terça-feira, 22 de março de 2011

O MENSAGEIRO QUE VAGAVA PELO ERMO

Arthur Ferreira Jr.'. traz a vocês o Quinto Episódio da SAGA DOS PRODÍGIOS





 “EU NÃO DISSE NADA, PAI! Preferi que ela tirasse suas próprias conclusões.” O nariz de Azif tremia e os olhos dele brilhavam de indignação. Os cabelos muito negros, que tanto haviam se mexido com o vento lá fora, estavam agora lentamente sendo cobertos com a matéria rastejante do uniforme-paradoxo, talvez reagindo às emoções do rapaz.

        “Diga a verdade, Azif,” insistiu o Grão-Mestre, enfático e incisivo, seu bigode grisalho emprestando ainda mais dignidade às suas palavras, “diga ou eu mesmo, depois que este problema estiver resolvido, vou tomar as estátuas do seu alojamento.”

        Os ídolos da Terra Castanha, pensou Dova. Ele realmente é devoto desses deuses... mas como falou tão mal dos sacerdotes, e como conseguiu me resgatar deles, se é um fiel? E a menina preferiu não pensar mais naquele paradoxo, e sim agir.

        “O senhor que diga a verdade!” interrompeu a garota. “Que é que tinha a esconder de mim que era tão importante?”

        “Não era à verdade que eu estava me referindo,” reagiu o velho, contrafeito. “Me referia às opiniões dele! Você acabou de fazer um gesto de apaziguamento, típico dos sacerdotes da Terra Castanha. Eu já disse a esse meu filho que estas coisas são superstições e que os sacerdotes só servem para nos pagar caro pelas trufas. Os deuses deles não são reais, Azif!” falou mais alto, voltando-se para o filho, “e o que é ainda mais importante, os uniformes não são demônios do Ermo!”

        “Demônios...?” a voz de Dova saiu hesitante.

        “Sim! Se eu pudesse, vestiria um uniforme exatamente como o dele e o que está no corpo de Euro, e que deveria ter sido seu! Mas acontece que, para os que não são da espécie do pai de Euro – os neander – a união com o traje só pode ser feita na adolescência! E mesmo assim são poucos os que podem de fato se unir a elas!” O Grão-Mestre parecia furioso. “É uma roupa viva, cultivada pelos neander, um fruto das guerras do passado, tanto quanto as próprias trufas alucinógenas que vendemos aos sacerdotes. Ocorre que os sacerdotes odeiam os neander e preferem enxergar estas roupas tão preciosas e úteis, como demônios que possuem uma raça inteira de humanos apenas um pouco diferentes de nós.”

        Azif parecia envergonhado. Não ousava replicar. “De qualquer forma,” continuou o velho, “é bom que existem aqueles entre nós que não usem a roupa. Assim podemos lidar com os compradores das trufas ou andar mais livremente em meio ao povo da Terra Castanha.”

        Dova parecia pensativa, o olhar meio perdido. “Menina,” falou o Grão-Mestre, “eu deveria neste momento te explicar o que é exatamente um uniforme-paradoxo, te dizer que a união é irreversível, mas que ele lhe seria um fiel companheiro; e perguntar se você aceitaria um desses companheiros. Havia um já à sua espera. Mas parece que o nosso amigo Euro, aqui, me impediu de fazer essa oferta; daqui que o tearcuba gere mais um traje, já teremos sido mortos pelos camaleões-do-meio-dia, ou então os teremos derrotado.”

        Dova olhou a própria mão. Parecia ainda mais pensativa e respondeu nesses termos, o olhar firme, a voz, serena:

        “Minha família foi morta pelos sacerdotes. Não tenho mais ninguém e, sinceramente, simpatizei mais com Azif – e não, ele não me contou nada sobre os uniformes, senhor – e mesmo com a moça que encontramos lá fora, Charya, do que com a maioria dos membros da minha família...”

        Lá fora, um zumbido começou a ser ouvido. A voz da menina ficou um tanto embargada, mas ela continuou, “...Fora certas pessoas como meu avô. Então, também não tenho nada a perder!”

        O zumbido começou a aumentar e as pessoas começaram a tomar de armas, como redes, zarabatanas e algumas armas de choque. Outras empunhavam espadas ou bastões. Euro chegou muito perto de Dova e a observou, admirado, como se estivesse enxergando algo que o Grão-Mestre e Azif não podiam ver. Para espanto dos dois – e de toda a assistência de nômades – Dova ergueu a mão esquerda, queimada pelo uniforme dourado de Euro, e uma brancura começou a se espalhar da mão para o braço, do braço para o resto do corpo. Dova então gritou: “EU ACEITO!”

        Um sorriso se abriu no rosto do Grão-Mestre e algumas pessoas murmuravam fascinadas, mas ele não deixou que perdessem o ímpeto de guerra: “Se é assim, então vamos para fora! Não vamos deixar que eles entrem na nossa caverna! Você, você e você,” apontou para três homens com roupa de deserto, “fiquem aqui dentro para resguardarem a gruta. E sejamos fortes!”

        Azif fitou Dova com uma mescla de temor e alívio. Estava sendo um longo dia, como ele havia previsto.

        O Grão-Mestre Bendante ajeitou os abafadores de ouvido e começou a gesticular para os contrabandistas se agruparem em tropas de acordo com as armas que empunhavam. Azif virou-se para Dova e disse, “São para nos proteger do zumbido das lampreias-voadoras. Senão elas vão acabar prejudicando nosso desempenho... que azar, esses bichos atacarem logo na hora da agitação das lampreias.”

        “Nem você, nem eu nem Euro vamos precisar disso”, respondeu Dova. “É como se este uniforme aqui fosse especial, ele está sussurrando coisas na minha mente, e muito mais rápido do que Charya poderia fazer. Ele me diz para fazer isto...”

        Dova suspirou e tocou os ouvidos de Euro e Azif. Eles sentiram um calor intenso, a intensificação do zumbido e... em poucos segundos, aquele começo de moleza provocada pela proximidade das lampreias cessou totalmente.

        “Vamos pra fora,” Euro gritou, erguendo o punho. “Estou pronto!”

        Azif balançou a cabeça, meio preocupado mas maravilhado com aquilo, e sacou da coxa uma espada curva negríssima, “Alguns paradoxos geram coisas assim, Dova. E o seu?”

        “Ainda não me disse nada sobre isso. Quem sabe lá fora. Vamos.” Azif notou que, embora a aparência física dela fosse a mesma de antes – salvo pelo uniforme mais branco que o branco, cheio de símbolos estranhos decalcados na superfície, feitos de linhas prateadas – seu jeito parecia o de alguém com bem mais dos treze anos que tinha.

        Os grupos de contrabandistas foram se espalhando pelo cânion que desembocava na caverna oculta, sob a liderança do Grão-Mestre. Os três uniformizados – os três Prodígios – foram correndo na frente, as pernas impulsionadas com rapidez pela energia compartilhada pelos paradoxos.

        E, ao virar uma curva, perceberam que a situação era bem pior do que pensavam: não só Charya lutava desesperadamente, junto com quatro nômades, contra aquelas distorções semissólidas de calor e umidade, que o Grão-Mestre chamava de camaleões do meio dia... como parecia que as lampreias voadoras haviam se unido a eles.

        Parecia impossível que aqueles coisas irracionais, parecendo libélulas monstruosas, estivessem atacando em enxames organizados (podia-se perceber a lentidão nos movimentos dos contrabandistas, embora menos em Charya), mas logo o trio percebeu a fonte daquela ameaça, que visivelmente comandava as lampreias e os camaleões: uma menina esbelta, de cerca de quinze anos, cabelos azulados e curtos fustigados pelo vento do cânion, vestindo um uniforme-paradoxo de cor azul-cobalto, cheio de ranhuras azul-turquesa.

        Os olhos da garota azul estavam tomados de uma cor estranha, como a aurora boreal, mudando de jeito surreal com a ferocidade dos golpes de espada curta que a menina desferia em Charya.

        Vermelho contra azul, e os olhos multicoloridos, mergulhados num transe frenético, da mesma cor da carne da coisa gigante que havia sido morta para alimentar o vício dos sacerdotes da Terra Castanha, Dova logo percebeu.

        Os alienígenas ofendidos pela morte do primeiro mensageiro haviam escolhido um segundo... ou na verdade, uma segunda mensageira, que vagava pelo Ermo. Dova, Azif, Charya e Euro podiam não saber disto, mas eram considerados culpados; e iriam pagar.

        Junto com o zumbido, o clamor da batalha decisiva ficava mais forte...




domingo, 20 de março de 2011

PROFISSIONAIS

Arthur Ferreira Jr.'. lhes traz o Quarto Episódio da



O SOL JÁ HAVIA PERDIDO UM POUCO DAQUELE ARDOR que tostava o Ermo da Condenação e as criaturas que passavam por ele. Duas dessas criaturas, Azif e Dova, esgueirando-se em meio a uma série de pilares de calcário de cor mostarda, agradeciam a qualquer um dos deuses da Terra Castanha pela diminuição do calor.

    Dova agradecia por não conhecer nenhum outro deus que não os adorados pelos fanáticos da cidade onde vivia até poucos dias, e por sentir muito o calor com aquela roupa de pano de saco, quase desmaiara há uma hora atrás; e Azif agradecia aos deuses da Terra Castanha por escolha própria, por um hábito autoimposto e por desconfiar dos totens da gente que vivia no Ermo.

    Alguma coisa em Azif o fazia desejar ser como um dos sacerdotes daqueles deuses antigos, comer das trufas sagradas e beber o vinho do místico, comungar com as entidades celebradas nas cidades e aldeias da Terra Castanha, tão mais vibrantes que os espíritos secos do povo do Ermo. Mas ele sabia que isso não seria mais uma escolha; não só havia no dia anterior sequestrado uma cativa da prisão-elevada dos sacerdotes, como já desde antes lhe seria impossível provar das trufas alucinógenas. Na prática, seria a morte. E lá no fundo, nos momentos mais desesperadores, isso fazia Azif desejar a morte... talvez por isso se voluntariasse para missões arriscadas como o resgate de Dova.

    O ar estava seco como a pele curtida de um zingassauro e Dova arriscou comentar: "Não é possível que esta faixa do Ermo seja habitada. É tão mais seca que a área de húmus onde eu costumava catar trufas!"

    "O principal perigo do Ermo são justamente essas áreas úmidas, Dova. Nunca te disseram isso porque era preciso que você continuasse rondando por ali, caçando as trufas e raízes para sua família. Aquela umidade é... contaminada. Só certas trufas é que são a pureza da pureza, pérolas jogadas no lodo... acho que assim que você estiver instalada direito no acampamento da tribo, vou te levar nos mesmos lugares onde você deve ter frequentado, e te fazer perceber quantas vezes esteve a ponto de ser morta." O rapaz sorriu amargo, mas havia uma centelha de admiração em sua voz: "Você é uma sobrevivente, Dova... um Prodígio."

    A seriedade cansada de Azif voltou rápido e ele cutucou a menina, "Mas vamos adiante. Daqui a pouco esse lugar vai estar cheio de lampreias voadoras, não podemos bobear aqui em plena tarde."

    "Lampreias ... voadoras?" Os grandes olhos negros e brilhantes de Dova franziram sua testa.

    "Parecem as libélulas comuns da Terra Castanha, mas mordem pior que qualquer mosquito; o pior delas não é nem isso, mas o zumbido. Faz a gente ficar meio lerdo e se estiverem em enxames, viramos presas fáceis... e elas se prendem muito a horários, dá pra ouvir o zumbido de lá do acampamento. Lá a distância desfaz o encanto de moleza, mas serve de relógio mais preciso que uma ampulheta, ou que a posição do sol!"

    "Ia ser mesmo um péssimo primeiro dia chegar lá toda cheia de mordidas de inseto..." a mocinha sorriu.

    "A depender do tamanho do enxame, talvez a gente não chegasse lá vivos." Dova engoliu em seco com essa resposta, e concordou, "Então vamos andando, e rápido."

    Saíram do vale dos pilares de calcário (Dova nunca esqueceria o jeito como os raios do sol batiam na superfície áspera dos pilares) e entraram numa espécie de desfiladeiro. Aqui e ali, Azif apontava de vez em quando um grafite sutil, marcando a proximidade do acampamento. Chegaram então a uma espécie de beco sem saída.

    "E então?" perguntou Dova, a ansiedade voltando sem avisar.


    "Preste mais atenção, a percepção é a virtude mais importante para quem vive no Ermo." Azif saboreou a ironia dessas palavras, lhe veio a fugaz impressão das percepções alienígenas que as trufas nunca poderiam o proporcionar, como num sonho, engoliu saliva e continuou: "Me siga..."

    Virou então me plena parede. Havia uma "esquina" de pedra ali, só que Dova não havia reparado antes, por conta do posicionamento dos paredões. Era tudo muito camuflado.

    "Meu pai disse que teve essa ideia de camuflar os paredões depois de uma parábola que ouviu de um sacerdote da Terra Castanha," veio a voz de Azif, como se das próprias pedras. Dova o seguiu apressada, aquilo era praticamente a entrada de uma caverna. "Não era uma história sobre um templo dos deuses, onde havia uma arca...?"

    "Não, não, o santuário camuflado era outro, e você confundiu três parábolas diferentes do mesmo deus, sabia?" Azif se permitiu rir gostosamente. "Mas vamos deixar de discutir religião. Mais alguns metros e estaremos no acampamento..."

    E então Dova ouviu os gritos. Feriam os seus ouvidos de uma forma que nunca imaginou antes, e ela sentiu o ímpeto indetível de correr em direção ao barulho; sensação tão urgente que Dova não teve como desobedecê-la.

    Azif e Dova ficaram boquiabertos diante daquilo: logo na entrada da vasta gruta incrustada nos penhascos, um aglomerado de casinhas de sapé e pedra-pome, cheio de equipamentos estranhos de filtragem de água, grandes cápsulas fervendo líquido, uma música atonal saía de uma das peças de maquinário, e cerca de trinta pessoas vestindo a roupa padrão de nômade dos que atravessam o ermo, mas tudo isso empalidecia diante do escândalo, a dor evidente nas convulsões de um adolescente que gritava de dor, gritava a ponto de quase cuspir os pulmões, segurando a testa com as duas mãos como se fosse arrancar o tampo da própria cabeça. E os reflexos ofuscantes das luzes das tochas-vivas no uniforme-paradoxo do rapazinho, muito similar à própria roupa de Azif, não fosse a cor amarelo-berrante e o metal tão dourado e puro espalhado em padrões hipnóticos pela superfície da veste quase colante.

    E, para Dova, a aparência em si do rapaz era muito chocante: muito musculoso para um adolescente, mãos grosseiras, a testa visivelmente pequena mas larga, os cabelos arruivados e lisos, praticamente sem queixo, pele branca queimada de sol, nariz bem projetado para fora do rosto e, era o que mais assustava Dova era o tamanho e formato da cabeça, com o crânio alongado para trás. Os do acampamento pareciam também assustados, mas não com a aparência do rapaz: e sim com seus gritos, e com a estranha mutação que ia e voltava no uniforme-paradoxo do garoto: ondulações horríveis como se o uniforme fosse composto de besouros e outros tipos de insetos rastejantes, que volta e meia uniam-se como uma malha de tecido espesso e amarelado; cada vez mais amarelado, cada vez mais berrante.



    Dova havia tido a impressão que ia encontrar todos vestidos com aquele tipo esquisito (apesar de atrante) de uniforme; mas não, e ainda mais impressionante, a única pessoa que via com o uniforme, além de Azif a seu lado, gritava como se estivessem lhe matando por dentro. E apesar da preocupação em vários dos rostos, ninguém movia uma palha para ajudar o rapaz. Dova correu para ajudá-lo; mas uma mulher segurou a menina pelo braço e a impediu de tocar o rapaz tão estranho.

    "Calma aí, menina," gritou a desconhecida. "Ou ele aprende a domar o uniforme, ou morre pra pagar a imprudência. Ele roubou esse paradoxo de um tearcubadeira!"

    "Pelo Trovão Persistente, nunca vi coisa assim!" Dova ouviu a voz masculina e rouca entoar trêmula, quando um terceiro olho se formou na testa anormal do rapaz, a pupila muito dourada, quase de luz própria, fixando-se em Dova. Minúsculos bichinhos e insetos formavam a pálpebra amarelada desse olho inesperado.

    "E agora, onde está meu pai?" A voz de Azif berrava para um homem de barba cinzenta. "Que é que esse louco se atreveu a fazer agora, de onde tirou esse paradoxo dourado?..."

    Dova não aguentava mais presenciar a dor do estranho rapaz. Os olhos (não o olho dourado que a fitava com curiosidade e avidez) do mocinho evidenciavam angústia tremenda, e era como se ele tentasse pedir socorro justamente à garota, mas não conseguisse articular palavras, tamanha a dor que o uniforme-paradoxo lhe provocava. Com mais uma contorção, a menina não suportou e empurrou a mulher num esforço desesperado. "Me largue, eu... eu sei o que fazer!"

    Azif olhou perplexo para Dova, mas não conseguiu impedí-la de estender um braço e espalmar a mão esquerda sobre a testa do garoto. A expressão agoniada do menino foi substituída por um ar de alívio supremo, e o ataque (era um ataque?) dos insetos e vermes rastejantes, metálicos e dourados, que cobriam o uniforme amarelo, cessou de uma só vez, os horrendos bichos unindo-se àquela tessitura berrante. O tom agressivo do amarelo diminuiu de intensidade e o feio rapazinho relaxou e respirou fundo...

    "Era o uniforme branco destinado à menina," Dova ouviu sussurros entre os circunstantes. "O neander roubou o paradoxo que era dela... um milagre?"

    Azif correu para o menino ajoelhado diante de Dova, que tirou a mão e viu que a palma estava toda queimada, como se como uma alergia violenta. Amparou o garoto pelas costas e falou, preocupado, "Euro, o que lhe deu na cabeça...? E agora, como é que vamos fazer com você e ela?"

    O garoto (que parecia mais jovem que Azif, embora mais velho que Dova) abanou a cabeça e falou com uma voz muito masculina, mas inesperadamente maviosa e musical: "O povo do meu pai sempre vestiu o paradoxo nas cavernas de onde ele vêm. Não entendi porque este me rejeitou... mas parece ter me aceitado agora." Olhou ressabiado para Dova, os olhos bondosos molhados com a retenção das lágrimas, continuando, "Será que ela vai me perdoar, irmão? Algo me disse, com tanta certeza, dentro de mim, era preciso...! Eu precisava ter meu paradoxo como qualquer neander."

     E então uma voz autoritária, mas carismática, se fez ouvir na gruta, interrompendo os burburinhos: "Você é apenas meio-neander, Euro. Eu achei que poderia morrer se tentasse a comunhão..." Dova e Azif olharam na direção da voz, por trás deles, provavelmente seu dono vindo pelo mesmo caminho que eles haviam acabado de seguir: "Por outro lado, tem toda razão. Vai precisar usar o uniforme agora e com toda a coragem e perícia que conseguir, porque estamos sendo para ser atacados a qualquer instante. Mas antes..."

    O homem forte de bigodes grisalhos e careca quase total, vestindo uma roupa de nômade com aparatos especiais de sobrevivência, capacete arredondado na mão, virou-se para os outros dois adolescentes, sério: "Azif, me conte agora. O que foi que você contou a ela sobre os uniformes...? Seja profissional comigo e diga a verdade, filho."

    Fora do acampamento-gruta, um odor de ozônio preencheu o labirinto-penhasco e a umidade, junto com o cheiro ainda mais forte de trufas-delírio, deixava clara a chegada do segundo Mensageiro... e ele não vinha sozinho.


sexta-feira, 18 de março de 2011

PARADOXOS

... trazidos a você por Arthur Ferreira Jr.'. no terceiro episódio da SAGA DOS PRODÍGIOS







ELA TINHA UM CHEIRO DE BAUNILHA. Dova podia perceber o perfume de longe, e parecia mesmo que a fonte do odor fazia questão de mostrar-se: sobre uma elevação rochosa, bastante característica daquela parte do Ermo, estava em pé, numa pose quase displicente, embora altiva, uma garota usando uma veste vermelha exótica.

    "Quem é...?" sussurrou Dova, sua desconfiança voltando novamente.

    A garota na ponta da rocha não se movia e olhava para outra direção. Parecia ter cerca de dezessete anos e sua roupa brilhava em certos pontos, refletindo o sol inclemente. Azif coçou a testa empoeirada pelos ventos do Ermo e respondeu, sem murmurar: "Sentinela do acampamento. Não precisa ter medo, Dova."

    "O que é isso que ela está usando?" Os reflexos quase incandescentes nas roupas da tal sentinela irritava os olhos de Dova.

    "É um..." ia esclarecendo, mas Dova interrompeu, quase gritando: "O que é essa umidade tão de repente no ar?"

    CALEM A BOCA. Dova ouviu nitidamente a frase em sua mente, uma voz feminina e séria. Dova não pôde reagir nem comentar nada com Azif, porque se surpreendeu com o movimento ágil e súbito da figura de vermelho no topo das rochas, liberando o corpo pelo ar numa acrobacia perfeita; durante a queda Dova enxergou que a garota sacou, em uníssono com a manobra, uma espécie de espada que estava presa em sua coxa, e que Dova não havia notado antes devido à posição anterior da desconhecida.

    Quando aterrissou no chão arrasado do Ermo, a dita sentinela rasgou o ar com a espada, dissolvendo o calor ondulante do meio-dia, que se concentrava de forma peculiar perto do paredão rochoso.



    Azif saiu correndo na direção da nova garota, e Dova não viu alternativa senão segui-lo; embora não com tanta rapidez. O rapaz parou a três passos da menina de vermelho, que arfava após o golpe aplicado no nada, "Charya! O que foi isso?"

    "Até você, gritando, Azif?" Dova percebeu que a voz da sentinela de vermelho era a mesma voz que havia ouvido em sua mente. Parou a uma distância que considerou segura, baseada em algum critério vago e receoso; percebia que os reflexos na roupa da garota mais velha eram pedaços de metal incrustado, de um tom acobreado e que reluziam bem mais que os metais opacos no uniforme de Azif. Os olhos da tal Charya fitaram Dova e a voz de novo se fez ouvir, tanto diretamente na mente da caçadora de trufas quanto na forma normal de som pronunciado: "Então essa é a Dova, hein?"

    "Tive um pouco de problema para resgatá-la, mas é essa mesma." Azif pigarreou e retomou a pergunta anterior: "E o que ... é isso aí, mesmo?"

    Dova reparou que no chão se espalhava uma gosma viscosa, quase transparente, e que vibrava devagarzinho como a nuvem de calor que o golpe da moça de vermelho havia de alguma forma dissipado. "Desde a noite em que você partiu, Azif," respondeu Charya, "esses bichos passaram a espreitar o assentamento. Seu pai os chama de camaleões-do-meio-dia."

    "Meu pai e sua mania de dar nomes a tudo. Está morto de verdade, esse tal camaleão?"

    "Sim, são só espasmos posmorti." Dova foi sentindo a umidade ambiente voltar ao normal. "Olá," arriscou a menina, "seu nome é Charya, não é? O que é essa roupa que você usa?"

    A garota de vermelho gargalhou. Dova sentiu ecos tênues das risadas invadirem sua mente. "Azif! Não explicou a essa criança sobre os paradoxos?"

    "Preferi deixar isso a cargo de meu pai," resmungou alto o rapaz de preto, "Mikhail-Jehova sabe o quanto ele gosta de explicar as coisas."

    Charya riu de novo, dessa vez mais maliciosamente, "Você tem medo é de ser contradito, isso sim."

    "Contradito?" perguntou Dova, curiosa.

    "Azif tem suas próprias ideias sobre tudo ... Dova." A sentinela sorria enquanto Azif olhava para os lados como se não fosse com ele; mas Dova sabia que ele também estava perscrutando o ambiente. "De qualquer forma, mesmo as explicações do Grão-Mestre não vão ser as mesmas coisas do que você experimentar seu próprio uniforme-paradoxo."

    "Vou ter mesmo de usar uma coisa dessas?" Dova parecia ao mesmo tempo desconfiada e ansiosa.

    "Na verdade é o contrário," riu de novo Charya.

    "Hã? Não entendi."

    Azif meteu-se na conversa, "Vamos andando, Charya? Eu não quero ficar o dia inteiro debaixo do sol a pino."

    "Nem venha com essa, só porque usa preto, sei que não está sentindo tanto calor assim;" e Dova notou que era verdade, ele suava tanto quanto suou à noite. "Não vou com vocês; ainda acho que tenho alguns camaleões a matar por aqui. Encontro com vocês mais tarde. Mas até lá... Dova, uma coisa para você mastigar durante o restinho da viagem."

    E tirou uma coisa que parecia uma maçã, cheirando forte a baunilha, de uma espécie de bolso camuflado no uniforme vermelho.

    Dova foi estendendo a mão para pegar o presente quando foi impedida com toda pressa por Azif: "Ficou louca, Charya? Quer desperdiçar todo o meu trabalho em resgatar essa menina?"

    Dova ficou confusa e assustada, mas manteve a calma respirando fundo e perguntou antes que a garota mais velha soltasse uma de suas risadas que reverberava na mente: "O que é isso, Azif? O que é essa coisa? Parece uma fruta... porque não posso comer?"

    Mas foi a própria Charya que respondeu: "Isto é uma espécie de trufa que você, pelo visto, não conhece. O tabu de não comer das trufas, que a família Daury lhe ensinou, minha querida, tem toda razão de ser para um caçador do Ermo. É sábio não comer nada que lhe é oferecido por aqui, a não ser que seja dentro do acampamento." E passou o fio da espada pela trufa-maçã, com delicadeza, sem cortar de fato aquela coisinha valiosa, só arranhá-la.

    "Então você ia me... mas porque não podia comer, afinal de contas? Nunca me explicaram isso, era um tabu, não se dizia o que poderia acontecer. E eu nunca desobedeci."

    Charya olhou para Azif, que balançava a cabeça, desgostoso: "Não, Charya, ela não foi condicionada; eu prestei atenção a isso durante a viagem de volta. Ela nem mesmo percebeu." E sorriu, tentando suavizar o que estava dizendo: "Se comer uma dessas coisas, poderá ficar viciada com muita facilidade... como os sacerdotes da Terra Castanha." Dova torceu a boca ao ouvir falar deles; não havia perdoado os dias na prisão-elevada. Azif continuou, "E se ficar viciada, nunca mais poderá detectar as próprias trufas em que se viciou. Vai deixar de ser um Prodígio"

    "Então é por isso que eles mesmos não entram no Ermo..." admirou-se Dova. "Mas isso é um paradoxo!"

    "Melhor se acostumar," riu mais uma vez Charya, o som irônico ecoando na mente da jovem caçadora de trufas, e adicionando apenas para a mente de Dova, em silêncio, olhando firme para a garota mais nova: Paradoxo é só o que verá enquanto estiver conosco...




terça-feira, 15 de março de 2011

PRODÍGIOS

um tributo à morte da Coisa que Rastejava pelo Ermo ... narrada por Arthur Ferreira Jr.'.



A EXPLOSÃO ATINGIU BOA PARTE da prisão-elevada dos sacerdotes da Terra Castanha. Uma nuvem de pó, impelida pelo vento e pela onda da explosão, varreu os corredores da prisão. E lá dentro, numa cela que devia estar guardada, estava Dova.


"Rápido," falou a voz de um garoto usando um uniforme negro, cheio de ranhuras e partes metálicas brilhantes, o rosto parcialmente coberto por uma máscara também negra. "Não vai querer ficar aqui para ser transformada num ídolo preso para sempre, ou sacrificada para os novos deuses, não é?"


"Quem é você?" perguntou Dova, um tanto alarmada, meio desconfiada, olhos arregalados. Os cabelos castanho-claros da garota estavam grudados em sua testa suada e franzida, e ela só vestia uma "roupa de pano de saco" que os carcereiros lhe deram quando a roupa própria para o deserto começou a feder.


"Você meteu a região numa revolta religiosa," falou o garoto, ignorando a pergunta e expressando uma certa irritação. Dova podia enxergar cicatrizes no pescoço exposto pelo uniforme negro. "Eu estava só esperando uma brecha para te resgatar, então recompense minha paciência ... tá bem?"


Às vezes é melhor se jogar no desconhecido que ficar no conhecido que se sabe ruim, pensou Dova. E saiu correndo pela porta junto com com o garoto, assim que ele terminou de destravar a tranca com um gancho estranho.


"É noite," sussurrou o garoto para Dova. "Vamos aproveitar a confusão para escapar ... e você vai ser muito menos visada com essa roupa dos subúrbios, do que usando uma roupa de nômade."


"Eu não sou nômade," Dova limitou-se a esclarecer.


"Sei disso, senão não estaria aqui. E fale mais baixo."


***


Horas mais tarde, eles andavam pela fronteira do Ermo. A noite terminava e o sol começava a raiar, o calor começando a atingir aquela terra devastada.


"O povo da Terra Castanha é muito fanático," o rapaz quebrou o silêncio que havia imposto mais cedo, por medo de atrair patrulhas. "Você vai ser mais útil trabalhando com meu pai, do que sendo joguete dos sacerdotes."


"Trabalhando?" perguntou Dova.


"Dê graças a Mikael, à Mãe-Monstro, à Rainha Mercúrio ou a qualquer outro dos deuses da Terra Castanha por eles terem te poupado e por eu não estar disposto a escravizar você ... eu ... nós poderíamos fazer isso, mas preferimos que você trabalhe com uma renda justa, é um incentivo."


A garota olhou feio para o rapaz, que agora não lhe parecia tão atraente (o queixo dele tinha uma virilidade que estava além da idade que parecia ter).


"Ademais," continuou o rapaz de uniforme negro, suavizando um pouco a voz, "dizem que Prodígios não devem ser forçados ... não era de Prodígio que os sacerdotes te chamavam?"


"Não é nada milagroso," respondeu Dova. Eu só sei onde estão as trufas pela umidade do ar e da terra.


"Mas não é qualquer um que percebe essas diferenças mínimas sem equipamentos especiais, caros e ... difíceis de reparar e manter. É aí que você entra: meu pai emprega algumas pessoas, menos talentosas que você ..." e nesse ponto o rapaz olhou fundo para a garota, retirando a parte da máscara que cobria seu nariz e olhos; era uma nariz aquilino e um par de olhos muito negros, e estranhamente, sem brilho. "Você ia ser muito mais útil que os equipamentos ou essas pessoas. Vai ganhar um de nossos uniformes-paradoxo. Podia fazer fortuna conosco, em vez de ... ser explorada pela família."


"Eu não era explorada!" protestou a menina, o rosto afogueado. "Era um direito de ..."


"Conversa," interrompeu o rapaz, parando de caminhar. "E se eles se importassem mesmo com você, não teriam deixado que se expusesse diante daquele monstro-trufa ... bastava você ter indicado a localização e seria paga por isso, mas sua família preferiu o espetáculo, para propagar sua fama de caçadora. Mas não importa: agora estão mortos, pelos próprios fanáticos que os pagavam ..."


"Pare com isso."


"É a verdade. Tá bom, não fique assim," voltou a caminhar devagar, esperando que a menina o seguisse. "Eram fanáticos enlouquecidos. As visões que a carne desse monstro-trufa deve ter provocado ... eles dizem ter contatado todo um novo panteão de deuses, sabia?"


"Que diferença faz isso agora ... quero distância deles."


"Não pensa que talvez o que eles tocaram, nas visões, pode ser real?"


A menina estacou, observando o rapaz e seu uniforme negro, seu rosto que revelava ele ser muito mais velho, por dentro, do que por fora. Haviam até pequenas rugas em volta dos olhos; mas tudo muito sutil. Como as trufas que se escondem sob o Ermo, pensou Dova, e só a atenção focada pode perceber.


"Meu nome é Azif." O rapaz esboçou uma tentativa de sorriso. "E você tem razão: não faz diferença alguma."


E continuaram caminhando pelas bordas do Ermo; havia um longo trecho a percorrer até o tal acampamento secreto. À distância, um ruído borbulhante, inaudível para os dois adolescentes, saía por debaixo da terra ressequida. O segundo monstro-mensageiro começava a se formar a partir das trufas, e sua forma e propósito não eram tão pacíficos como os do primeiro ...


Seria um longo dia.


... este foi o segundo episódio da SAGA DOS PRODÍGIOS, uma série experimental de minicontos.

segunda-feira, 14 de março de 2011

HERODES MORDEKAI

uma curta história de feitiçaria e planos dentro de planos, por Arthur Ferreira Jr.'.






O Espírito, na verdade, está pronto, mas a carne é fraca.
Marcos 14:38






"POR QUE USA ESSE NOME, MESTRE? Com toda certeza não é um nome que pais normais dariam a um filho."


"Porque sou um rei. E meus pais não eram tão normais, mas é verdade que este nome de rei não é o nome que ouvia na infância." As sombras se alongavam ao redor do velho, parado na tenda diante do sol que se punha. "Sou um rei em exílio, numa terra estranha. E como tal ... sou obrigado a fazer coisas tão indignas como as que fazia o indigno rei do nome que uso."


"Um rei, mestre? Será que um dia serei digno de ser de fato herdeiro do senhor?"


"Isso não será preciso. Basta reconhecer que também você é um rei em exílio ... todos nós, yogs, somos reis divinos em exílio; apenas facetas infradimensionais de seres poderosos, praticamente infinitos, plenos de magia – mas ainda assim, nobres por sermos sua, de certa, forma, descendência."


"Compreendo ..."


"Não. Não compreende." O velho tossiu, seu rosto se curvou como se fosse pôr a mão na boca para abafar a tosse; mas, como era natural para ele, não o fez. "Como não compreende a necessidade de tornar-se necessário, antes de realmente governar; já que me aborreceu, mais cedo, com perguntas sobre meu plano em andamento."


"Mas, ainda não percebi meu papel nele, mestre."


"Vê o deserto diante de nós?" O velho voltou seu rosto macilento, embora firme, em minha direção. Seus olhos brilhavam com sagacidade e seu cabelo cinzento e encanecido ondulava com o vento, acumulando pequenos grãos de areia. Sorria sarcástico, mostrando os dentes um tanto amarelados. "Toda essa distância daqui até o horizonte é a distância entre nós e o passado – seu presente – o alvo de meu plano. Sua tarefa é assegurar que estará aqui, me chamando de mestre ... meu discípulo."


"..."


A visão desvaneceu-se, embotando como um filme estragado, e eu sentia o zumbido dos insetos do deserto assomarem meus ouvidos; era excruciante. Tudo foi ficando mais escuro, era a noite assombrosa e total do deserto, e consegui me controlar para acordar de verdade.


A luz do sol penetrava pela janela, e fiquei um tanto ofuscado depois de ter estado imerso naquelas trevas ... o pior daquelas trevas do sonho, era que obscureciam as lembranças do que eu havia ouvido – e dito – na conversa com alguém ... parecia-me um velho ... mas mesmo a lembrança do rosto dele se embotava como ... sim, como um filme estragado.


Há tanto tempo não tenho um sonho normal.


Eu sou Virgílio Mago, e adormeci na sala da casa de meu pai, a casa vazia que me causava tanto cansaço. Preciso contratar outra pessoa para manter as coisas limpas, em ordem ... discreta, e que não durma na casa, por mais que tenha espaço e cômodos livres.


Era tão perigoso dormir na casa, dormir em todo o bairro de ***, mas eu havia dominado o perigo, e agora ele era menor graças a meus esforços.


Só que, por conta disso, nenhum sonho mais era normal desde que comecei a estudar a sério a magia, a yog-sothothery. Todos, projeções astrais, caminhadas pela planície onírica de Thangar-Baru ... tornando os sonhos de meus vizinhos mais seguros.


E, se havia tido um sonho vago, como qualquer outra pessoa, seria isso um bom ou mau sinal?


Descanso merecido ... ou um descuido mortal?


domingo, 13 de março de 2011

NÃO À RIMA


Viajou eternidades
E eternidades de eternidades
E eternidades de eternidades de eternidades
E não conseguiu alcançá-la.

Enfrentou monstruosidades
Desbravou túneis cheios de falsidade
Matou a si mesmo no deserto da mediocriedade.

E tudo isso, ah! maldades
De nada serviu ressuscitar num éden de banalidades,
De nada serviu se perder num labirinto de contrariedades.

Sofreu com as calamidades
Até se bateu, em pleno ar, com as maiores potestades
As eternidades retalharam a sua tão orgulhosa identidade
E não conseguiu alcançá-la.

Tudo em vão,
O tempo não lhe estendeu a mão
E no final só encontrou a palavra: não!



quinta-feira, 10 de março de 2011

O PREÇO DA IMORTALIDADE

Por Arthur Ferreira Jr.'.




Para Neith War


Arm yourself because no one else here will save you
The odds will betray you and I will replace you
You can't deny the prize, it may never fulfill you
It longs to kill you, are you willing to die?
The coldest blood runs through my veins:
You know my name.
Chris Cornell, You Know My Name


"ENTÃO, JÁ ESTÁ QUASE AMANHECENDO." A voz no corredor do subterrâneo escuro ecoava de modo distinto. Aquilo era úmido e muito se assemelhava a uma cripta; Belial podia ouvir os pingos caírem no chão parcialmente inundado. "Que tal darmos uma volta lá em cima? Deve ser mais divertido que ficar preso neste poço de vermes."


A forma extremamente pálida de um homem saiu da escuridão quase onipresente, vinda de cima  ele parecia estar com os pés bastante fixos na parede e não ter qualquer dificuldade em se manter ali  e o rosto um tanto inclinado, encarquilhado, movendo os lábios irritados: "Como conseguiu entrar aqui? Como passou despercebido? Como ..."

"Antes de mais nada," interrompeu o vampiro Belial, "as formalidades. Você é Camazotz."


"Você é ... Belial." A figura nas trevas bailou no ar, trêmula, e veio planando sobre o ar úmido; não tocava o chão. "Que mereço pela invasão de meu território?"


"Você é mesmo um vampiro muito antigo," respondeu Belial, "para se expressar em termos de território. Imagino que não queira responder ao meu convite de conversarmos lá fora, por conta disso."


"Doloroso demais. E vá direto ao assunto." Os olhos daquele vampiro, Camazotz, brilhavam azulados na penumbra que circundava a ambos. A diferença entre os olhos dos dois vampiros era de tom: enquanto os olhos de Belial eram de um cobalto muito profundo, Camazotz exibia retinas azul-turquesa quase fluorescentes.


"Então. Pode lhe parecer talvez estranho, nessa sua velhice, mas eu conheço você. Já nos encontramos uma meia dúzia de vezes, com outros nomes. Da última vez, você se chamava ... Yurugu."


"Ah!" O vampiro mais velho pôs a mão, de unhas muito amareladas e sujas, sobre a testa, como se sentisse dor de cabeça. "Pare! Isto é mais doloroso que a luz do sol, pare."


"Não quer remoer velhas lembranças, não é mesmo? Recordar suas identidades passadas então é mesmo um fardo para você, velho?" Belial foi se aproximando do outro vulto vulpino. "Não se irrita com essa coleção de fraquezas que mais de trezentos anos passados nesse corpo lhe obrigaram a manter?"


"Que quer que eu faça? Eu não quero morrer. Não quero voltar à escuridão exterior." O vampiro mais velho parecia estar se recuperando, mas ainda mantinha a mão na testa.


"Não está entediado?"
"Não! Eu gosto de quem eu sou."
"Mesmo que esse eu seja uma coisa artificial, roubada."
“Sim! E não encaro como artificial, não mesmo.”
"Então teme por essa zombaria de vida que ainda lhe resta."


A última frase foi acompanhada por um movimento rápido e Belial segurava Camazotz pelo pescoço; a água espanou-se pelo ambiente umbroso, pequenas gotas cintilando à luz dos poucos candeeiros que luziam no corredor anexo. Camazotz tentava desesperadamente voltar à parede de onde havia surgido, mas a força de Belial parecia maior ... e o vampiro mais jovem lhe sorria ... dentes à mostra. Aquilo irritou o ancião e ele conseguiu ignorar os ecos da dor de cabeça. Seus olhos turquesa brilharam forte, e já ia revidar de algum modo que jamais saberemos qual, porque Belial interrompeu a óbvia demonstração de poder vulpino com uma única frase:


"Eu era Samyhazah."


"Oh!" Os olhos de Camazotz fecharam-se com a dor que inundava seus pensamentos. "Afinal ... que é que você quer? Me torturar? Éramos amigos, da última vez ..."


"O único vulto que permanece na Terra por muito tempo – tempo demais – e não acumula fraquezas como a suas ... medo da luz solar, alergia a vários elementos diferentes, no seu caso também, a necessidade de um território definido, medo das próprias memórias ocultas ... é Kronos. E mesmo ele rejeita o fardo. Pelo que sei, sempre busca a morte, e sem sucesso. Por que você gostaria de provar o que um imortal milenar rejeita, e ainda com todas essas vulnerabilidades que ele não sofre?"


"Por ... não ia entender."
"Entenderia, sim, velho. Eu já matei a razão de sua existência."
"COMO? MOIRA? Onde está Moira?"
"Provavelmente no mesmo limbo onde Nemesyn se esconde, neste exato momento. Na escuridão exterior."
"Seu ... seu desgraçado. Que é que quer de mim?"
"Quase tenho pena de você, porque tenho a mesma motivação. Tenho medo de perder minha identidade atual, e com isso perder o amor ... dela. Numa outra existência, eu teria outra identidade, e esta aqui, este Belial, nasceu dela ... como imagino, com toda certeza, que aconteceu com você."
"E sabendo de tudo isso, porque a matou?"
"Porque eu tenho acesso a coisas que você não tem e que me dizem que quanto mais vampiros eu matar, e de certo modo, mais chances terei de roubar o poder de Kronos. E aí, meu caro, eu não sou como ele, solitário; sou como você, apaixonado. Viverei a eternidade ao lado dela." O outro vampiro não conseguia mais forças para replicar, embora parecesse querer dizer algo. "A eternidade ao lado de Belin."


Belial respirou fundo e sussurrou: "Ar. Coisa que eu tenho certeza que você não precisa mais respirar, não depende mais disso. Mas deixou de ter o prazer de respirar. Com o poder de Kronos, eu terei todos os prazeres e Belin me protegerá do tédio que tortura aquele maldito."


Camazotz afrouxou toda resistência, e pareceu apenas esperar. Os olhos turquesa eram dois minúsculos brilhos na noite ... a noite que terminava com a aurora lá fora, e que terminava com o que estava para acontecer.


"Em nome de Annanke," Belial pronunciou o nome com autoridade e inexorabilidade que pareciam inefáveis, "Eu te desfaço, agora."


E com os braços fortes, puxou os ombros do vampiro ancião, um para cada lado, rasgando-lhe o torso como se não fosse nada. Uma energia brilhante, turquesa, dele escapou, e os olhos perderam aquela última fagulha de vida.


Rápido, Belial agarrou o relâmpago turquesa com as mãos nuas. Os punhos tremiam e as veias de seus braços saltavam com a dor do contato. "A mim," ordenou à energia viva, hiperdimensional, que roubava de Camazotz.



         ...




Lá fora, uma vampira de olhos púrpura balançava as pernas no topo de um edifício. Belin encarava a possibilidade da queda, sem cair, e escondia seus próprios planos de Belial, assim como Belial lhe escondia segredos ...

quarta-feira, 9 de março de 2011

MEU QUERIDO SHOGGOTH

imaginado por Arthur Ferreira Jr.'. após o cancelamento da versão cinematográfica de Nas Montanhas da Loucura



Ela se cansou dos garotos de seu próprio país. Olhava para a tela do computador e só lia besteiras, então, quem sabe procurando em chats com estrangeiros?

    Muita gente falando em péssimo inglês.

    Oh, um egípcio, ela pensou, que interessante, como será a vida dele nesse país que acabou de sair de uma revolução? E a internet foi tão importante nesse acontecimento, e a coisa era tão recente, que era uma ótima maneira de puxar conversa com o gringo ... tekeli@li era o nick que o identificava na tela.

    Mas que homem lindo, ela pensou. Talvez a webcam dele não fosse de muita qualidade, estava meio na penumbra, também, mas podia enxergar razoavelmente bem aquele homem de pele bastante morena, quase negra, mas que não pertencia a um homem negro de verdade, as feições dele eram diferentes, lábios mais finos, nariz bem aquilino – bem, ela não havia estudado isso, mas devia ser um genuíno hamita dos que eram citados nos livros de história!

    Isto a excitou muito.

    Ela começou a digitar num inglês ruim, e ele também respondia numa linguagem um tanto quanto truncada mas com frases bastante charmosas – em pouco tempo a garota despejava seus segredos, sua vida, suas fantasias sexuais, sobre o estrangeiro, e ele parecia muito curioso, muito ávido de saber sobre ela. Sua voz era um tanto melíflua e seu sotaque era bastante estranho, exótico, fascinante, algo que a lembrava de épocas antigas que ela nunca vira.

    Então, num acordo tácito, a conversa mudou para uma espécie de sexo virtual. Ela digitava com sofreguidão a descrição dos atos que queria cometer sobre ele, beijar os lábios do egípcio era o mínimo que queria fazer. A voz do estrangeiro se propagava no quarto da garota, e ela não notou que o ar-condicionado foi parando.

    Estava sozinha em casa, não ligava para nada, só para seu lindo Faraó Negro.

    Gemia e ronronava para ele, que começou a grunhir, entrando no que ela achou que era um orgasmo – mas já?

    E ela, também, muito excitada, aproveitou a exibição do outro para brincar consigo mesma ... até que foi interrompida. Uma massa pegajosa cobria a tela da webcam do estrangeiro do outro lado do mundo, mas não era a substância que ela talvez esperasse.

    Era um protoplasma fervilhante, amorfo, vivo, que se mexia.

    O rosto do Faraó se retorcia, derretendo ... e ela não conteve um grito de pavor.

    A tela começou a mostrar dezenas de imagens, dividindo a tela, imagens que ela nunca antes sonhara em presenciar: visões de 150 milhões de anos atrás, uma rebelião primordial que assassinou vários da antiga raça dominante do planeta, seres alados, com cinco membros em volta do corpo, derrotados por formas mutantes que se erguiam dos mares.

    A divisão das pequenas telas na sua grande tela de computador não obedecia a uma simetria precisa, mais que isso, não obedecia à própria geometria que ela percebia no mundo normal. As imagens pareciam em 3D, muito embora a tela não fosse tão avançada assim. E feriam a retina, a mente, da garota tão curiosa.

    As imagens avançaram pelas eras, e a garota continuava a gritar, suas mãos crispadas em volta do teclado, que ela erguia próximo ao rosto, tirando-o da mesa e quase arrancando o fio que o prendia ao computador. Imagens dos milhões e milhares de anos se passando, até que se focaram nas margens do Nilo, onde um shoggoth vadeava as águas – o povo mutante, amorfo, criado como servidor há milhões de anos – presenciando a chegada de um homem (seria mesmo um homem?) de rosto tão igual ao exótico estrangeiro. Diante dele, os felás se ajoelhavam.

    Depois dessa parada, os anos se transcorreram com imensa rapidez nas telas múltiplas, dividindo-se, como por fissão, sobre a superfície da grande tela. A garota não conseguia reagir, não conseguia fugir daquele espetáculo mutável, uma arte visual viva que se contorcia.

    Outros equipamentos se desligam pela casa da garota.

    A casa toda fica às escuras, e só o computador continua ligado, mostrando aquelas imagens aceleradas, hipnóticas, reveladoras; e num dado momento elas mostram uma coisa assumindo a forma humana, imitando seres humanos e também a uma entidade que os cultos chamavam de Caos Rastejante ... um caos vivo como o shoggoth, assumindo formas inúmeras, porém muitas humanoides.

    Em meio àquela confusão, uma voz mesmérica dançava nos ouvidos da garota, "Aquele de Vida Prolongada te revela, somos todos Antigos, deuses nos abismos das dimensões superiores, minha criança ... pela Terra vários seres que sou eu mesmo se deslocam, e por todo o universo. Mas você não sou eu, nem ele que se precipita sobre ti. São Nyarlathotep e Yhoundeh, ele e você, mas mal sabem disso. Ele anseia pelo Caos e por você."

    E então o barulho de travamento da máquina, como se o HD estivesse com problemas sérios; mas as imagens continuavam céleres ... até que uma horrenda massa protoplásmica escorreu dos circuitos da máquina, quebrando suas placas internas, mas as imagens continuavam se repetindo no monitor. E a voz falou antes de se calar, "Estejam sozinhos."

    A garota gritou, chocada ao limite da loucura, e a enorme massa borbulhou e despejou seu conteúdo revoltante sobre todo o quarto ... cobrindo o corpo da menina, que gritava.

    A substância viva contorceu-se mais uma vez, e parou ... inerte. Em meio àquela protoplasma antes cheio de vida, exaurido pela inserção de filamentos tão mínimos pela rede mundial de computadores, pela chegada do outro lado, tão dolorosa aos órgãos criados espontaneamente ... o cadáver de uma garota, morta, não se sabe de medo, asfixia ou da pura revelação.