sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

NA VIRADA DO ANO

Versão em português de Chew Me, Crush Me



Desejos não passavam de caprichos, sentimentos separados das necessidades.
Era o que ela pensava, até que veio o Noite de Ano Novo, mudando tudo.
Era uma festa badalada, e a garota imaginava o que poderia acontecer. Sensações de perigo passaram por sua cabeça, mas seu coração aceitou o desafio. Três doses da GARRA, a nova droga no pedaço, por um bom preço, e sem risco de overdose. Garantia de David. David era o melhor amigo do irmão da moça – o detalhe de que ele havia se tornado um traficante não atrapalhara a confiança entre eles.
Você pode imaginar a música que tocava na festa como qualquer uma que te excite. Não faz diferença nenhuma, porque não mais de dez minutos depois que Monique engoliu as pílulas de Garra, os sons tornaram-se apenas os de sua própria mente.
Sons da floresta e da selva. Água pingando. Pássaros cantando, insetos zumbindo. O uivo de um lobo, à distância. Tudo entre as paredes de uma festa de Ano Novo.
Monique pensou estar ficando louca, mas não ousou comentar nada com ninguém. Logo, os sons em seus ouvidos se juntaram aos odores de todos que dançavam ali. Ela podia sentir o gosto do suor de um casal que se agarrava, no lado oposto da boate. O som e o odor e o gosto juntaram-se a visão, com suas novas perspectivas, e ela pôde enxergar as linhas do tempo, enroscando-se ao redor dos dançarinos, sugerindo pontos de pressão vinda do além, e pontos fracos onde ela poderia atacá-los.
Sim, ela poderia atacá-los, ela precisava atacar, morder, mastigar, transformar-se.
Ela não sabia que 0,01%, ou talvez menos ainda, dos usuários da Garra tinha reações como aquela, e ela fazia parte daquele grupo, empurrada a ele pela quase-overdose.  Nenhum desses fatos a preocuparia: a partir daquele exato momento, em que o relógio mostrava 23:59, nenhuma preocupação, nenhuma responsabilidade, nenhum limite eram de interesse de Monique. Ela era verdadeiramente livre.
Pelo menos, ela sentia-se tão livre, tão faminta e selvagem, que agarrar aquele estranho, que a estava atiçando a noite toda, e levá-lo ao dark room, parecia algo tão óbvio. Ela podia ter feito isso antes. Ele era sua presa, implorando que ela o encurralasse e o devorasse.
Ela o abraçou, e eles se beijaram tão profundamente que o rapaz perdeu o fôlego, enquanto eles se arrastavam até a área do dark room. “Preciso te mastigar,” disse Monique, numa voz frenética. “Você quis dizer que precisa demais me dar, né?” brincou o rapaz. Não teve resposta.
Garras afiadas rasgaram seu corpo, num banho de sangue. Uma boca, antes delicada e leve, agora uma mandíbula exagerada, mastigava a carne do estranho já morto. Logo, a garota lobisomem esmagou seus ossos, e chupou o tutano neles. “Eu realmente precisava disso,” ela pensou. E ela precisava de mais.
Os gritos de alegria e comemoração da festa transformaram-se em gritos de medo e dor, implorando o socorro que nunca veio. E então Monique estava livre para o Ano Novo ...

quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

CHEW ME, CRUSH ME

Publicado para o New Year Contest em http://figment.com/books/18097-Chew-Me-Crush-Me



Desire was nothing more than fancy, a feeling apart from need.
That's what she thought, until New Year's Eve came, and everything changed.
That was a hell of a party, and the girl wondered what could result of it. Feelings of danger passed through her head, but her heart accepted the challenge. Three doses of  TALON, the new drug on the block, at a good price and no overdose risk. David guaranteed that. David was her brother's best friend – the fact that he turned into a pusher didn't messed the trust between them.
You can picture the music running at the party as whatever music excites you. That wouldn't make any difference, because after Monique swallowed the Talon pills, no more than ten minutes passed, and the sounds turned to ones that existed only in her mind.
Sounds of the forest and the jungle. Dripping water. Birds singing, insects buzzing. The howl of a distant wolf. All in the confines of a New Year's Eve party.
Monique thought she was mad, but dared not to tell this to anyone. Soon the sounds in her ears were joined by the smells of everybody in the dancing floor. She could taste the sweat of a couple making out, at the opposite side of the club. To sound and smell and taste, the vision added new perspectives, she could see the lines of time, tangling around the dancing people, suggesting points of pressure from beyond and points of weakness where she could attack them.
Yes, she could attack them, she needed to attack, to bite, to chew, to transform.
She didn't know that 0,01% of Talon users had reactions like that, and that she was one of that group, pulled by a near-overdose. None of these facts concerned her: from that moment – when the clock showed 23:59 PM – no preoccupations, no responsibilities, no limits concerned her. She was truly free.
At least, she felt so free, so hungry and wild, that taking this stranger, who teased her all night, to the dark room, seemed so obvious. She could have done it earlier. He was her prey, calling her to corner him and devour.
She hugged him, and they kissed so deeply the guy lost his breath, while they moved to the dark room area. “I need to crush you,” said Monique in a frantic voice. “You mean you have a crush on me, didn't you?” answered the man. He didn't have a reply.
Talons ripped his body in a shower of blood. A mouth, once delicate and soft, was now an oversized mandible, chewing the flesh of the now-dead stranger. Soon the werewolf girl crushed his bones, and chewed the marrow of them. “I totally need this”, she thought. And she needed more.
The screams of joy and celebration at that party then turned to pained and fearful screams, crying for a help that never came. And then she was free to the New Year ...

domingo, 26 de dezembro de 2010

A ESPIRAL SEM LIMITES



Suspensa
Em fluxo
Horizonte de eventos
Mistério vivo para além de toda perspectiva
Ponto de fuga no centro do mundo
Eu sou a Espiral sem Limites.


Mancha se espalhando
O vibrar do flagelo
O ressoar das supercordas
No centro dos centros, a Fortaleza do Firmamento
A Prisão de Tempo que pressiona contra o espaço
Borbulha nas veias do mundo.


Vultos caminham
Impulsos vagam
Sigilos tecem uma teia em Espiral sem Limites
Passado e futuro adquirem seus sentidos
Despertam para a vida dos homens
E veneram o caminho que rodopia dentro deles.


Simetria macabra
Desdobrando-se irracional
Uma superconsciência de fragmentos em órbita
Uma zona de sub-reinos impossíveis
Eu sou a Espiral sem Limites
Território de sua própria mente.





sábado, 25 de dezembro de 2010

Noite Clara: O HOMEM DE CINZA



Agradecimentos a Vagner Campos, que avaliou o cenário da Noite Clara, e a Robert W. Chambers, pela dádiva do Sígno Amarelo.


DE REPENTE, TUDO FICOU ESCURO. NÃO HAVIA NADA LÁ, na mente daquele homem que passava pela rua. Um homem de aparência comum, usando roupas comuns, pouco notáveis, enfatizando suas feições ainda menos notáveis. Ele parecia ser um zé-ninguém que se confundia na multidão … mas isso era impossível. Se eu não sentia nada em sua mente, isso já o tornava perigoso.

Quando a Noite Clara caiu sobre nós, décadas atrás, bilhões de pessoas não aguentaram o choque de seus próprios poderes latentes, estourando suas mentes e cérebros. Outras pessoas entraram num frenesi de loucura e nisso, muitos foram mortos, muito foi perdido. Outras ainda, uma pequena minoria, da qual faço parte, sobreviveu e desenvolveu terríveis poderes psíquicos … e agora toda a população da Terra é composta de paranormais, todos demonstrando vários poderes mentais diferentes, todos … exceto os outros sobreviventes.

A mente daquele homem que caminhava em meio à multidão era igual à de um desses outros sobreviventes. O problema é que todos esses outros estão em coma. Mantidos em animação suspensa, alimentados por máquinas, com pouquíssima esperança de acordarem de um sono sem volta. E o homem sem mente continuava andando.

Eu o segui por alguns quarteirões … precisava falar com ele. Quando fui chegando mais perto, e a multidão ali – numa das poucas metrópoles que restaram no mundo – foi  se dissipando, a vontade de falar com o homem foi diminuindo. Ele continuou andando pelas vielas mais podres da cidade, e eu o seguia, sem coragem de abordá-lo.

Logo estávamos os dois perdidos em ruas cada vez mais estranhas, ou pelo menos eu estava muito confuso. Não sabia para onde o homem estava indo. Começamos a entrar numa das partes mais violentas da cidade, sujeitos mal-encarados me observavam a todo momento, vendedores de peças usadas e comida exótica me olhavam furtivamente … e o homem sem mente continuava andando, ninguém parecia notar sua presença, mesmo que ali, seu terno cinzento já estivesse destoando do cenário.

Comecei a me sentir extremamente paranoico. Que queriam aquelas mulheres que cochichavam nas janelas das casas quase em ruínas? O que eram aquelas bandeiras vermelhas esfrangalhadas, penduradas num poste quase derrubado? Que fazia o símbolo amarelo, o logo da multinacional Carcosa, entalhado no capacho de um dos casebres?

Logo, o homem sem mente virou por esquinas mais desabitadas, e entrávamos num setor de prédios arruinados, uma lembrança dos tumultos, loucuras e destruição da Noite Clara. Num certo ponto, senti um cheiro de almíscar, vindo de um janela quebrada; era bem forte. Ao olhar para a janela, vi o símbolo amarelo de novo. Pichado no que restava do vidro daquela janela. Amarelo forte, quase fluorescente.

Respirei fundo, o logo da Carcosa nunca havia me dado calafrios, mas aquilo na janela me fez parar o ritmo da caminhada. Meu coração acelerado, um pouco de taquicardia, quando fui olhar de novo o homem que seguia, ele havia sumido …



E não houve como encontrá-lo. Era inútil. Me veio a ideia insana de berrar seu nome naquele lugar desolado, mas eu não sabia o nome do homem sem mente. Se não tinha mente, desafiava a compreensão da minha telepatia, não devia ter nome … vaguei, quase em desespero, pelo setor desabitado, evitando as matilhas de cães que rondavam a área. Já ia anoitecendo. E eu precisava denunciar a existência daquela anomalia – daquela aberração, devia ser uma daquelas aberrações poderosíssimas, caçada pelo governo, por patrulhas especiais poderosas, mas não tão insanas quanto as aberrações. Tinha que me reportar a uma dessas patrulhas. Mas eu já havia sido alvo do recrutamento deles, minha telepatia era forte demais, meu lugar só podia ser dentro de uma patrulha de caçadores de aberrações. Qualquer outro lugar despertaria desconfiança demais, e eu seria considerado um inconveniente ou um inimigo. Felizmente, um oficial de patrulha amigo conseguiu me acobertar. Fiquei perdido nas memórias daquela época, enquanto vagava perdido nas ruas sem uma viva alma.

No dia seguinte, alvorecia, e eu consegui chegar a uma parte habitada da cidade. Ninguém estava mais prestando aquela atenção que eu percebi quando seguia o homem de cinza … sim, era um homem vestindo um terno cinza. E eu precisava … precisava falar com aquele homem … mas por quê? Algo sobre uma denúncia … não sei mais. Acho que o homem tinha uma denúncia a me fazer, algo a ser publicado pelo jornal onde trabalho … aquele homem de cinza chegou a falar comigo?

Por que não consigo lembrar? Ele me disse alguma coisa importante? O que eu estava fazendo naquela periferia labiríntica? A tal denúncia tinha algo a ver com a violência nos bairros mais pobres. Só podia ter a ver com os contrabandistas de óleo. Me sentei numa soleira de porta, pensativo, tentando lembrar. O que era mesmo que eu estava fazendo ali?

As pessoas passavam pela rua, eu coçava a cabeça, roía unhas, e ninguém me notava, minha telepatia me dava certeza disso. Não é para se admirar, porque, afinal de contas, quem era eu?

Já não sabia mais.

E quando uma esmola caiu no meu colo, não estranhei … agradeci, estava com tanta fome! Aquela moeda de periferia podia me render o almoço, se eu fosse insistente com os passantes, poderia ter meu jantar garantido, e aquela soleira de porta era confortável, o capacho macio,  já poderia dormir ali sem problemas, ninguém diria nada, aliás, por que diriam? Todos me conheciam, eu e minha roupa cinza esfarrapada.

Eu dormia ali todos os dias, há muitos anos, não era mesmo?

sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

SOBE A MARÉ

Para Nikki








Sobe a maré
Sereias espreguiçam tudo na areia
Caranguejos arranham os corpos dourados
Escamas pouco a pouco arrancadas.


Lua roda no céu
Peço que rode no céu para sempre
Surge o monstro e morde um pedaço da lua
Salpica o sangue adocicado da lua sobre mim.


Essa lua insana
Essa lua que eriça os pêlos de tua nuca
As sombras batem no teu corpo e a paz engana
É que esse corpo quieto, por dentro se contorce.


Sobe a maré
Ela nunca mais pára de descer:
O oceano ferve e o sangue da tuas veias ferve
As sereias se desfazem em mulheres que andam pelas ruas
E correm pelas ruas, sedentas
Sobe a maré e com elas ondula como a lua que gira.


Para sempre, não sei se é,
Mas a maré, rainha de si,
Acha que subirá para todo o sempre, e assim será!



domingo, 5 de dezembro de 2010

ESSA CIDADE É DE EXU

Homenagem à Salvador de 2011 ... Laroyê!
Agradecimentos a um sujeito que assume suas falácias, M. Jambeiro




Nessa cidade todo mundo é de Exu
Come menino, menina e traveco
Toda essa gente desvia a magia


Presente na água podre
Presente na água cortada
E toda a cidade pira


Presente na água podre
Presente na água cortada
E toda a cidade pira


Se traficante ou filho de senador
Ou um imponente e parado metrô
Se pôr despacho é tudo uma coisa só


A força que torce as ruas
Não faz distinção de cor
E toda a cidade é de Exu


A força que torce as ruas
Não faz distinção de cor
E toda a cidade é de Exu


É de Exu, é de Exu
É de Exu
Eu vou engarrafar
Eu vou engarrafar as ruas de lá
Eu vou engarrafar
Eu vou engarrafar
Eu vou engarrafar as ruas de lá
Eu vou engarrafar


...
Vá cantando errado enquanto ouve
http://www.youtube.com/watch?v=COy2ecix-dg

sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

ELA SÓ QUERIA DANÇAR

Por Lady Mizune e Arthur Ferreira Jr.'.



"NÃO É POSSÍVEL. EU DEVO TAR CHAPADA, mas não tomei nada hoje ..."

Os cheiros à volta de Aline se avivaram como chama que recebe combustível novo. Era como uma sinfonia de odores, alguns agradáveis e sedutores, outros terríveis e intoxicantes. A moça já havia experimentado esses sintomas antes, pelo menos duas vezes: era um dos efeitos colaterais daquela droga, uma pílula minúscula, nova no mercado, a chamada Belknap-14. A maioria dos usuários não se referia a ela por esse nome, como aliás acontece com várias drogas por aí: o apelido da nova sensação do momento era a GARRA.

Havia uma boa razão para esse nome, uma garra parecia arranhar a pele do viciado, traçando desenhos invisíveis, às vezes causando prazer, às vezes provocando uma dor excruciante ... às vezes ambos. Outros dos efeitos era esse aumento nos sentidos, essa avalanche de informação sensorial que Aline agora sentia, sozinha no beco, a uns três quarteirões da boate.

O suor começou a descer, frio e quente ao mesmo tempo, pela testa e pelo busto de Aline. O que ela não sabia, porque ainda não lhe haviam dito, era que umas poucas pessoas ... incluindo ela própria ... não ficavam só naquelas alucinações moderadas, naquela larica incrível, naquela sensação de poder, volúpia e glória, viajando em memórias às vezes falsas. Ela iria descobrir isso muito em breve, mas quem iria sofrer com isso não seria ela.

Muito em breve, todas as preocupações de sua vidinha não passariam de merda pisada. E quem pisaria nesse passado, em todas as coisas que um dia lhe foram importantes, seria ela mesma.

Essas ideias subiram da mente inconsciente como um dos cheiros avassaladores que Aline sentia, mas ela ainda não tinha condições de entender nada. Uma pessoa vagava na frente da entrada do beco onde a menina se escondia das colegas. Uma onda de pânico ameaçou surgir, mas não era uma de suas amigas falsas ... um desconhecido parecia estar perdido.

A pele de Aline começou a coçar, mas não era algo irritante. Sua boca começou a ficar cheia d'água. Os cheiros do turista perdido ... eram ... ela tinha que fazer alguma coisa.



Mas ainda assim não se moveu. Alguma coisa a fazia esperar. A coceira continuava, como se os pelos do seu corpo produzissem uma leve eletricidade...

O turista continuava a caminhar. Seu cheiro se dissipava ... ela não podia perdê-lo. Não. Decidiu segui-lo. Sombras moviam-se na penumbra ao seu redor. Estava tudo distorcido, Aline caminhava como se estivesse em um filme em
stop motion, mas já havia sentido isso antes, iria passar. Ouvia risadas curtas, falas ininteligíveis ...
Estava completamente molhada ... Havia chovido? As risadas pararam. Sentia como se algo corroesse suas veias, movesse por debaixo da sua pele. Um arrepio, apesar da confusão de cheiros e cores que não a agradava. Precisava sair dali... Precisava daquele aroma...

Tentou correr da maneira que pôde. mas caiu na calçada. Olhou pra baixo e viu que seu vestido havia mudado de cor. Uma sombra vinha em sua direção. Aline sorria...



e aquele sorriso de olhos fechados era tão sublime, que o homem na entrada da viela estacou, paralisado, e esqueceu o amigo que ia marchando mais à frente, pela rua principal.

Fernando era um turista de outro continente, que havia sido seduzido pelas histórias daquela cidade labiríntica, mas que agora parecia esquecer todas as minúcias dos alertas de cautela que ouvira, de tão seduzido pela beleza e estranhamento daquela situação: uma menina trêmula, que não devia ter mais de dezoito anos, toda sua pele morena porejando de suor, cabelos levemente encaracolados, um vestido preto apertado, deixando o ombro da moça à mostra; e ela estava tropeçando pelo chão, ao mesmo tempo parecia desesperada e aliviada, seu rosto se voltou na direção de Fernando e aquele sorriso se desenhou, atraente e perturbador.

O turista nem se preocupou em avisar o amigo, que devia estar sumindo numa esquina qualquer, naquele exato momento. Sua sombra se desenhou por sobre o rosto de Aline, Fernando queria de todo coração ajudar, a moça tremia com tanta força que poderia estar passando mal a sério, e quem sabe depois o que ele poderia ganhar em troca? A natureza humana é assim, generosidade e ambição mescladas num só ato imprudente.

Infelizmente para Fernando, aquela moça não estava passando mal, apenas indo além de sua natureza humana, sem que nenhum dos dois se desse conta disso, naquele instante em que ela abriu os olhos e o moço enxergou duas pupilas de um castanho claro lindo. O instante durou pouco.

Os instantes sempre duram pouco, mas aquela cena nunca sairia da memória de Fernando, e pareceu ter durado uma eternidade: os olhos gentis se arregalaram, uma fenda negra vertical se abriu nas pupilas agora avermelhadas da menina. O rosto antes inocente assumiu um semblante bestial, de pelos surgindo dos lados do rosto, como se sempre existissem ali, e o sorriso que era angelical ficou cheio de dentes afiados. A criatura não tremia mais, se lançava sobre ele, e uma mão de garras rubras veio na direção do rosto do turista apavorado, e depois veio a boca, faminta, fatal e violenta.

Aquela mordida no braço. Era demais, a dor de estar sendo devorado vivo, estava tudo entrando num slow motion bizarro,  e um torpor analgésico invadiu a alma de Fernando, e enquanto ele sentia seu braço ser roído fora, desmaiou como se forçado a isso por algum veneno misterioso.

Quando alguém o descobriu mais tarde, caído no beco, desacordado, sozinho na madrugada fria, uma laceração sangrenta cortava o rosto do rapaz, e algo muito sádico tinha sido feito a seu antebraço, se é que Fernando podia dizer que tinha mais antebraço. Os moradores daquela parte da cidade ficaram em pânico, e um rumor começou a se espalhar. Quando ele acordasse no hospital, será que conseguiria se lembrar do que aconteceu? Iria contradizer ou confirmar a lenda urbana que nascia e se espalhava como a mancha de sangue que ficou naquele beco?



Que fera seria aquela que havia esmigalhado parte do seu corpo? Mas, mais do que isso, que beleza, qual erva alucinógena, era capaz de ainda levar parte de seu juízo com ela?

***

Aline não sabia como fora parar naquele parque. O que teria acontecido? Lembrava-se do som pesado na boate, de estar envolta em trance. Dos traços invisíveis por sua perna. Da sensação de tudo tentar agarrá-la, os suores, as salivas, e do enjoo que a fez sair dali. Lembrava-se de dois vultos e um tremor repentino. Aquelas loucas …

Serrilhava ainda mais os dentes. Lembrava-se de um rosto... Sua boca encheu-se de água... e de um sabor nunca antes provado. Ela não entendia, e ria. RIA! De como se sentia poderosa mesmo estando deplorável, com sua roupa rasgada e sua pele sangrenta. Não queria voltar pra casa. Queria fugir, mas não precisava! Estava tudo ali, em si, ao seu alcance!

Cansada, deitou-se no asfalto sob um céu levemente nublado, quase sem estrelas. O vento úmido e gélido era como um sopro infantil para sua pele em brasa. Descansou assim, por eras e segundos, até as luzes aparecerem. Cobriu os olhos.

Lanternas ziguezagueavam em sua direção. Dois homens, fardados, a indagaram sobre o que fazia ali a aquela hora da noite. Aline apenas respondeu, serena e lânguida:

"Eu só queria dançar ...”



O INTERNAUTA PERFEITO



Passou o dia naquela solidão de monstro da lagoa
Ruminou pensamentos, regurgitou ideias e arrobas
Misturou todas e semeou eclipses e apocalipses.

Andando por sua teia, tecia um mundo melhor
Melhor para seu próprio bem, o bem maior egoísta.

Zanzou a noite inteira caçando o que fazer, abriu a CAM
Demorou demais pra descobrir os tons certos de seu violão
A toada rompeu a noite, cigarras choravam lá fora.

Andando por sua mente, maldava uma vida melhor
Melhor para sua própria vida, a vida inútil sem fim.

Exibiu postagens de curiosidades, de merda assumida.
Linkou demônios a anjos e borboletas a calangos
Tuitou horrores, vomitou na tela um amor egoísta.

Refazendo a própria mente, moldava um mundo melhor
Melhor para sua casa absurda, a casa da sobrecarga final.

Banzou a tarde inteirinha, maginando grilos e curiangos virtuais
Não sabia o que postar e postou fotos de um futuro impossível.
Curtiu a vida adoidado e cadastrou seu inferno pessoal.

Refazendo a própria vida, deletava um mundo maior
Maior que aquela negação de gente, o internauta perfeito.