terça-feira, 15 de março de 2011

PRODÍGIOS

um tributo à morte da Coisa que Rastejava pelo Ermo ... narrada por Arthur Ferreira Jr.'.



A EXPLOSÃO ATINGIU BOA PARTE da prisão-elevada dos sacerdotes da Terra Castanha. Uma nuvem de pó, impelida pelo vento e pela onda da explosão, varreu os corredores da prisão. E lá dentro, numa cela que devia estar guardada, estava Dova.


"Rápido," falou a voz de um garoto usando um uniforme negro, cheio de ranhuras e partes metálicas brilhantes, o rosto parcialmente coberto por uma máscara também negra. "Não vai querer ficar aqui para ser transformada num ídolo preso para sempre, ou sacrificada para os novos deuses, não é?"


"Quem é você?" perguntou Dova, um tanto alarmada, meio desconfiada, olhos arregalados. Os cabelos castanho-claros da garota estavam grudados em sua testa suada e franzida, e ela só vestia uma "roupa de pano de saco" que os carcereiros lhe deram quando a roupa própria para o deserto começou a feder.


"Você meteu a região numa revolta religiosa," falou o garoto, ignorando a pergunta e expressando uma certa irritação. Dova podia enxergar cicatrizes no pescoço exposto pelo uniforme negro. "Eu estava só esperando uma brecha para te resgatar, então recompense minha paciência ... tá bem?"


Às vezes é melhor se jogar no desconhecido que ficar no conhecido que se sabe ruim, pensou Dova. E saiu correndo pela porta junto com com o garoto, assim que ele terminou de destravar a tranca com um gancho estranho.


"É noite," sussurrou o garoto para Dova. "Vamos aproveitar a confusão para escapar ... e você vai ser muito menos visada com essa roupa dos subúrbios, do que usando uma roupa de nômade."


"Eu não sou nômade," Dova limitou-se a esclarecer.


"Sei disso, senão não estaria aqui. E fale mais baixo."


***


Horas mais tarde, eles andavam pela fronteira do Ermo. A noite terminava e o sol começava a raiar, o calor começando a atingir aquela terra devastada.


"O povo da Terra Castanha é muito fanático," o rapaz quebrou o silêncio que havia imposto mais cedo, por medo de atrair patrulhas. "Você vai ser mais útil trabalhando com meu pai, do que sendo joguete dos sacerdotes."


"Trabalhando?" perguntou Dova.


"Dê graças a Mikael, à Mãe-Monstro, à Rainha Mercúrio ou a qualquer outro dos deuses da Terra Castanha por eles terem te poupado e por eu não estar disposto a escravizar você ... eu ... nós poderíamos fazer isso, mas preferimos que você trabalhe com uma renda justa, é um incentivo."


A garota olhou feio para o rapaz, que agora não lhe parecia tão atraente (o queixo dele tinha uma virilidade que estava além da idade que parecia ter).


"Ademais," continuou o rapaz de uniforme negro, suavizando um pouco a voz, "dizem que Prodígios não devem ser forçados ... não era de Prodígio que os sacerdotes te chamavam?"


"Não é nada milagroso," respondeu Dova. Eu só sei onde estão as trufas pela umidade do ar e da terra.


"Mas não é qualquer um que percebe essas diferenças mínimas sem equipamentos especiais, caros e ... difíceis de reparar e manter. É aí que você entra: meu pai emprega algumas pessoas, menos talentosas que você ..." e nesse ponto o rapaz olhou fundo para a garota, retirando a parte da máscara que cobria seu nariz e olhos; era uma nariz aquilino e um par de olhos muito negros, e estranhamente, sem brilho. "Você ia ser muito mais útil que os equipamentos ou essas pessoas. Vai ganhar um de nossos uniformes-paradoxo. Podia fazer fortuna conosco, em vez de ... ser explorada pela família."


"Eu não era explorada!" protestou a menina, o rosto afogueado. "Era um direito de ..."


"Conversa," interrompeu o rapaz, parando de caminhar. "E se eles se importassem mesmo com você, não teriam deixado que se expusesse diante daquele monstro-trufa ... bastava você ter indicado a localização e seria paga por isso, mas sua família preferiu o espetáculo, para propagar sua fama de caçadora. Mas não importa: agora estão mortos, pelos próprios fanáticos que os pagavam ..."


"Pare com isso."


"É a verdade. Tá bom, não fique assim," voltou a caminhar devagar, esperando que a menina o seguisse. "Eram fanáticos enlouquecidos. As visões que a carne desse monstro-trufa deve ter provocado ... eles dizem ter contatado todo um novo panteão de deuses, sabia?"


"Que diferença faz isso agora ... quero distância deles."


"Não pensa que talvez o que eles tocaram, nas visões, pode ser real?"


A menina estacou, observando o rapaz e seu uniforme negro, seu rosto que revelava ele ser muito mais velho, por dentro, do que por fora. Haviam até pequenas rugas em volta dos olhos; mas tudo muito sutil. Como as trufas que se escondem sob o Ermo, pensou Dova, e só a atenção focada pode perceber.


"Meu nome é Azif." O rapaz esboçou uma tentativa de sorriso. "E você tem razão: não faz diferença alguma."


E continuaram caminhando pelas bordas do Ermo; havia um longo trecho a percorrer até o tal acampamento secreto. À distância, um ruído borbulhante, inaudível para os dois adolescentes, saía por debaixo da terra ressequida. O segundo monstro-mensageiro começava a se formar a partir das trufas, e sua forma e propósito não eram tão pacíficos como os do primeiro ...


Seria um longo dia.


... este foi o segundo episódio da SAGA DOS PRODÍGIOS, uma série experimental de minicontos.

4 comentários:

  1. IMAGENS E ILUSTRAÇÕES, AUTORES E FONTES

    1
    Save Our Souls
    (me passado por Neith; não sei autor nem origem)

    2
    Pintura de Curtis Killorn
    http://www.zupi.com.br/index.php/site_zupi/view/natureza_morta_bem_viva/

    3
    Nightmare
    http://www.eldritchdark.com/galleries/inspired-by-cas/all/a/10

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  2. Muito interessante. Achei que Dova ia se dar mal nas mãos de compradores de escravos.
    Monstro-trufa?

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  3. No começo do miniconto há um link, disfarçado como A Coisa que Rastejava no Ermo ... é o nome do miniconto anterior e tb se refere ao monstro-trufa.
    Quem chamou ela assim foi Azif.
    Se tb checar o marcador de Dova, esse miniconto aparece.
    São só esses dois até agora, de linguagem bem diferente um do outro, mas um depois do outro cronologicamente

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  4. http://sagadosprodigios.blogspot.com/2011/09/prodigios.html

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