domingo, 20 de março de 2011

PROFISSIONAIS

Arthur Ferreira Jr.'. lhes traz o Quarto Episódio da



O SOL JÁ HAVIA PERDIDO UM POUCO DAQUELE ARDOR que tostava o Ermo da Condenação e as criaturas que passavam por ele. Duas dessas criaturas, Azif e Dova, esgueirando-se em meio a uma série de pilares de calcário de cor mostarda, agradeciam a qualquer um dos deuses da Terra Castanha pela diminuição do calor.

    Dova agradecia por não conhecer nenhum outro deus que não os adorados pelos fanáticos da cidade onde vivia até poucos dias, e por sentir muito o calor com aquela roupa de pano de saco, quase desmaiara há uma hora atrás; e Azif agradecia aos deuses da Terra Castanha por escolha própria, por um hábito autoimposto e por desconfiar dos totens da gente que vivia no Ermo.

    Alguma coisa em Azif o fazia desejar ser como um dos sacerdotes daqueles deuses antigos, comer das trufas sagradas e beber o vinho do místico, comungar com as entidades celebradas nas cidades e aldeias da Terra Castanha, tão mais vibrantes que os espíritos secos do povo do Ermo. Mas ele sabia que isso não seria mais uma escolha; não só havia no dia anterior sequestrado uma cativa da prisão-elevada dos sacerdotes, como já desde antes lhe seria impossível provar das trufas alucinógenas. Na prática, seria a morte. E lá no fundo, nos momentos mais desesperadores, isso fazia Azif desejar a morte... talvez por isso se voluntariasse para missões arriscadas como o resgate de Dova.

    O ar estava seco como a pele curtida de um zingassauro e Dova arriscou comentar: "Não é possível que esta faixa do Ermo seja habitada. É tão mais seca que a área de húmus onde eu costumava catar trufas!"

    "O principal perigo do Ermo são justamente essas áreas úmidas, Dova. Nunca te disseram isso porque era preciso que você continuasse rondando por ali, caçando as trufas e raízes para sua família. Aquela umidade é... contaminada. Só certas trufas é que são a pureza da pureza, pérolas jogadas no lodo... acho que assim que você estiver instalada direito no acampamento da tribo, vou te levar nos mesmos lugares onde você deve ter frequentado, e te fazer perceber quantas vezes esteve a ponto de ser morta." O rapaz sorriu amargo, mas havia uma centelha de admiração em sua voz: "Você é uma sobrevivente, Dova... um Prodígio."

    A seriedade cansada de Azif voltou rápido e ele cutucou a menina, "Mas vamos adiante. Daqui a pouco esse lugar vai estar cheio de lampreias voadoras, não podemos bobear aqui em plena tarde."

    "Lampreias ... voadoras?" Os grandes olhos negros e brilhantes de Dova franziram sua testa.

    "Parecem as libélulas comuns da Terra Castanha, mas mordem pior que qualquer mosquito; o pior delas não é nem isso, mas o zumbido. Faz a gente ficar meio lerdo e se estiverem em enxames, viramos presas fáceis... e elas se prendem muito a horários, dá pra ouvir o zumbido de lá do acampamento. Lá a distância desfaz o encanto de moleza, mas serve de relógio mais preciso que uma ampulheta, ou que a posição do sol!"

    "Ia ser mesmo um péssimo primeiro dia chegar lá toda cheia de mordidas de inseto..." a mocinha sorriu.

    "A depender do tamanho do enxame, talvez a gente não chegasse lá vivos." Dova engoliu em seco com essa resposta, e concordou, "Então vamos andando, e rápido."

    Saíram do vale dos pilares de calcário (Dova nunca esqueceria o jeito como os raios do sol batiam na superfície áspera dos pilares) e entraram numa espécie de desfiladeiro. Aqui e ali, Azif apontava de vez em quando um grafite sutil, marcando a proximidade do acampamento. Chegaram então a uma espécie de beco sem saída.

    "E então?" perguntou Dova, a ansiedade voltando sem avisar.


    "Preste mais atenção, a percepção é a virtude mais importante para quem vive no Ermo." Azif saboreou a ironia dessas palavras, lhe veio a fugaz impressão das percepções alienígenas que as trufas nunca poderiam o proporcionar, como num sonho, engoliu saliva e continuou: "Me siga..."

    Virou então me plena parede. Havia uma "esquina" de pedra ali, só que Dova não havia reparado antes, por conta do posicionamento dos paredões. Era tudo muito camuflado.

    "Meu pai disse que teve essa ideia de camuflar os paredões depois de uma parábola que ouviu de um sacerdote da Terra Castanha," veio a voz de Azif, como se das próprias pedras. Dova o seguiu apressada, aquilo era praticamente a entrada de uma caverna. "Não era uma história sobre um templo dos deuses, onde havia uma arca...?"

    "Não, não, o santuário camuflado era outro, e você confundiu três parábolas diferentes do mesmo deus, sabia?" Azif se permitiu rir gostosamente. "Mas vamos deixar de discutir religião. Mais alguns metros e estaremos no acampamento..."

    E então Dova ouviu os gritos. Feriam os seus ouvidos de uma forma que nunca imaginou antes, e ela sentiu o ímpeto indetível de correr em direção ao barulho; sensação tão urgente que Dova não teve como desobedecê-la.

    Azif e Dova ficaram boquiabertos diante daquilo: logo na entrada da vasta gruta incrustada nos penhascos, um aglomerado de casinhas de sapé e pedra-pome, cheio de equipamentos estranhos de filtragem de água, grandes cápsulas fervendo líquido, uma música atonal saía de uma das peças de maquinário, e cerca de trinta pessoas vestindo a roupa padrão de nômade dos que atravessam o ermo, mas tudo isso empalidecia diante do escândalo, a dor evidente nas convulsões de um adolescente que gritava de dor, gritava a ponto de quase cuspir os pulmões, segurando a testa com as duas mãos como se fosse arrancar o tampo da própria cabeça. E os reflexos ofuscantes das luzes das tochas-vivas no uniforme-paradoxo do rapazinho, muito similar à própria roupa de Azif, não fosse a cor amarelo-berrante e o metal tão dourado e puro espalhado em padrões hipnóticos pela superfície da veste quase colante.

    E, para Dova, a aparência em si do rapaz era muito chocante: muito musculoso para um adolescente, mãos grosseiras, a testa visivelmente pequena mas larga, os cabelos arruivados e lisos, praticamente sem queixo, pele branca queimada de sol, nariz bem projetado para fora do rosto e, era o que mais assustava Dova era o tamanho e formato da cabeça, com o crânio alongado para trás. Os do acampamento pareciam também assustados, mas não com a aparência do rapaz: e sim com seus gritos, e com a estranha mutação que ia e voltava no uniforme-paradoxo do garoto: ondulações horríveis como se o uniforme fosse composto de besouros e outros tipos de insetos rastejantes, que volta e meia uniam-se como uma malha de tecido espesso e amarelado; cada vez mais amarelado, cada vez mais berrante.



    Dova havia tido a impressão que ia encontrar todos vestidos com aquele tipo esquisito (apesar de atrante) de uniforme; mas não, e ainda mais impressionante, a única pessoa que via com o uniforme, além de Azif a seu lado, gritava como se estivessem lhe matando por dentro. E apesar da preocupação em vários dos rostos, ninguém movia uma palha para ajudar o rapaz. Dova correu para ajudá-lo; mas uma mulher segurou a menina pelo braço e a impediu de tocar o rapaz tão estranho.

    "Calma aí, menina," gritou a desconhecida. "Ou ele aprende a domar o uniforme, ou morre pra pagar a imprudência. Ele roubou esse paradoxo de um tearcubadeira!"

    "Pelo Trovão Persistente, nunca vi coisa assim!" Dova ouviu a voz masculina e rouca entoar trêmula, quando um terceiro olho se formou na testa anormal do rapaz, a pupila muito dourada, quase de luz própria, fixando-se em Dova. Minúsculos bichinhos e insetos formavam a pálpebra amarelada desse olho inesperado.

    "E agora, onde está meu pai?" A voz de Azif berrava para um homem de barba cinzenta. "Que é que esse louco se atreveu a fazer agora, de onde tirou esse paradoxo dourado?..."

    Dova não aguentava mais presenciar a dor do estranho rapaz. Os olhos (não o olho dourado que a fitava com curiosidade e avidez) do mocinho evidenciavam angústia tremenda, e era como se ele tentasse pedir socorro justamente à garota, mas não conseguisse articular palavras, tamanha a dor que o uniforme-paradoxo lhe provocava. Com mais uma contorção, a menina não suportou e empurrou a mulher num esforço desesperado. "Me largue, eu... eu sei o que fazer!"

    Azif olhou perplexo para Dova, mas não conseguiu impedí-la de estender um braço e espalmar a mão esquerda sobre a testa do garoto. A expressão agoniada do menino foi substituída por um ar de alívio supremo, e o ataque (era um ataque?) dos insetos e vermes rastejantes, metálicos e dourados, que cobriam o uniforme amarelo, cessou de uma só vez, os horrendos bichos unindo-se àquela tessitura berrante. O tom agressivo do amarelo diminuiu de intensidade e o feio rapazinho relaxou e respirou fundo...

    "Era o uniforme branco destinado à menina," Dova ouviu sussurros entre os circunstantes. "O neander roubou o paradoxo que era dela... um milagre?"

    Azif correu para o menino ajoelhado diante de Dova, que tirou a mão e viu que a palma estava toda queimada, como se como uma alergia violenta. Amparou o garoto pelas costas e falou, preocupado, "Euro, o que lhe deu na cabeça...? E agora, como é que vamos fazer com você e ela?"

    O garoto (que parecia mais jovem que Azif, embora mais velho que Dova) abanou a cabeça e falou com uma voz muito masculina, mas inesperadamente maviosa e musical: "O povo do meu pai sempre vestiu o paradoxo nas cavernas de onde ele vêm. Não entendi porque este me rejeitou... mas parece ter me aceitado agora." Olhou ressabiado para Dova, os olhos bondosos molhados com a retenção das lágrimas, continuando, "Será que ela vai me perdoar, irmão? Algo me disse, com tanta certeza, dentro de mim, era preciso...! Eu precisava ter meu paradoxo como qualquer neander."

     E então uma voz autoritária, mas carismática, se fez ouvir na gruta, interrompendo os burburinhos: "Você é apenas meio-neander, Euro. Eu achei que poderia morrer se tentasse a comunhão..." Dova e Azif olharam na direção da voz, por trás deles, provavelmente seu dono vindo pelo mesmo caminho que eles haviam acabado de seguir: "Por outro lado, tem toda razão. Vai precisar usar o uniforme agora e com toda a coragem e perícia que conseguir, porque estamos sendo para ser atacados a qualquer instante. Mas antes..."

    O homem forte de bigodes grisalhos e careca quase total, vestindo uma roupa de nômade com aparatos especiais de sobrevivência, capacete arredondado na mão, virou-se para os outros dois adolescentes, sério: "Azif, me conte agora. O que foi que você contou a ela sobre os uniformes...? Seja profissional comigo e diga a verdade, filho."

    Fora do acampamento-gruta, um odor de ozônio preencheu o labirinto-penhasco e a umidade, junto com o cheiro ainda mais forte de trufas-delírio, deixava clara a chegada do segundo Mensageiro... e ele não vinha sozinho.


10 comentários:

  1. IMAGENS E ILUSTRAÇÕES, AUTORES E FONTES

    1
    Camilla d'Errico, Overtures of Grace
    http://www.camilladerrico.com/paintings/show/Vain%20Remains,%20Thinkspace%20Gallery/page:4

    2
    Er ... o sol. Também sem referências a não ser:
    http://educacaoespacial.wordpress.com/forum/

    3
    Nunca acho a referência pra esse Neanderthal muito comum no Google Imagens.

    4
    Graven Image
    http://www.eldritchdark.com/files/galleries/inspired-by-cas/graven_image_2.jpg

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  2. A pedidos, a partir de agora (e retroativamente) vai sempre um link no final para o episódio anterior (e depois, um EDIT com o episódio posterior).

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  3. Go, go, alfa r.
    Agora virou uma série

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  4. É... o meio Neander quase se ferrou.
    1 - Em alguns momentos você colocou o nome de Azif como Aziz. Erro ou foi proposital?

    2 - Gostei do momento em que Azif e Dova falam dos sacerdotes (as parábolas), tem algum referência com personagens Bíblicos? Pergunto pq o cenário me deu a impressão de ser paralelo ao nosso (mesmo que diferente) e um tanto punk-gótico-fantasioso (de cenarios de fantasia mesmo). Ao mesmo tempo que parece ser num local diferente parecer ser num futuro e ao mesmo tempo num passado antes da raça humana homosapiens existir (talvez por causa da mensão dos Neander)

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  5. 1- Rapaz, eu às vezes escrevo errado esse nome. É Azif mesmo, pensei que tinha corrigido os deslizes... talvez o blogspot tenha dado pau na hora que eu corrigi.

    2 - Eu gosto da sua quase confusão ao caracterizar o cenário, ele de certa forma, é propositalmente apresentado assim, mas eu tenho definido quando e onde ele se passa. As parábolas se referem a algo muito mais próximo de você do que pode pensar... se checar o nome das divindades da Terra Castanha, talvez perceba uma certa familiaridade... ou mesmo se concentrar na parábola que foi mencionada e o fato de que ela misturou três histórias citadas. Você pensou na Bíblia por causa da arca? Mais ou menos por aí; mas, mais próximo de nós que Moisés -- e ao mesmo tempo irrealmente distante.

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  6. Quanto aos neander: está bem, a Saga dos Prodígio se passa num futuro muito distante, e inclusive num futuro após um cenário pós-apocalíptico do qual eu não terminei o conto principal pq estou esperando a Neith me passar a penúltima parte. Os neander não aparecem lá, mas saiba (ou lembre) que os neanderthal já têm seu genoma praticamente catalogado de todo. É possível gerar um neanderthal neste exato momento, mas a "ética" impede que possamos estudar in loco essa variação da espécie humana. Eu assumo que essa recriação dos neanderthal foi feita e que com eventos cataclísmicos ela se soltou no mundo e criou costumes próprios, como os do uniforme-paradoxo.

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  7. 1 - A Arca também me fez remeter à bilbia, mas a passagem quem me chamou a atenção e os templos.

    2 - Intressante (ética sucks, as vezes). Muito interessante mesmo o cenário e a concepção dada aos neandertais, no caso, eles voltando a tona dessa forma.

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  8. Digamos que eu poderia ter mencionado uma quarta parábola do mesmo deus, e essa teria muito mais a ver com a Saga do que as outras três.

    E digamos também que uma das maiores divindades da Terra Castanha, Mikhail-Jehova, abençoa o seu blog Zumbinópolis: pois ele é a um só tempo o Guardião do Cemitério e o Dançarino que Dança o Universo.

    Por coincidência, eu estava há pouco ouvindo um cântico da Rainha Mercúrio, com seu grito primal de quem quer tudo e quer agora.

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  9. http://sagadosprodigios.blogspot.com/2011/09/profissionais.html

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