no que ele havia encontrado o que procurava. Estava num aposento circular, de teto de domo, que luzia azulado e lívido. Uma bizarra estrutura se erguia no meio do chão da cor do arco-íris, pavimento por pavimento, cada um de uma cor vívida e separada. O último pavimento era um cone púrpura, de cujo ápice uma névoa azul e enfumaçada subia para uma esfera que se erguia em pleno ar – uma esfera que luzia como marfim translúcido.


Aquilo, diziam a Campbell as memórias mais profundamente inculcadas de Tothe, era o deus de Yekub, embora a razão pela qual o povo de Yekub o temia e venerava havia sido esquecida há um milhão de anos. Um verme-sacerdote se impunha entre ele e o altar que nenhuma mão de carne jamais havia tocado. O fato de que ele podia ser tocado era uma blasfêmia que jamais ocorrera a um homem de Yekub. O verme-sacerdote ficou paralisado de horror, até que a lasca de Campbell arrancasse sua vida.


Com suas patas de centípede, Campbell escalou o altar pavimentado, ignorando suas súbitas vibrações, ignorando a mudança que ocorria na esfera flutuante, ignorando a fumaça que agora ondulava em nuvens azuis. Ele estava embriagado com a sensação de poder. Ele não temia as superstições de Yekub não mais do que temia as da Terra. Com aquele globo nas mãos, ele seria o rei de Yekub. Os homens-verme não ousariam negar nada a ele, enquanto ele mantinha seu deus como refém. Ele estendeu a mão para a bola – que agora não mais tinha tons de marfim, e sim era vermelha como sangue …



[Frank Belknap Long]


Saindo da barraca para a pálida noite de agosto, andava o corpo de George Campbell. Movia-se de um jeito lento e vacilante entre os corpos das árvores enormes, caminhando por uma trilha da floresta polvilhada de folhas de pinheiros, de doce odor. O ar estava picante e frio. O céu era uma taça invertida de prata congelada, manchada de poeira estelar, e ao norte longínquo, a aurora boreal derramava fluxos de fogo.


A cabeça do homem que caminhava estava derrubada de modo horrendo, virada para o lado. Dos cantos de sua boca frouxa, escorriam fios espessos de espuma cor de âmbar, que se agitava na brisa noturna. Ele andou ereto antes, como um homem deveria andar, mas gradualmente, conforme se distanciava da barraca, sua postura se alterava. Seu torso começava, quase imperceptivelmente, a inclinar-se, e seus membros, a encolher.


Num mundo muito distante, no espaço exterior, a criatura centípede que era George Campbell segurou em seu seio um deus cujos adornos eram vermelhos como sangue, e correu, tremendo como um inseto, por um salão de cores do arco-íris, passando depois por portais massivos, direto pra a brilho forte dos sóis alienígenas.


Rondando entre as árvores da Terra, numa atitude que sugeria o tropegar bisonho de um licantropo, o corpo de George Campbell cumpria um destino sem mente. Dedos longos, de garras nas pontas, puxavam folhas odoríferas do tapete que cobria a floresta, conforme movia-se em direção a uma ampla expansão de água cintilante.


No mundo distante e extragalático do povo verme, George Campbell movia-se entre blocos ciclópicos de cantaria negra, descendo por longas avenidas, florida de samambaias, erguendo nas patas o deus vermelho e globular.


Foi ouvido um grosseiro berro de animal num arbusto próximo ao lago cintilante da Terra, onde a mente de uma criatura verme habitava um corpo onde o instinto imperava. Os dentes humanos se enfiaram pela suave pelagem animal, rasgaram a negra carne animal. Uma pequena raposa prateada enfiou suas presas num pulso humano e peludo, buscando uma frenética retaliação, e agitava-se aterrorizada com o derramar do sangue. Lentamente, o corpo de George Campbell levantou-se, sua boca suja de sangue fresco. Com os membros superiores gingando de modo esquisito, moveu-se na direção das águas do lago.


Conforme a criatura mutável que era George Campbell rastejava entre os blocos negros de pedra, milhares de formas de vermes prostravam-se na poeira cintilante diante dele. Um poder divino parecia emanar de seu corpo trêmulo, enquanto ele movia-se num ritmo lento e ondulante, em direção ao trono de um império espiritual que transcendia as soberanias da Terra.


Um caçador, rondando esgotado pela densa floresta na Terra, próximo à barraca onde a criatura verme havia habitado o corpo de George Campbell, veio às águas cintilantes do lago, e discerniu algo escuro, flutuando ali. Havia estado perdido na floresta a noite toda, e a fadiga o envolvia como um manto de chumbo sob a luz pálida da manhã.


Porém, aquela forma era um desafio que ele não podia ignorar. Movendo-se até a borda da água, ajoelhou-se no barro mole, e esticou-se até a coisa que flutuava. Lentamente, a puxou até a praia.


Muito distante no espaço experior, a criatura verme empunhando o deus vermelho e brilhante ascendeu a um trono que brlhava como a constelação Cassiopeia, sob uma abóboda alienígena de hipersóis. A poderosa divindade que ele erguia energizava seu corpo de verme, consumindo no fogo branco de uma espiritualidade supramundana, tudo que lhe restava de animal.


Na Terra, o caçador contemplou, num horror impronunciável, a face escurecida e peluda do homem afogado. Era uma face bestial, de feições repulsivamente antropoides, e de sua boca deformada e contorcida, escorria um icor negro.


“Aquele que buscou seu corpo pelos abismos do Tempo ocupará um corpo que não lhe obedecerá,” disse o deus vermelho. “Nenhuma cria de Yekub pode controlar o corpo de um humano.”


“Por toda a Terra, as criaturas vivas rasgam umas às outras, e banqueteiam-se, numa indizível crueldade, de seus próximos e parentes. Nenhuma mente de verme pode controlar um corpo humano bestial, quando este anseia a selvageria. Apenas mentes humanas, instintivamente condicionadas, no decorrer de dezenas de milhares de gerações, podem governar os instintos humanos. Seu corpo irá destruir a si mesmo, na Terra, buscando o sangue de seus parentes animais, buscando a água fria onde podia rolar com prazer. Buscará a inevitável destruição, pois o instinto da morte é mais poderoso nele que os instintos da vida, e destruir-se-á, buscando retornar ao barro de onde proveio.”


Assim falou o globuloso e vermelho deus de Yekub, vindo de um segmento distante do continuum do espaço-tempo, dirigindo-se a George Campbell, enquanto este último, com todos os desejos humanos purgados, sentava-se no trono e governou então um império de vermes, mais sábia, gentil e benevolamente que os homens da Terra podem algum dia governar um império de homens.







O original em inglês pode ser visto aqui:
http://en.wikisource.org/wiki/The_Challenge_from_Beyond


A primeira e segunda partes do conto, em português, podem ser encontradas nesta postagem:
http://insanemission.blogspot.com/2011/02/o-desafio-do-alem.html
A terceira parte, em português, escrita por HP Lovecraft, encontra-se aqui:

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

O PRINCÍPIO LICANTRÓPICO

escrito por ARTHUR FERREIRA JR.'.






They'll laugh as they watch us fall
The lucky don't care at all
No chance for fate
It's unnatural selection
I want the truth!

Muse, Unnatural Selection



UMA CELA CHEIA DE MULHERES e Aline continuava não se sentindo bem. Acontecera alguma coisa de madrugada, e ela não sabia muito bem porque fui presa, mas suas roupas estavam rasgadas, sujas de sangue e lhe parecia que quase tivera uma overdose de GARRA, ontem.

Começou a choramingar, "ai, mãe, se eu sair daqui, por favor me leva pra rehab, pelamordedeus ... prometo nunca mais ..." só para ter o desespero interrompido por um chute na boca.


Chute de uma das companheiras de cela, uma loira de calça jeans rasgadas e top laranja, ria descaradamente e batia meio nervosa os pés dentro das enormes botas negras, gritando, "Ahh, calaboca, calaboca, sua filhadaputa patricinha!!! Mas que merda, não se tem nem sossego dentro da cadeia?!?" As outras, mais no fundo da cela, riam junto.


Uma mulata de dreadlocks se agachou perto de Aline, "Tá mal, hein, filha. Que foi que cê aprontou, hein? Tá com o quê subindo na cabeça? É a Belknap-14?" Aquele jeito, mistura de carinho e sarcasmo, irritou Aline ainda mais profundamente que o chute da loira biscate. Não era mais efeito da droga, era uma raiva, uma fúria que consome. Aline olhou, com olhos vermelhos e injetados, direto na alma da presidiária, que se assustou com aquilo, e não teve tempo de reagir quando levou um murro fortissimo, que a empurrou direto pro fundo da cela, em cima das outras presas, alavancando o corpo de Aline para cima e deixando-a em pé, disposta a aguentar qualquer briga.


"Porra é essa, sua biscate!" gritou a loira nervosa, "Só quem bate aqui sou eu!" E partiu pra cima da novata com uma navalha que guardava escondida na bota.


O risco sangrento da navalha cortou o rosto de Aline, mas ela mal sentiu, tão furiosamente indignada se sentia. Revidou com outro murro muito forte, muito mais forte do que a forma física diminuta da garota podia supor. As mulheres do fundo da cela podiam jurar que os músculos da novata começavam a aumentar, seus braços mais definidos e era como se um cheiro de bicho houvesse invadido a carceragem.


A navalha da loira caiu, tinindo, no chão fora da cela, e Aline aproveitou a surpresa para agarrar a cabeça da loira com as duas mãos. Duas unhas afiadas, praticamente garras, de seus polegares, feriam o rosto da loira, já arrebentado pelo murro, um hematoma que quase a deformava. Aline segurou firme e bateu uma, duas, três vezes, a cabeça da loira nas grades, até ouvir um barulho de algo se quebrando.


A novata soltou a rival, o corpo da loira escorregou pelo chão deixando o sangue marcando o metal das grades, se não estivesse morta, estava quase. Aline virou-se para as outras e berrou, mal se controlando: "Se alguém tentar uma gracinha, vai ter o mesmo fim dela! O mesmo!" Aline sentia um instinto irracional também berrando dentro dela, algo que a impelia a avançar para cima das mulheres apavoradas ... e morder uma ou duas delas nessa manobra.


Meio preocupante, mas Aline não tinha tempo de pensar nisso. Só o agora importava.


As companheiras de cela haviam sido domadas, mas logo os guardas viriam checar o que era aquela algazarra, e talvez houvesse um cadáver ali para ser encontrado ... O mundo girava ao redor de Aline e tudo parecia devagar ... e ela sabia que devia reagir, devia esconder o cadáver, não, devia DESFAZER o cadáver, sentia a vida ao redor de si, nas companheiras acuadas no fundo da cela, nos insetos rastejando nas paredes, nos pássaros voando fora da cadeia, em si mesmo essa vida pulsava muito com muito mais força, e sentia a vida se esvaindo da loira ferida, jogada no chão.


Aline sabia que dava para ... ajeitar as coisas ... não por piedade, mas por sobrevivência própria. Se a fuga desse errado, não haveria uma acusação de assassinato ... os instintos irracionais se amoldavam em sua mente consciente e às suas prioridades e planejamentos humanos. Sim, ajeitar as coisas.


A garota se abaixou e seus cachos caíram sobre o rosto da loira. Aline enfiou as garras ainda sujas de sangue nos ombros da moribunda, e as companheira de cela não ousavam se aproximar, impressionadas com a linguagem corporal da agressora. "Vamos, sua puta," sussurrou, quase grunhindo, perto da boca da loira, "acorde pra dizer que só levou uma surra, vamos ..."


A cela se encheu de um cheiro de suor. Uma força atroz e irresistível começou a fluir de Aline, e ela não sabia bem o que estava fazendo, mas sabia que tinha de fazer. A força da vida fluía dela para a loira, que abriu os olhos assustada, acordada de uma inconsciência próxima da morte. O que enxergou foi pouco melhor que a morte: os cachos da novata sobre ela, emoldurando um rosto selvagem, de olhos amarelados, as maçãs do rosto cobertas de pelos castanhos, fundindo-se com as costeletas de Aline, tudo isso realçando de modo terrível e ao mesmo tempo sedutor uma boca carnuda, pingando saliva, e cheia de dentes afiados, liberando um hálito forte, salgado, primal, que a loira sentia entrar dentro de si e curar-lhe as feridas na cabeça.


Não muito bem, é claro. Era um traumatismo craniano e a própria força da vida se impunha para curá-lo, mas sem nenhum refinamento. Aline soltou a loira, que ficou balbuciando encostada nas grades sujas de sangue, e levantou-se com firmeza. Quando se virou para as presas, seu cabelo cacheado rodopiando no ar, as feições bestiais já haviam suavizado e mais uma vez parecia apenas uma garota de dezoito anos, presa por ter feito alguma bobagem na noite.


Os guardas vinham vindo, dava para ouvir os passos no corredor, e Aline conseguiu ainda pensar numa aula de filosofia que teve o ano passado. É incrível como lembranças são irracionais, chegam na hora que querem. Aline se lembrou do Princípio Antrópico; que dizia que o universo havia sido criado para o homem, porque, se as constantes da física mudassem um pouco que fossem, as moléculas orgânicas nunca poderiam ter se formado, e nenhuma humanidade existiria para observar o universo.


E agora, Aline sabia que não era só isso: tudo conspirava para que ela vivesse e se desse bem, observasse a aproveitasse o máximo possível do universo. Ela sentia a própria vida e sabia que a vida não se importava com esses humanos miseráveis, mas sim com ela ... e quem sabe com outros como o que ela havia se transformado pela primeira vez, naquela madrugada anterior. Não havia sido por acaso, a droga só a havia despertado, por dentro ela era forte, sempre soube. 


Era a superioridade dos mais fortes. A sobrevivência dos mais aptos.


O Princípio Licantrópico.






ATENÇÃO: este miniconto acontece logo após http://insanemission.blogspot.com/2010/12/ela-so-queria-dancar.html o conto Ela Só Queria Dançar.