terça-feira, 28 de setembro de 2010

O FAROL NA ESCURIDÃO




por Arthur Ferreira Jr .'.



As sombras da noite sem dúvida despertam a imaginação humana, e existem aqueles que, mesmo afirmando serem crescidos, ainda sentem calafrios diante do escuro da noite. E se há uma noite que todos tememos, pois ela é ainda mais inescapável que o ciclo alternante da noite mundana, é a noite da mente – o desconhecido, o inconsciente, os sonhos rapidamente esquecidos durante o café da manhã, mas que não deixam de distorcer o ânimo dos sonhadores, bem de leve, durante o resto do não tão abençoado dia.

        Dessa noite da mente, fugimos toda vez que adormecemos, ficando às margens de seu abismo estranhamente familiar. Nossos sonhos se dão nessa zona liminar, nessa região de obscuridade psíquica. Às vezes sonhos iluminados reluzem em nossa mente, trazendo ideias, epifanias, alívios – e são esses sonhos, essas tochas solitárias em meio à zona uivante que cerca o abismo da noite da mente, que nos impelem a cada período de vinte e quatro horas a buscar o sono, quando um atordoamento insidioso teima – e consegue – nos dominar.

        Somos como mariposas atraídas por esses fachos de luz na zona limítrofe – centelhas que nos revigoram para o dia seguinte, mas que, infelizmente, também acabam nos expondo aos perigos do abismo além do sonhar. Existem sendas e caminhos, nessa zona pouco compreendida, que desembocam como rios do além, no caos oceânico desse abismo.

        E muito embora o medo desse abismo esteja sempre presente e oculto em nossa espécie humana, existem aqueles que sentem um fascínio quase mórbido pela obscuridade que se move dentro de nós … da mesma forma que o restante da humanidade é atraída pelos fogos-fátuos de inspiração que brilham nas zonas oníricas mais próximas da consciência.

        Eu sou um desses fascinados, e o preço que pago por isso é grande.





Meu nome, antes que perguntem, é Virgílio de Almeida. Nome vulgar, admito, mas acredito que eu mesmo esteja pouco perto de ser vulgar, dadas as coisas que instintivamente sei e que outros se esforçam anos para descobrir.

        Nasci numa cidade-satélite de uma metrópole bem maior. Embora oficialmente pertencente ao município da grande cidade, quase um subúrbio, um parasita urbano inchado, de casinhas coladas umas às outras, *** era de caráter bastante distinto da urbe maior a qual estava agarrada. Soturna, de ruas e casas manchadas pela poluição de uma refinaria próxima, cheia de jardins malcuidados, árvores tomadas de trepadeiras, chácaras em mau estado e muros cobertos de hera – a região era uma verdadeira erva daninha, se comparada à vivacidade da quase capital.

        Irônico que me refira assim nesses termos à minha terra natal, quando na verdade me sinto esquisitamente confortável dentro dela. Na verdade, uma fobia mal explicada me assola quando saio de ***, sendo que um semestre de estudos fora de seus limites, há cerca de um ano e pouco, me custou uma rotina quase insuportável de pesadelos, nervosismo e ansiedade beirando a paranoia.

        Pode-se dizer então que, da mesma forma que *** drena a vida da cidade maior a que é pegada, eu dependo da estranha vidinha de ***, especialmente sua vida noturna – em mais de um sentido.

        Carente de bares e botequins onde jogar conversa fora, os habitantes de *** desenvolveram o hábito e costume de fazer serões nos jardins de suas casas, muitas vezes jogando cartas e bebericando vinhos. Nesses serões escutei muitas histórias estranhas, e com o passar do tempo, concatenando fatos a epifanias internas, observações a reflexões, pude notar um grande padrão que se impõe nas conversas noturnas de *** – padrão feito de sonhos. Era costume comentar que sonhos haviam tido na noite anterior, ou mesmo durante a sesta (parece que o número de pessoas que podiam se dar ao luxo da sesta, especialmente as que trabalham em casa, é desproporcionalmente alto em ***). Ora, passar a adolescência ouvindo relatos dos sonhos alheios me chamou imensamente a atenção – apesar dos meus conterrâneos, chega a ser estranho, na verdade darem pouquíssima importância aos sonhos. Para eles, sonhos eram moeda banal de troca, de conversação quase fática, que trocavam tão inconscientemente quanto todos nós pomos num reflexo a mão no bolso quando compramos algo.

        Essa atenção era fruto de uma sensibilidade aguçada a padrões e conceitos. Meu pai, homem de idade já avançada quando nasci, era um matemático dedicado e, embora não tivesse exercido profissionalmente, também um linguista – imagino que se ele próprio tivesse nascido algumas décadas depois, com certeza teria se dado muito bem no campo da linguagem de computadores. Tendo me criado praticamente sozinho após a prematura morte de minha mãe, vinte e três anos mais nova que ele, essa figura paterna que há cerca de seis meses foi voluntariamente morar num asilo geriátrico exerceu grande influência sobre mim, com certeza bem mais que minha mãe morta, ou minha tia solteirona que morava conosco e mal conseguia conversar direito.

        Meu velho pai tinha, como vários de sua rua, o costume de frequentar os serões de ***, especialmente quando me tornei adolescente e ele passou a me levar junto. Daí desenvolvi o hábito de desenhar os diagramas oníricos: anotava os fragmentos de sonhos contados nas reuniões, marcava-os com uma notação numérica, e usava os números como referenciais em grandes esquemas que esboçava em cartolina. Os números eram ligados por setas e vetores e esses diagramas eram expostos nas paredes de um quarto vago da casa de meu pai, onde moro até hoje. Posso dizer que praticamente substituíram a necessidade de papel de parede ali – é provável que haja mofo debaixo dos esquemas presos à parede – às vezes em dias quentes um estranho odor domina o aposento, e *** é um lugar muito úmido – mas não consigo reunir disposição suficiente para retirar tudo e fazer uma limpeza.

        E de onde vinham as setas e vetores que ligavam os sonhos de tantos moradores do subúrbio de *** ? A princípio, a intuição e uma análise talvez grosseira me guiavam. Pequenos detalhes recebiam às vezes um peso maior do que similaridades óbvias. Com o tempo tornou-se complicado representar a diferença nos relacionamentos entre os diferentes sonhos, e passei a usar números para representar esse peso das flechas que ligavam os sonhos anotados nos cadernos guardados no mesmo aposento de cheiro mofado. Logo depois de ter experimentado isso, uma sensação de inadequação estética, de erro, me assaltou e removi toda a notação numérica dos próprios sonhos, substituindo-a por símbolos. Cada sonho agora recebia um sigilo desenhado tanto no diagrama quanto na anotação de caderno. Era aí que minha estranha intuição, que minha tia dizia ter sido herdada de minha mãe, agia com mais força: a escolha dos sigilos mal tocava minha mente consciente, era quase escrita automática – uma única relida na anotação, e o sigilo era imediatamente desenhado em seu cabeçalho e logo depois, com uma rapidez frenética, no diagrama onírico a ser exposto na parede.

        Os poucos de fora da família que chegaram a contemplar as paredes cheias de esquemas e símbolos geralmente deixavam-se arrastar por um longo fascínio e murmuravam curtos comentários às vezes sem nexo. Nenhum desses – quase todos colegas de escola – fazia parte dos grupos que organizavam os serões, embora eu tenha quase certeza de que notícia dos diagramas fora cair nos ouvidos de alguns participantes, que pararam de descrever sonhos em minha presença. Em geral, contudo, a rotina da troca de relatos continuava inalterada, fornecendo dados e dados que geravam mapas e mais mapas de sonhos e visões noturnas.

        Essas mandalas me tomavam mais tempo do que era conveniente, e embora meu pai de início enxergasse tudo com uma certa curiosidade e assombro, começou depois a fazer comentários sobre a inutilidade daquilo, sobre o caráter fantasioso da notação numérica e simbólica, culminando com sua ideia de me fazer morar fora, na cidade grande, para estudar em uma de suas universidades com mais facilidade (às vezes a viagem entre *** e sua cidade-hospedeira levava quase três horas, de ônibus). Essa mudança de atitude coincidiu com o gradual diminuição da frequência no comparecimento às reuniões de jardim. Cheguei a argumentar que um carro resolveria todos os problemas de transporte, e que eu era disciplinado o suficiente para acordar cedo todo dia, mas meu pai não quis nem ouvir falar disso. Ao contrário de vários de meus colegas, que receberam de presente um automóvel ao entrar na faculdade, eu tinha um pai que dificilmente cogitaria em gastar parte de suas economias que ele guardava para meu futuro (e sim, para numa casa na cidade) com um carro. E agora, minha mania, dependente dos serões de nossos vizinhos, no fim das contas dependente da própria ***, com certeza seria interrompida se ele não me desse mesmo carro nenhum – pronto, estava decidido.

        O pai pagaria as custas do aluguel de um apartamento enquanto fosse preciso. Bom, já devo ter mencionado que a coisa toda não durou mais de seis meses, não foi? Mas é preciso tanto agradecer quanto me arrepender desses seis meses e da teimosia do velho.





O que deveriam ter sido quatro anos, no mínimo, de permanência na cidade grande, me esperavam. Um pequeno apartamento quarto-e-sala no antigo centro da cidade, conseguido por intermédio de um dos raros amigos de minha tia, seria minha base sólida durante esses anos. Todos os meses meu pai me mandaria um dinheiro para pagamento do aluguel e demais despesas – eu não precisava, por enquanto, me preocupar em fazer bicos ou ter um emprego de meio período, porque meu pai fazia questão de assegurar que eu não usasse a eventual fadiga como argumento para fazê-lo voltar atrás.

        Tinha completado dezessete anos há poucos dias quando me instalei no dito apartamento, e a primeira noite que lá passei me deu a impressão de ser a pior noite da minha vida – embora eu não soubesse que era apenas o começo. Por uma fortuita combinação de proteção excessiva de minha tia e de um certo desinteresse inato pelas coisas fora de minha vizinhança, eu nunca havia dormido fora de ***. Já havia visitado a cidade grande, e já havia dormido na casa de amigos e até de uma ex-namorada, mas nunca de fato dormido fora do estranho subúrbio. E naquelas noites em meu novo lar conheci uma terrível mescla de liberdade e pavor.

        Custei a dormir.  Ou na verdade, custei a me dispor a dormir – a arrumação das coisas e mobílias demorou mais que eu imaginava, e depois de tudo eu ia e vinha pela casa, a cada instante notando pequenos detalhes que me passaram despercebidos durante o dia (teias de aranhas ocultas em cantos escuros, farelo de pão acumulado debaixo de uma das janelas, pregos nas paredes que talvez antes segurassem quadros, uma pilha de papéis amarelados aparentemente largada pelo inquilino anterior no fundo de uma gaveta, um esquisito e inédito cadáver de uma barata branca debaixo da cama). Por volta das duas da manhã finalmente me coloquei na cama, mas acho que só consegui dormir lá pelas três horas, já que antes fiquei me virando e revirando sozinho pela cama de casal.

        Ao contrário do que sempre acontecera até então nos meus períodos de sono em ***, consegui perceber o instante preciso em que adormeci – e só não cheguei a registrar a hora e minutos exatos, porque não deixo relógios nem celular ligados perto da cama. Meus olhos se fecharam e a escuridão resultante começou a tremular diante de mim.

        Comecei a andar no meio daquela massa informe de trevas, e o mais estranho é que ela parecia curiosamente gélida ao toque, e não fugaz e imaterial como todo aglomerado de escuridão. Era uma coisa entre gás denso e líquido viscoso.  Era possível não só sentir, mas ouvir bem alto, um ritmo de batidas regulares, que não vinham de nenhum ponto obscuro à distância, mas sim de mim mesmo – o ambiente tenebroso parecia responder a essas batidas, como um dedo constante e repetidamente perfurando a superfície de um lago, provocando ondas concêntricas.

        A diferença estava em que as emanações centradas em mim afetavam não uma superfície bidimensional, mas uma medonha zona de no mínimo três dimensões – algo me fazia desconfiar que o tempo se distorcia mais além, e só aquele ritmo constante que saía de mim fazia a escuridão se estabilizar num espaço em que eu pudesse me mover direito. E apesar de poder me movimentar, não tinha pista alguma de onde estava indo.

        Um vago e crescente horror começou lentamente a me assaltar – era de se estranhar que aquela sensação aterrorizante houvesse demorado tanto tempo naquele espaço onírico para se manifestar, pois pelo menos três minutos percebidos haviam transcorrido desde que meus olhos haviam se fechado, mas era como se minhas reações emocionais estivesse mais lentas, embora inevitáveis – e percebi, o que fez o horror aumentar exponencialmente, que me deixar levar por aquele surto gerava consequências … físicas, ou pelo menos físicas de acordo com a perspectiva do sonho.

        Meu medo se espalhava junto com as emanações que meu corpo emitia, provocando uma espécie de … não posso dizer terremoto,  já que não estava na terra … uma espécie de distúrbio espacial, um tremor psíquico que se expandia. E com o tremor minhas percepções iam junto, me fazendo conseguir sentir toda a escuridão que me envolvia. E a escuridão reagia. Ela se tornava mais densa, mais viscosa, mais enredante, e eu me sentia como se imerso num cipoal – tentáculos feitos de distorção e colapso se erguiam numa única onda que tentava rechaçar o meu próprio ser.

        Conforme minha percepção se espalhava pelo abismo ao meu redor, eu enxergava, ouvia – e pior, sentia o gosto e o odor – dos tentáculos que se agitavam à minha volta. Numa revolta rápida, a viscosidade sombria que originalmente me cercava foi despedaçada pelos tentáculos de espaço distorcido (eram como feridas no cosmos, ferimentos, rachaduras e fendas que se moviam num turbilhão intenso, pulsando de modo tão bizarro que revelavam uma estranha e anômala consciência). A escuridão foi assim rasgada, e eu caí num túnel de paredes circulares e espelhadas por uma longa eternidade, até ser despejado, gotejante como se coberto por um líquido amniótico, numa planície extensa que se espalhava até onde meus olhos conseguiam enxergar, onde atingia um horizonte malva.

        Quando tempo andei por essa planície vazia e esbranquiçada, meus pés pisando um chão indefinido e brumoso que cedia devagar se eu parasse muito tempo num só lugar? Não quis descobrir o que me aconteceria, ou onde cairia, se parasse para descansar, e errei pela planície de Thangar-Baru por vários e vários milênios … até que um inesperado meteoro cruzou o céu malva, uma estrela cadente que incendiava aquela atmosfera mórbida, e num estrondo atingiu Thangar-Baru, estilhaçando aquele domínio onírico e me fazendo acordar com um salto e correr sem pensar até a janela semiaberta.

        Depois de acalmar minha respiração, levei alguns minutos para perceber duas coisas: o relógio digital encimado num poste da rua indicava 01:01 – duas horas antes do horário em que adormeci – e, de onde havia tirado o nome Thangar-Baru?



O dia seguinte foi marcado por extremo cansaço. Eu conseguira adormecer normalmente, caindo num sono sem sonhos, depois daquilo, mas só por volta das cinco horas da manhã. Ou do que acho que seria as cinco da manhã. A princípio pensei que alguma coisa me fizera dormir mais de 24 horas seguidas, e ter acordado à uma hora significava ter dormido durante todo o dia – mas não era o caso. A data era a mesma (a madrugada de 23 de março), assim mostrava o relógio digital exposto lá fora. Estranhamente, meu celular estava desligado e assim não pude fazer uma noção muito clara se ele havia misteriosamente se atrasado e na realidade eu me atrapalhara e só havia achado que adormecera por volta das três da manhã. Ao ser religado, o celular havia perdido o registro de hora e data.

        Parecia que o celular não estava sozinho em seu problema, porque o único outro aparelho eletrônico que estava ligado na casa também estava desligado – um microsystem que estava em stand-by na sala. Esse não quis funcionar durante três dias, e como não tive tempo de levá-lo num técnico, por três dias ficou mudo até que ao voltar para casa na noite do dia 26 o aparelho estava ligado, e não houve explicação nenhuma de como isso havia acontecido.

        De qualquer forma, durante esses três dias, eu, que nunca sofri de pesadelos em toda minha vida, foi obrigado a uma alternância noturna de sonhos ruins e insônia. Aliás, não só noturna, já que qualquer cochilo que tentava durante o dia também invariavelmente terminava em frustração ou em viagens oníricas medonhas. O trajeto era mais ou menos o mesmo: a ondulação que se espalhava de mim mesmo, a batalha dos tentáculos contra a escuridão, o eventual fragor das trevas entrando em colapso e a queda quase eterna até ser expelido numa planície que eu tinha a certeza total e absoluta que se chamava – se chamava, não, como ela se chama, já que ainda está lá – Thangar-Baru.

        A perambulação naquele ermo branco e malva levava muito tempo dentro do sonho, até que algum incidente estranho a interrompia. Se da primeira vez houve a queda de um meteoro, da segunda vez encontrei um estranho poço que se erguia das brumas baixas e, ao observar suas profundezas, um jorro de chamas verdes se ergueu dele formando uma coluna que ia até o céu malva, e o clarão doentio me cegou de imediato, me obrigando a despertar. Da terceira vez, um enxame de pequenas coisas ia se aproximando bem lentamente, as minúsculas pernas articuladas frenéticas quase invisíveis na bruma branca. Tentei me afastar deles mas era inútil, acabei sendo alcançado e – é difícil descrever exatamente a sensação da coisa toda – devorado vivo por aquele enxame que não tinha fim, minha consciência se dispersando pelos corpos dos ínfimos e aberrantes seres. A horda de entidades híbridas entre crustáceo e aracnídeo, cada um deles com onze patas articuladas e assimétricas ao redor de um corpo revestido de uma quitina oleosa, marchou indiferente até a as bordas de Thangar-Baru e atravessou uma bizarra cortina intangível de cor malva … me fazendo acordar.

        Pois bem, se todo meu costume de pesadelos se restringia a relatos alheios, devem imaginar então o sofrimento dessas três noites de pesadelos bem fora do comum e além de qualquer estranhamento presente nos sonhos de ***. Essas três noites foram acompanhadas de três dias em que articulei as coisas de modo a me preparar para a universidade. Em nenhum deles almocei dentro de casa. Era compreensível: a casa estava me dando medo por causa dos pesadelos, e eu a evitava a não ser para dormir. Como consequência, a maioria das minhas coisas ficou bagunçada, o que ainda piorava a sensação de alheamento que sentia dentro daquele lugar. E naqueles três dias, só uma coisa me aliviou o cansaço provocado pelas providências a tomar e pelos estranhos e inesperados pesadelos.

        Essa coisa foi Anna.




Não vão achar ruim que chame uma mulher de “coisa.” Também não tem nada a ver com o conceito de mulher-objeto. Longe disso. Na verdade, como os leitores perceberão mais adiante, essa palavra faz total jus à moça que almoçava no mesmo restaurante que eu.

        Eu passava mais tempo naquele restaurante que somente tomando café e almoçando: antes e depois das refeições, fazia anotações em meu caderno, pondo no papel minhas impressões a respeito dos misteriosos pesadelos que estavam me acometendo. Pela primeira vez, eu tinha o ânimo de fazer a crônica dos meus próprios sonhos, e não os da vizinhança. Às vezes fazia tentativas de desenhar a planície branca e nebulosa onde sempre vagava, mas quase sempre esses garranchos e esboços eram inconclusivos. Thangar-Baru parecia altamente elusiva, indescritível.

        Também fazia esboços das coisas que experimentava nos sonhos, e delas extraía um sigilo correspondente. No segundo dia de almoço notei que uma moça que estava sentada numa das mesas próximas, no dia anterior, estava me observando com um mal-disfarçado interesse. Era uma ruiva de cabelos longos e levemente ondulados, olhos castanho-esverdeados, não muito alta. Sua expressão de sobrancelhas erguidas me exercia um certo fascínio, era como se ela emanasse uma aura que atraísse e ao mesmo tempo deixasse o atraído naquela zona liminar, próximo mas sem a coragem de se aproximar.

        E é claro, não tive a coragem de falar com ela. Nem teria exatamente o que falar. Provavelmente ela teria alguma razão, como eu tinha, de almoçar ali todos os dias (era tão prático e aconchegante), quem sabe mais tarde com a convivência visual eu chegasse a conseguir conversar com ela; e de qualquer forma eu me sentia exausto. Mas não foi preciso que um ritmo habitual se estabelecesse, porque no terceiro dia, quando eu desenhava as figuras daquela terrível e paciente horda de animais híbridos, Anna veio falar comigo.

        “Está na __________?” Falou ela por trás de meu ombro esquerdo, referindo-se à divisão de artes e design de uma das mais conceituadas academias da cidade. Interrompi o esboço e me virei para responder; de onde ela estava podia enxergar vários outros desenhos e sigilos e símbolos e até mesmo a leve tentativa de um novo diagrama onírico.

        Seu rosto era franco, mas o olhar era insidioso, com uma certa malícia. Mas não cheguei a hesitar. “Não, não, estou para entrar no curso de psicologia. Por quê?  Acha que isso aqui tem algum valor?”

        “Sem dúvida. Você parece não ter muita técnica, muita experiência, mas esses seus desenhos transmitem algo … melhor dizer que revelam alguma coisa. Não estou certa?”

        Agora sim eu hesitei. Dava até a impressão de que ela sabia alguma coisa, mas isso era impossível. Ou pelo menos eu achei que era impossível – o tempo provou que eu estava mais do que errado. Mas estou me adiantando. Antes que eu pudesse responder qualquer coisa (nem me lembro o que ia dizer), um tamborilar frenético de chuva sobre o toldo se fez ouvir, e um vento varreu a parte da frente do restaurante, derrubando vários dos meus papéis e nos obrigando a correr para catá-los com urgência.

        Depois que tudo foi salvo (ou o que achei que era tudo; depois, em casa, fiquei com a impressão de ter sumido um dos esboços), e nos movemos para a parte coberta por telhado do estabelecimento, a ruiva sorriu e fez um comentário: “Parece que vamos passar um bom tempo aqui.  Qual o seu nome?”




Ela não podia estar mais certa, porque a tempestade que se seguiu durou mais de três horas e soube depois que houve inundações em certas partes mais pobres da cidade. E daquelas horas de conversa surgiu o hábito de nos encontrarmos ali e palestrarmos durante mais tempo que era necessário para almoçar. Descobri que era mesmo uma artista plástica, estudando na mesma faculdade que eu (a mesma que ela mencionou para quebrar o gelo), e era seu primeiro semestre ali, mas não o primeiro semestre no curso.

        Parece que havia sido estudante de intercâmbio nos EUA, numa cidade de nome estranho em Massachusetts, chamada Arkham (o que tinha a ver com o fictício Asilo Arkham das histórias do Batman, não sei) e que estava atrasada, talvez por ter pego diversas matérias que à primeira vista nada tinham a ver com seu curso – de música, matemática e até de arqueologia. Dizia ser muito curiosa e dispersa: e na primeira vez em que fui em sua casa, cheguei a ver largada num canto a caixa de um remédio que sei que servia para um transtorno, distúrbio ou síndrome que mudou de nome várias vezes nos últimos anos. Num momento em que ela fora no banheiro, notei que a caixa estava cheia.

        Enquanto isso a rotina de encontros com Anna se somou à rotina da faculdade, que muito me interessou, até o máximo que permitia meu cansaço perene, porque havia uma terceira rotina, a dos pesadelos. Toda noite um episódio estranho acontecia em Thangar-Baru. Alguns deles se repetiam, mas não de modo idêntico. E Anna tinha um interesse ardente nesses meus sonhos – pedia detalhes, apreciava os esboços (embora eu escondesse dela alguns dos mais extravagantes ou que tivessem alguma semelhança com os diagramas que fazia na casa de meu pai). Um dia, não havia completado um mês de aulas, ela comentou que se eu só tinha esses sonhos no apartamento, então era porque o apartamento devia ser o culpado – e me chamou para dormir em sua casa.


Eu só havia estado nessa casa dela uma vez, antes. E ela nunca fora na minha própria casa. O convite parecia estranho, porque não estávamos namorando – tudo o que fazíamos era conversar, e fora o tom muitas vezes malicioso da voz de Anna, sua malícia se resumia à voz, aos olhos brilhantes e às vezes a maneira de caminhar, e nunca se expressava como sugestões verbais. Alguém poderia me dizer que isto já seria suficiente para determinar que ela estava emitindo sinais, mas é que ao mesmo tempo, durante aquele mês, é como se ela erguesse uma barreira invisível que desencorajasse qualquer aproximação maior. E de fato invisível e indefinível era essa barreira, porque ela estava longe de ser feia, desinteressante ou pouco inteligente. Pelo contrário, me dava a impressão de ser a mulher mais astuta que eu já conhecera. Até aí, a minha própria idade reduzida, de um calouro do lado de uma recém-chegada de aparentes 23 anos, podia ser a razão do fascínio misturado com aversão que sentia por ela.

        Não vi como recusar o convite. Na primeira vez em que estivera na casa onde ela morava sozinha, eu não passara da sala; só havíamos passado lá para ela pegar uns livros e ir ao toalete. Foi quando eu notara a caixinha de remédios. Alguma coisa me fez não mencionar que reparara na caixa, nem mesmo que mexera nela e a achara com todos os comprimidos no lugar. Agora as coisas eram diferentes: eu ia dormir na casa de Anna.

        O que chamava mais a atenção naquela sala não era a caixa de remédios que provavelmente não estaria mais lá, mas uma profusão de quadros de aparência bizarra. A maior parte deles era cubista ou medievalista, e não sei quais deles eram reproduções e quais eram genuínos. Um dos quadros chamava a atenção não por ser psicodélico ou arcaico, mas pelo realismo – se é que posso chamar de realismo uma representação de um ser tão grotesco, semi-humano com traços caninos. Naquele dia, quando perguntei quem era o autor daquilo – não deixava de ser uma obra de arte, embora das mais perturbadoras – ela disse que trouxera o quadro da sua temporada de intercâmbio, que o autor chamava-se Richard Pickman, que haviam pouquíssimas obras dele disponíveis, e que ela havia gasto quase todo o dinheiro sobressalente da viagem com essa e outras obras obscuras. Quem sabe depois ela me mostrasse as outras, acrescentou.

        Quem sabe o meu convívio com Anna me distraísse de alguma forma dos meus sonhos, porque embora eles não houvessem cessado, eu me sentia menos exausto nos dias em que a encontrava. Levando isso em conta, por estranhas que fossem essas e outras obras, não se comparavam com os horrores de meus sonhos; então, se a opinião dela fosse correta, não me custaria nada passar a noite perto das tais obras de arte – que, segundo ela, não se restringiam a quadros, havia também esculturas, fotografias, gravações musicais e livros raros. Ela se definia como uma apreciadora do exótico; mas eu, depois de ver apenas os quadros da sala, enxergava pouca coisa de exótico e mais de macabro.

        O que eu poderia definir talvez como no mínimo exótico era a escolha de lugar para morar. A casa, onde ela morava sozinha, havia sido anteriormente um prédio de apartamentos de três andares. Por alguma razão que ninguém comentava, o ex-dono do prédio mandara derrubar os dois andares superiores e toda a estrutura havia sido convertida numa casa de dois pisos. Quem prestasse atenção ao entrar na casa, como eu iria fazer, notava a simetria provocada pela antiga disposição dos quatro apartamentos por andar. No meio deles havia um poço, para o qual davam quatro janelas no primeiro piso e apenas três no segundo – a oitava janela havia sido emparedada, sabe-se lá por que motivo. Para quem morava num apartamento pequeno de bizarras discrepâncias no pé-direito, meio torto e mal estruturado, a casa deveria me confortar, mas não foi o caso: aquela simetria agia sobre mim como se as paredes da casa servissem como os muros de uma prisão, uma sensação vagamente claustrofóbica que nunca havia sentido antes num ambiente tão espaçoso.



Foi essa sensação que me arrebatou naquele fim de tarde em que Anna abriu a porta para que eu entrasse, com um sorriso mais malicioso do que o normal. Eu teria demorado mais um pouco observando melhor a fachada da casa – ela não estaria mal-colocada em ***, me causava uma certa nostalgia – mas sobreveio um temporal tão logo a dona da casa abriu a porta. Essas pancadas de chuva inesperadas estavam ficando cada vez mais comuns na cidade.

        Deu para perceber, logo de cara, que alguns dos quadros haviam sido trocados. Havia também uma novidade – umas caixas de papelão abertas no chão perto da mesa de mogno, e em cima da tal mesa, duas esculturas que não pareciam muito normais. Uma delas era uma coisa deformada em baixo-relevo, feita de argila; provocava arrepios ao ser contemplada, e o ser monstruoso cercado por uma escrita desconhecida parecia um cefaloide alado, tendo como pano de fundo uma cidade ancestral. Não chegou a me alterar muito o humor, contudo, porque havia a segunda escultura: uma tartaruga de marfim, finamente esculpida, de olhos quase vivos e casco detalhado. Peguei a tartaruguinha na mão e era tão linda e pitoresca, que o baixo-relevo perturbador deixava de ter qualquer importância.

        “Não se anime muito,” Anna interrompeu o meu devaneio com a escultura, “não é original. Ambas cópias muito bem-feitas, senão você não estaria aí com essa cara.  Quem as fez era um artista inspirado … tão inspirado quanto você, eu acho.”

        “Continua achando mesmo que sou um artista, não é?” Pus a tartaruga de volta à mesa e dei uma boa olhada ao redor: alguém havia feito uma bela faxina, os móveis estavam brilhando e não havia uma grama de poeira no chão. Mesmo assim, o jeito antisséptico do ambiente me incomodava. Se as paredes me lembravam, de leve, muros de prisão, o chão e próprio ar ao meu redor me davam a impressão de estar num hospital – dava quase para cheirar o éter. Devia ser algum produto de limpeza que eu não conhecia.

        “Pelo menos eu acho que vocês bebem das mesmas fontes.” O sorriso de Anna dessa vez foi até predatório, mas ela logo colocou-se numa postura relaxada e até sedutora, me fazendo cair a guarda de novo. “Foi um rapaz que conheci numa enevoada colônia de artistas durante o ano de intercâmbio. Para o seu conselho, dizia que artista não escolhe ser artista, só aceita o fardo. Quando fui embora, ele ficou me devendo e pagou com estas esculturas. Não foi a única coisa que trouxe de lá, mas depois lhe mostro. Minha casa não é um museu, pode ficar mais calmo, não precisa ficar assim, com essa cara. Sente aí que eu vou buscar alguma coisa para bebermos.”

        Enquanto ela sumia nos fundões da casa (Por que não tinha um bar na sala?  Do jeito que devia ter dinheiro, nada custava instalar um móvel assim … ou será que tinha uma adega em algum lugar?) pus a mochila com minhas coisas de lado, e tentei relaxar num dos sofás, mas não consegui. O arranjo das pinturas na parede, como mencionei, havia mudado; e a nova disposição parecia diabolicamente hipnótica, simetricamente sugestiva. Acabei levantando, e examinei boa parte dos quadros. Havia alguma coisa que me chamava a atenção naquilo tudo, e como era de meu costume, peguei o meu caderno de anotações na mochila, e copiei a disposição dos quadros nas três paredes em que eles estavam expostos.

        Parecia estar demorando demais, então eu cheguei a referenciar quais quadros estavam em cada posição … e como dos onze quadros exibidos, apenas dois tivessem o nome na parte inferior da moldura, desenhei sigilos abstratos e sintéticos para representar os outros nove; e acabou me dando na cabeça, depois que vi que ela estava demorando mesmo, de elaborar sigilos até mesmo para aqueles quadros que tinham nome.

        Era como se eu estivesse de volta a ***, só que em vez de relatos oníricos, eram imagens. Valeria a pena descrever esses quadros, ou citar seus nomes? Mas se estou dizendo que aquela simetria macabra me chamava mais a atenção que as próprias imagens?

        A única parede sem quadros estava tomada por uma enorme estante com alguns aparelhos eletrônicos, televisão e som, pela porta para o interior da casa e pelo sofá onde eu deveria estar sentado. Daquele sofá você teria uma visão abrangente dos quadros … e também de certas coisas na sala, que pareciam fazer parte da disposição simétrica em questão, a saber, dois candelabros antigos pendendo do teto, a porta da rua, dois tapetes de cor verde-musgo no chão e … o próprio sofá onde eu acabei finalmente me sentando.

        Não pude respirar nem três segundos naquele sofá, porque de dentro da casa veio o estardalhaço de uma garrafa quebrando.



Saí correndo, quase em pânico (todo o processo de observação do diagrama havia me deixado sensível naquele momento), na direção do som estilhaçante. Passei por um corredor com três portas e uma delas, a segunda, estava aberta. Era a cozinha. Ou na verdade uma das cozinhas da casa. Corri até ela, e o pânico deu lugar ao choque.

        Os fragmentos de vidro se espalhavam por todo o chão ladrilhado. Os maiores cacos concentravam-se ao redor e sobre uma enorme poça de líquido rubro. Levemente curvada na direção da poça, Anna segurava o pulso ferido, escorrendo um filete de sangue – e naquele instante tive a mórbida impressão de que todo aquele sangue derramado no chão viera daquele filete que pingava sobre a poça.

        Ela ergueu os olhos e esboçou um sorriso sem graça, ou quase. Parecia estar se divertindo e ao mesmo tempo resignada. E, junto com o sorriso, veio o cheiro inebriante do vinho derramado no chão.

        Era vinho tinto.

        Como eu não tinha sentido aquele cheiro tão forte ao chegar na soleira da porta, eu não sei, mas posso atribuir ao meu estado de nervos um tanto alterado, pressionado pelo cansaço e pela antecipação.

        Rapidamente eu a ajudei a se recompor e ela pediu ajuda para lavar o ferimento. Segundo ela, ao manusear a garrafa quebrada, a derrubou e um dos estilhaços, ao pular do chão, atingiu o seu pulso, quase na artéria. Por isso estava rindo, ela disse – era um riso nervoso, porque poderia ter sido muito pior.

        Lavamos o seu pulso num lavabo no fim do corredor, bastante perfumado, mas que não conseguia disfarçar de todo aquele odor de produto químico que havia sentido ao entrar na casa. Esse cheiro era indefinível: se você conseguir imaginar uma mistura de éter e água sanitária, terá conseguido chegar perto do onipresente cheiro daquela noite na casa de Anna.

        Depois de ter enfaixado com uma gaze o seu pulso, Anna voltou comigo à sala. Quando passamos pela porta da cozinha, vi aquela mancha vermelha no chão – o vinho derramado, que formava um padrão esquisito, não muito normal para uma poça de líquido derramado. Parecia mesmo que a poça havia se deslocado um pouco durante aqueles minutos em que estivemos no lavabo. “Não vamos limpar esse chão?” perguntei à dona da casa, antes de tomar qualquer iniciativa.

        “Não.  Estou cansada depois disso, deixa aí, usamos a outra cozinha se for preciso, perdi até a vontade de beber. Vamos para a sala.” Com um suspiro de alívio, ela pôs um braço em volta dos meus ombros, seu perfume cítrico enfim vencendo o cheiro esquisito da casa, e discretamente me guiou até o sofá da sala onde …

        … Onde eu havia deixado o diagrama recém-desenhado.



O olhar de Anna desceu até o papel mal-dobrado, parou por cerca de dez segundos, analisando com um certo cuidado, seguindo com um longo e profundo suspiro. Era como se ela estivesse só checando e confirmando. Permaneci calado, e minha anfitriã voltou aqueles olhos que antes eram quase verdes, mas que ali, sob a estranha iluminação de sua casa incomum, me davam quase a certeza de serem amarelados. Ela estendeu a mão que antes envolvia meus ombros e segurou meu rosto, dizendo:

        “Por quê você faz isso?  Que está procurando com isso?”

        A palma de sua mão estava levemente suada, e do lado esquerdo de sua testa eu podia ver uma pequena gota de suor, descendo vagarosamente. Até três minutos antes, mesmo com a agitação do acidente com a garrafa, ela não parecia estar suando assim – pelo contrário, sua pele sempre mostrou uma suavidade e impecabilidade fascinantes, que me davam a vontade de tocá-la. Pois bem, aquele toque era completamente diferente do que eu imaginava que seria. Úmido. Palpitante. Forçoso, invasivo.

        Tentei controlar meu próprio nervosismo – nunca mulher alguma me deixara tão agitado, tão perturbado; e se não fui exemplo de conquistador até então, namoros curtos e pequenos casos não me faltaram na juventude em ***.
        
        “Procurando? Que quer dizer?” Tentei erguer minha mão para segurar a cintura dela, de certa forma reagir àquela intimidade nova, mas não consegui. Era como se ela segurasse minhas rédeas, enquanto provocava com suas esporas maldosas – como aquela mão morna e suada, a postura firme e altiva de seu corpo, e seu olhar ao mesmo tempo sonolento e transfixo.

        A outra mão de Anna segurou o outro lado do meu rosto, ela se aproximou um ou dois centímetros, e exalou estas palavras: “O mapa. Você desenhou um mapa. Quem usa um mapa, quer encontrar algo, procura alguma coisa, tenta se localizar, achar uma razão para a existência, quer definir algo, trazer esse algo à realidade, não estar mais perdido – você estava perdido, meu querido?”

        Não consegui responder, mas dessa vez consegui pôr as mãos em volta da cintura dela. Era como se aquilo fosse uma confrontação: e confesso que estava perdendo. Os olhos da garota pareciam cada vez mais amarelados, quase dourados, sua boca carnuda abria e fechava durante suas falas, de um jeito que parecia estar mastigando algo invisível. Os dentes eram tão alvos, notei; sua cintura, tão gostosa de segurar, era como explorar um território ao mesmo tempo proibido e extremamente familiar … o que era aquela sensação?

        Ela continuou, e empurrou os quadris para a frente, “Quer se perder de novo, meu querido? Quer me penetrar de novo?” De novo? Eu podia não saber direito do que ela estava falando, mas a situação toda me fazia não querer maiores explicações, pelo menos não as verbais.




A boca de Anna era levemente salgada, um alvoroço tomou conta de mim enquanto a beijava. Era uma fome sendo saciada, e uma sensação martelante de estar caindo num precipício sem volta.

        Rapidamente estávamos sem roupa sobre o chão duro entre os dois tapetes. O pensamento paradoxal de familiaridade e proibição aumentava a cada carícia que trocávamos, a cada movimento de minha língua sobre os seios de Anna, a cada movimento de seus quadris sobre mim, quando subimos no sofá, fazendo sexo sobre o próprio diagrama que havia provocado aquele diálogo absurdo. Enquanto ela se contorcia sobre meu tronco, seu pescoço se esticava para trás num gesto de prazer, e a língua saía da boca, serpenteando malva … malva, pouco a pouco sua pele branca se tornou mais e mais da cor das brumas daquela planície que todas as noites eu visitava; num movimento violento ela se jogou no chão comigo por cima, atordoado, ainda a penetrando, e a realidade ao meu redor se desfez, eu caía de novo naqueles túneis de paredes espelhadas, só que dessa vez sentia estar absurdamente caindo para cima; a explosão de tentáculos apareceu ao redor de mim, e voltou ao meu corpo, sendo absorvida num espasmo involuntário.

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

A VERDADE SOBRE O FALECIDO ARTHUR JERMYN E SUA FAMÍLIA



Do original
Facts Concerning the Late Arthur Jermyn and His Family


H. P. Lovecraft
Tradução: Arthur Ferreira Jr .'.



I
A vida é uma coisa horrenda, e a partir do pano de fundo por trás do que sabemos dela, espreitam pistas demoníacas de verdades que tornam a vida milhares de vezes mais horrenda. A ciência, já opressiva em suas revelações chocantes, talvez seja o exterminador definitivo de nossa espécie humana – se é que somos uma espécie separada – pois sua reserva de horrores nunca imaginados jamais poderia ter nascido de cérebros mortais, se fosse liberada sobre o mundo. Se soubéssemos o que somos, faríamos o que fez Sir Arthur Jermyn; e Arthur Jermyn untou-se em óleo uma noite, pondo fogo em sua roupa. Ninguém colocou os fragmentos incinerados numa urna, ou fez-lhe um memorial a quem fora ele; pois certos documentos, e um certo objeto encaixotado foram encontrados, que fizeram os homens desejar o esquecimento. Alguns que o conheciam sequer admitem que ele tenha existido.

Arthur Jermyn saiu pela charneca e incendiou-se após ter visto o objeto encaixotado que veio da África. Foi este objeto, e não sua aparência pessoal peculiar, que o fez encerrar sua vida. Muitos teriam não gostado da vida, se possuíssem as feições peculiares de Arthur Jermyn, mas ele havia sido um poeta e erudito, e não se importava com isso. O aprendizado estava em seu sangue, pois seu bisavô, o baronete Sir Robert Jermyn, fora um antropólogo de renome, enquanto seu tetravô, Sir Wade Jermyn, foi um dos primeiros exploradores da região do Congo, e escreveu eruditamente sobre suas tribos, animais, e supostas antiguidades. De fato, o velho Sir Wade possuía um zelo intelectual, que quase chegava ao grau de mania; suas conjecturas bizarras sobre uma civilização branca pré-histórica no Congo o trouxeram muito ridículo, quanto seu livro, Observações sobre Várias Partes da África, foi publicado. Em 1765, este explorador indômito foi colocado numa casa de loucos, em Huntingdon.

A loucura estava em todos os Jermyns, e as pessoas ficavam gratas com o fato de que não haviam muitos deles. A linhagem não se ramificou, e Arthur era o último dela. Se ele não fosse o último, ninguém poderia dizer o que ele teria feito quando o objeto apareceu. Os Jermyns nunca pareceram muito certos – algo estava faltando, embora Arthur fosse o pior deles, e os velhos retratos da família mostrassem rostos compostos, de antes da época de Sir Wade. Certamente, a loucura começou com Sir Wade, cujas histórias selvagens da África foram de um só golpe o deleite e o terror de seus poucos amigos. Ela se exibia em sua coleção de troféus e espécimes, que não eram do tipo que um homem normal acumularia e preservaria, e pareciam chocantes na seclusão oriental em que mantinha sua esposa. Esta última, ele dizia, era filha de um comerciante português que ele havia conhecido na África; e ela não gostava dos costumes ingleses. Ela, com um filho nascido na África, o havia acompanhado de volta de sua segunda e mais longa viagem, e havia ido com ele na terceira e última, jamais retornando. Ninguém a havia visto de perto, nem mesmo os criados; pois a disposição dela era violenta e singular. Durante sua breve estadia na Casa Jermyn, ela ocupava uma ala remota, e era esperada apenas por seu marido. De fato, Sir Wade era bastante excêntrico em sua solicitude para com sua família; pois quando ela retornou à África, ele não permitiu que ninguém tomasse conta de seu jovem filho, exceto uma repulsiva negra da Guiné. Ao retornar, após a morte de Lady Jermyn, ele assumiu o cuidado completo do garoto.

Porém foi a conversa de Sir Wade, especialmente quando bêbado, que chegou a levar seus amigos a considerá-lo insano. Numa era racional como o século XVIII, era imprudente que um homem erudito falasse de vislumbres selvagens e cenas estranhas sob a lua do Congo; de muralhas gigantescas e pilares de uma cidade esquecida, em ruínas e com as trepadeiras a envolvendo, e de degraus de pedra silenciosos e úmidos, descendo interminavelmente até uma escuridão de criptas de tesouro abissais e catacumbas inconcebíveis. Era especialmente imprudente algaraviar sobre as coisas vivas que poderiam assombrar um tal lugar; sobre criaturas que viviam parte na selva, parte na cidade impiamente envelhecida – criaturas fabulosas, que mesmo um Plínio descreveria com ceticismo; coisas que teriam surgido depois que os grandes macacos tomaram a cidade moribunda, com suas muralhas e pilares, criptas e entalhes bizarros. Ainda assim, depois dele ter voltado para casa pela última vez, Sir Wade falaria de tais assuntos com um entusiasmo fantástico, de dar calafrios, principalmente depois do terceiro copo na Knight's Head; gabando-se do que havia encontrado na selva, e de como havia habitado as terríveis ruínas, conhecidas somente por ele. E finalmente, ele falava de coisas viventes, de tal maneira que foi levado à casa de loucos. Ele demonstrara pouco remorso quando confinado em seu aposento restrito em Huntingdon, pois sua mente se movia de modo curioso. Muito embora seu filho houvesse começado a deixar a infância, ele gostava cada vez menos de seu lar, até que por fim começasse a abominá-lo. A Knight's Head havia sido seu quartel-general, e quando ele fora confinado, expressou algum tipo vago de gratidão, como se houvesse sido protegido. Três anos mais tarde, estava morto.

O filho de Wade Jermyn, Philip, era pessoa altamente pitoresca. Apesar da forte parecença física com seu pai, sua aparência e conduta eram, em muitos particulares, tão grosseiras, que ele era universalmente evitado. Embora não tenha herdado a loucura que era temida por alguns, era densamente estúpido, e dado a breves períodos de violência incontrolável. Sua estrutura era pequena, mas intensamente poderosa, e de agilidade incrível. Doze anos se passaram, após ele ter recebido seu título, e ele casou com a filha de seu guarda-caça, pessoa dita de extração cigana, mas antes que seu filho nascesse, contratou-se num navio, como marinheiro comum, completando o desgosto geral que seus hábitos e matrimônio mal-falado principiaram. Depois do fim da guerra americana, ouviu-se dele falar, como um marinheiro num navio mercante do comércio africano, tendo uma certa reputação por proezas de força e escalada, mas finalmente desaparecera uma noite, quando seu navio descarregava na costa do Congo.

No filho de Sir Philip Jermyn, a peculiaridade familiar agora aceita assumia uma versão estranha e fatal. Alto e bastante belo, com um tipo de graça oriental exótica, apesar de certas estranhezas em termos de proporção, Robert Jermyn começou a vida como um erudito e investigador. Foi ele que primeiro estudou cientificamente a vasta coleção de relíquias que seu avô insano havia trazido da África, e quem fez com que o nome da família fosse tão celebrado na etnologia como na exploração. Em 1815, Sir Robert casou com uma filha do sétimo Visconde Brightholme, e foi subsequentemente abençoado com três filhos, sendo que o mais velho e o mais jovem jamais foram vistos publicamente, devido a deformidades de mente e corpo. Entristecido por essas infelicidades familiares, o cientista buscou o alívio no trabalho, e fez duas longas expedições ao interior da África. Em 1849 seu filho do meio, Nevil, pessoa singularmente repulsiva, que parecia combinar a antipatia de Philip Jerym com a altivez dos Brightholmes, fugiu com uma dançarina vulgar, mas foi perdoado ao retornar no ano seguinte. Retornou à Casa Jermyn viúvo, com um filho pequeno, Alfred, que um dia seria o pai de Arthur Jermyn.

Os amigos diziam que foi esta série de mágoas que afetaram a mente de Sir Robert Jermyn, mas ainda assim, talvez tenha sido um mero fragmento de folclore africano o que causou o desastre. O erudito, já ancião, estava coletando lendas das tribos Onga, que viviam perto do campo das explorações de seu avô, e suas próprias, esperando de alguma forma corroborar as histórias selvagens de Sir Wade, que falavam de uma cidade perdida, povoada por estranhas criaturas híbridas. Uma certa consistência nos bizarros documentos de seu ancestral sugeria que a imaginação do louco poderia ter sido estimulada pelos mitos nativos. Em 19 de outubro de 1852, o explorador Samuel Seaton bateu na porta da Casa Jermyn, com um manuscrito de notas coletadas entre os Onga, acreditando que certas lendas de uma cidade cinzenta de macacos brancos, governada por um deus branco, poderia provar-se valiosa ao etnólogo. Em sal conversa, provavelmente Seaton provera muitos detalhes adicionais; cuja natureza jamais saberemos, já que uma série horrenda de tragédias subitamente eclodiu. Quando Sir Robert Jermyn emergiu de sua biblioteca, deixava para trás o cadáver estrangulado do explorador, e antes que pudesse ser detido, pôs fim à vida de todos os seus três filhos; os dois que nunca foram vistos, e o filho que havia antes fugido. Nevil Jermyn morreu na defesa sucessiva de seu filho de dois anos, que aparentemente havia sido incluído nos planos assassinos e insanos do velho. O próprio Sir Robert, após tentativas repetidas de suicídio, e uma recusa teimosa de pronunciar palavras articuladas, morreu de apoplexia, no segundo ano de seu confinamento.

Sir Alfred Jermyn era um baronete, antes de seu quarto aniversário, mas seus gostos nunca casaram com seu título. Aos vinte anos, juntara-se a uma banda de músicos de salão, e aos trinta e seis, deixou sua esposa e filho, para viajar com um circo itinerante americano. Seu fim foi revoltante. Entre os animais na exibição em que viajava, havia um enorme gorila, de cor mais clara que o normal; uma fera surpreendentemente afável, de muita popularidade entre os performáticos. Alfred Jermyn era singularmente fascinado por este gorila, e em muitas ocasiões os dois se olhavam por longos períodos, através das barras da jaula. Por fim, Jermyn pediu permissão, e foi obtida, de treinar o animal, empolgando audiências e amigos performáticos com seu sucesso. Numa manhã em Chicago, quando o gorila e Alfred Jermyn estavam ensaiando uma luta de boxe excessivamente esperta, o animal pregou-lhe um soco com uma força mais que normal, ferindo tanto o corpo quanto a dignidade do treinador amador. O que aconteceu depois não é algo que os membros do “Maior Espetáculo da Terra” gostam de comentar. Eles não esperavam ouvir Sir Alfred Jermyn emitir um grito estridente e inumano, ou vê-lo agarrar seu desengonçado antagonista com ambas as mãos, derrubá-lo no chão da jaula, e morder ferozmente sua garganta peluda. O gorila foi pego de surpresa, mas não por muito tempo, pois antes que qualquer coisa pudesse ser feita, pelo treinador regular, o corpo que um dia pertencera a um baronete fora deixado além de qualquer reconhecimento.


II

Arthur Jermyn foi o filho de Sir Alfred Jermyn e de uma cantora de salão de origem desconhecida. Quando o marido e pai abandonara a família, sua mãe levou a criança à Casa Jermyn; onde não havia ninguém lá que objetasse à presença dela. Ela não deixava de ter noções do qual deveria ser a dignidade de um nobre, e providenciou para que seu filho recebesse a melhor educação que o dinheiro limitado poderia prover. Os recursos familiares eram agora tristemente parcos, e a Casa Jermyn havia decaído num desleixo lamentável, mas o jovem Arthur amava o velho edifício e tudo que este continha. Não era como os outros Jermyn que haviam vivido, pois era um poeta e sonhador. Algumas das famílias da vizinhança, que ouviram histórias da esposa portuguesa do velho Sir Wade Jermyn, declararam que o sangue latino desta deveria estar se exibindo; mas a maioria das pessoas apenas desdenhava a sensibilidade de Arthur à beleza, atribuindo-a à sua mãe cantora de salão, que era socialmente ignorada. A delicadeza poética de Arthur Jeremyn foi ainda mais notável, devido a sua aparência pessoal rude. A maioria dos Jermyns havia possuído um semblante sutilmente estranho e repelente, mas o caso de Arthur era muito chamativo. Era difícil dizer com que ele se parecia, mas sua expressão, seu ângulo facial, e o comprimento de seus braços causavam um frêmito de repulsa naqueles que o encontravam pela primeira vez.

Foi a mente de Arthur Jermyn que aliviava seu aspecto. Inteligente e erudito, recebeu as maiores honras em Oxford, e parecia disposto a redimir a fama intelectual de sua família. Embora de temperamento poético, em vez de científico, ele planejara continuar a obra de seus antepassados, de etnologia e antiguidades africanas, utilizando a verdadeiramente maravilhosa, embora estranha, coleção de Sir Wade. Com sua mente fantasiosa, muitas vezes ele pensava na civilização pré-histórica na qual o explorador louco tão implicitamente cria, e tecia conto após conto sobre a silenciosa cidade na selva, mencionada nas notas e parágrafos mais agitados do falecido Sir Wade. Quanto às declarações nebulosas de uma raça insuspeita e sem nome de híbridos selváticos, ele sentia uma peculiar sensação de terror e atração misturados, especulando sobre a base provável de tal fantasia, e buscando obter uma luz entre os dados mais recentes, coletados por seu tetravô e por Samuel Seaton, entre os Ongas.

Em 1911, depois da morte de sua mãe, Sir Arthur Jermyn ficou determinado a seguir suas investigações até as últimas consequências. Vendendo uma porção de sua propriedade para obter o dinheiro necessário, preparou uma expedição e navegou até o Congo. Conseguindo com as autoridades belgas um par de guias, passou um ano no país dos Ongas e Kahn, encontrando dados além de suas maiores expectativas. Entre os Kaliris, havia um chefe envelhecido, chamado Mwanu, que possuía não só uma memória altamente potente, como um grau singular de inteligência e interesse nas antigas lendas. Este ancião confirmou cada conto que Jermyn havia ouvido, adicionando a eles sua própria história da cidade de pedra e dos macacos brancos, que a ele havia sido contada.

De acordo com Mwanu, a grande cidade e as criaturas híbridas não mais existiam, tendo sido aniquilados pelos bélicos N'bangus, muitos anos atrás. Esta tribo, após destruir a maioria dos edifícios e matado os seres vivos, levara consigo a deusa empalhada que fora alvo de sua busca; a deusa-macaco branca, que os estranhos seres adoravam, e que pela tradição do Congo, seria a forma de alguém que reinara como princesa entre tais seres. Exatamente o que teriam sido as brancas criaturas macacoides, Mwanu não tinha ideia, mas pensava que eram os construtores da cidade em ruínas. Jermyn não poderia formar conjectura alguma, mas durante o questionamento prolongado, obtivera uma lenda bastante pitoresca da deusa empalhada.

A princesa-macaco, dizia-se, tornara-se a consorte de um grande deus branco, que vieram do Oeste. Por muito tempo, eles reinaram juntos sobre a cidade, mas quando tiveram um filho, todos os três partiram. Mais tarde, o deus e a princesa retornaram, e com a morte da princesa, seu divino marido mumificara o corpo, e o encerrara numa vasta casa de pedra, onde era adorado. Então partiu sozinho. A lenda aqui parece apresentar três variantes. De acordo com uma história, nada mais acontecera, exceto que a deusa empalhada tornara-se um símbolo de supremacia para qualquer tribo que a possuísse. Por esta razão os N'bangus a haviam tomado. Uma segunda história conta o retorno do deus, e sua morte aos pés de sua esposa tida como relíquia. Uma terceira conta o retorno do filho, já homem – ou macaco, ou deus, a depender do caso – ainda inconsciente de sua identidade. Certamente os imaginativos negros haviam exagerado o máximo, a partir dos eventos que poderiam estar por trás da extravagante lenda.

Da realidade da cidade selvática descrita pelo velho Sir Wade, Arthur Jermyn não podia ter mais dúvidas; e foi com pouca surpresa que, no começo de 1912, encontrou o que dela restava. Seu tamanho deve ter sido exagerado pelos relatos, mas as pedras restantes provavam que não se tratava de uma mera aldeia de negros. Infelizmente, nenhum entalhe pôde ser encontrado, e o pequeno tamanho da expedição impedia operações de limpeza da única passagem que parecia descer até o sistema de criptas mencionado por Sir Wade. Os macacos brancos e a deusa empalhada foram debatidos com todso os chefes nativos da região, mas acabou sendo que um europeu havia de completar os dados oferecidos por Mwanu. M. Verhaeren, agente belga num posto de comércio do Congo, acreditava que podia não só localizar, como obter a deusa empalhada, da qual havia ouvido falar vagamente; isto porque os antes poderosos N'bangus eram agora os servos submissos do governo do Rei Albert, e com pouca persuasão poderiam ser convencidos a abrir mão da grotesca divindade que haviam carregado. Quando Jermyn navegou de volta à Inglaterra, portanto, foi com a exultante probabilidade de que dentro de poucos meses receberia uma relíquia etnológica sem preço, confirmando as mais selvagens das narrativas de seu tetravô – isto é, das narrativas que ele ouvira. Os compatriotas próximo a Casa Jermyn talvez houvessem ouvido histórias ainda mais selvagens, da boca de ancestrais que haviam ouvido Sir Wade nas mesas do Knight's Head.

Arthur Jermyn esperou com muita paciência pela caixa a ser enviada por M. Verhaeren, enquanto isso estudando com cada vez mais diligência os manuscritos deixados por seu ancestral insano. Ele começou a sentir-se cada vez mais próximo a Sri Wade, e buscava relíquias da vida pessoal deste último na Inglaterra, bem como de suas explorações africanas. Os registros orais da misteriosa e reclusa esposa eram numerosos, mas não havia relíquia tangível remanescente de sua presença na Casa Jermyn. Arthur Jermyn começou a imaginar que circunstância havia causado ou permitido tal afastamento, e decidiu que a insanidade do marido deveria ser a causa primária. Diziam que sua tetravó, lembrava ele, era a filha de um comerciante português na vivia na África. Sem dúvida, sua herança prática e conhecimento superficial do Continente Negro a fizeram contradizer as histórias do interior contadas por Sir Wade, coisa que tal homem não poderia perdoar. Ela havia morrido na África, talvez arrastada até lá por um marido determinado a provar o que havia contado. Mas conforme Jermyn entrava nessas reflexões, não podia deixar de sorrir da futilidade, um século e meio após a morte de ambos seus progenitores estranhos.

Em junho de 1913, chegou uma carta de M. Verhaeren, contando da descoberta da deusa empalhada. O belga declarou ser um objeto bastante extraordinário; objeto bem além do poder de um leigo de classificar. Se era humano ou símio, apenas um cientista poderia determinar, e o processo de determinação seria grandemente obstaculado por sua condição imperfeita. O tempo e o clima do Congo não são gentis com múmias; especialmente quando sua preparação é tão amadora como parecia ter sido o caso. Ao redor do pescoço da criatura, fora encontrado um grande colar dourado, exibindo um medalhão vazio, no qual haviam desenhos heráldicos; sem dúvida, lembrança de algum viajante infeliz, roubada pelos N'bangus, e colocada no pescoço da deusa, como amuleto. Ao comentar sobre os contornos do rosto da múmia, M. Verhaeren sugerira uma comparação divertida; ou na verdade, expressara uma dúvida bem-humorada sobre quem lembraria a múmia, diante de seu correspondente, mas o belga tinha interesses científicos suficientes para não desperdiçar muitas palavras com leviandades. A deusa empalhada, escrevera ele, chegaria devidamente empacotada em certa de um mês após o recebimento da carta.

O objeto encaixotado foi enviado à Casa Jermyn na tarde de 3 de agosto, 1913, sendo levada de imediato à grande câmara que guardava a coleção de espécimes africanos, como disposta por Sir Robert e Arthur. O que decorreu daí, pode ser melhor inferido a partir das histórias dos criados, e das coisas e documentos mais tarde examinados. Das várias histórias, a do envelhecido Soames, mordomo da família, é a mais ampla e coerente. De acordo com este homem confiável, Sir Arthur Jermyn mandou a todos para fora do aposento, antes de abrir a caixa, embora o som instantâneo do martelo e do formão mostrasse que ele não se demorou em começar a operação. Não se ouviu nada por algum tempo; por quanto tempo, Soames não pode estimar com precisão, embora certamente não fosse menos que um quarto de hora mais tarde que um horrível grito, indubitavelmente na voz de Jermyn, fosse ouvido. Logo depois, Jermyn surgia do aposento, correndo freneticamente na direção da frente da casa, como se perseguido por um horrendo inimigo. A expressão de seu rosto, um rosto já desagradável o suficiente quando em repouso, estava além de qualquer descrição. Quando próximo da porta dianteira, ele pareceu pensar em algo, e desistiu de sua fuga, desaparecendo finalmente ao descer a escada até o porão. Os criados ficaram totalmente atônitos, e observaram do começo da escadaria, mas seu mestre não voltava. Um cheiro de óleo foi tudo que subia das regiões abaixo. Após o pôr-do-sol, ouviu-se um rangido na porta levando do porão para o pátio; e um garoto que cuidava dos cavalos enxergou Arthur Jermyn, brilhante da cabeça aos pés com óleo a lhe escorrer, empestado desse fluido, espreitar furtivamente e sumir na charneca escura que cercava a casa. E então, numa exaltação de supremo horror, todos viram o final. Uma centelha fulgiu na charneca, ergueu-se a chama, e um pilar de fogo humano alcançou os céus. A casa de Jermyn não mais existia.

A razão pela qual os fragmentos queimados de Arthur Jermyn não foram coletados e enterrados está no que foi descoberto depois, principalmente a coisa na caixa. A deusa empalhada compunha uma visão nauseabunda, encarquilhada e corroída, mas era claramente um macaco branco mumificado, de alguma espécie desconhecida, menos peluda que qualquer variedade registrada, e também infinitamente mais próxima da humanidade – de modo muito chocante. A descrição detalhada seria bastante desagradável, mas dois detalhes salientes devem ser contados, pois se adequam revoltosamente a certas notas das expedições africanas de Sir Wade Jermyn, e às lendas congolesas do deus branco e da princesa-macaco. Os dois detalhes em questão são os seguintes: o brasão no medalhão dourado, em volta do pescoço da criatura, era o brasão dos Jermyn, e a sugestão jocosa de M. Verhaeren sobre uma certe parecença no que diz respeito ao rosto murcho se aplicava, com vívido, repulsivo, e antinatural horror, com ningúem outro senão o sensível Arthur Jermyn, tetraneto de Sir Wade Jermyn e de uma esposa desconhecida. Os membros do Real Instituto Antropológico queimaram a coisa, e jogaram o medalhão num poço, e alguns deles sequer chegam a admitir que Arthur Jermyn tenha jamais existido.





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