Por Lady Mizune e Arthur Ferreira Jr.'.
"NÃO É POSSÍVEL. EU DEVO TAR CHAPADA, mas não tomei nada hoje ..."
"NÃO É POSSÍVEL. EU DEVO TAR CHAPADA, mas não tomei nada hoje ..."
Os cheiros à volta de Aline se avivaram como chama que recebe combustível novo. Era como uma sinfonia de odores, alguns agradáveis e sedutores, outros terríveis e intoxicantes. A moça já havia experimentado esses sintomas antes, pelo menos duas vezes: era um dos efeitos colaterais daquela droga, uma pílula minúscula, nova no mercado, a chamada Belknap-14. A maioria dos usuários não se referia a ela por esse nome, como aliás acontece com várias drogas por aí: o apelido da nova sensação do momento era a GARRA.
Havia uma boa razão para esse nome, uma garra parecia arranhar a pele do viciado, traçando desenhos invisíveis, às vezes causando prazer, às vezes provocando uma dor excruciante ... às vezes ambos. Outros dos efeitos era esse aumento nos sentidos, essa avalanche de informação sensorial que Aline agora sentia, sozinha no beco, a uns três quarteirões da boate.
O suor começou a descer, frio e quente ao mesmo tempo, pela testa e pelo busto de Aline. O que ela não sabia, porque ainda não lhe haviam dito, era que umas poucas pessoas ... incluindo ela própria ... não ficavam só naquelas alucinações moderadas, naquela larica incrível, naquela sensação de poder, volúpia e glória, viajando em memórias às vezes falsas. Ela iria descobrir isso muito em breve, mas quem iria sofrer com isso não seria ela.
Muito em breve, todas as preocupações de sua vidinha não passariam de merda pisada. E quem pisaria nesse passado, em todas as coisas que um dia lhe foram importantes, seria ela mesma.
Essas ideias subiram da mente inconsciente como um dos cheiros avassaladores que Aline sentia, mas ela ainda não tinha condições de entender nada. Uma pessoa vagava na frente da entrada do beco onde a menina se escondia das colegas. Uma onda de pânico ameaçou surgir, mas não era uma de suas amigas falsas ... um desconhecido parecia estar perdido.
A pele de Aline começou a coçar, mas não era algo irritante. Sua boca começou a ficar cheia d'água. Os cheiros do turista perdido ... eram ... ela tinha que fazer alguma coisa.
Mas ainda assim não se moveu. Alguma coisa a fazia esperar. A coceira continuava, como se os pelos do seu corpo produzissem uma leve eletricidade...
O turista continuava a caminhar. Seu cheiro se dissipava ... ela não podia perdê-lo. Não. Decidiu segui-lo. Sombras moviam-se na penumbra ao seu redor. Estava tudo distorcido, Aline caminhava como se estivesse em um filme em stop motion, mas já havia sentido isso antes, iria passar. Ouvia risadas curtas, falas ininteligíveis ...
Estava completamente molhada ... Havia chovido? As risadas pararam. Sentia como se algo corroesse suas veias, movesse por debaixo da sua pele. Um arrepio, apesar da confusão de cheiros e cores que não a agradava. Precisava sair dali... Precisava daquele aroma...
Tentou correr da maneira que pôde. mas caiu na calçada. Olhou pra baixo e viu que seu vestido havia mudado de cor. Uma sombra vinha em sua direção. Aline sorria...
… e aquele sorriso de olhos fechados era tão sublime, que o homem na entrada da viela estacou, paralisado, e esqueceu o amigo que ia marchando mais à frente, pela rua principal.
Fernando era um turista de outro continente, que havia sido seduzido pelas histórias daquela cidade labiríntica, mas que agora parecia esquecer todas as minúcias dos alertas de cautela que ouvira, de tão seduzido pela beleza e estranhamento daquela situação: uma menina trêmula, que não devia ter mais de dezoito anos, toda sua pele morena porejando de suor, cabelos levemente encaracolados, um vestido preto apertado, deixando o ombro da moça à mostra; e ela estava tropeçando pelo chão, ao mesmo tempo parecia desesperada e aliviada, seu rosto se voltou na direção de Fernando e aquele sorriso se desenhou, atraente e perturbador.
O turista nem se preocupou em avisar o amigo, que devia estar sumindo numa esquina qualquer, naquele exato momento. Sua sombra se desenhou por sobre o rosto de Aline, Fernando queria de todo coração ajudar, a moça tremia com tanta força que poderia estar passando mal a sério, e quem sabe depois o que ele poderia ganhar em troca? A natureza humana é assim, generosidade e ambição mescladas num só ato imprudente.
Infelizmente para Fernando, aquela moça não estava passando mal, apenas indo além de sua natureza humana, sem que nenhum dos dois se desse conta disso, naquele instante em que ela abriu os olhos e o moço enxergou duas pupilas de um castanho claro lindo. O instante durou pouco.
Os instantes sempre duram pouco, mas aquela cena nunca sairia da memória de Fernando, e pareceu ter durado uma eternidade: os olhos gentis se arregalaram, uma fenda negra vertical se abriu nas pupilas agora avermelhadas da menina. O rosto antes inocente assumiu um semblante bestial, de pelos surgindo dos lados do rosto, como se sempre existissem ali, e o sorriso que era angelical ficou cheio de dentes afiados. A criatura não tremia mais, se lançava sobre ele, e uma mão de garras rubras veio na direção do rosto do turista apavorado, e depois veio a boca, faminta, fatal e violenta.
Aquela mordida no braço. Era demais, a dor de estar sendo devorado vivo, estava tudo entrando num slow motion bizarro, e um torpor analgésico invadiu a alma de Fernando, e enquanto ele sentia seu braço ser roído fora, desmaiou como se forçado a isso por algum veneno misterioso.
Quando alguém o descobriu mais tarde, caído no beco, desacordado, sozinho na madrugada fria, uma laceração sangrenta cortava o rosto do rapaz, e algo muito sádico tinha sido feito a seu antebraço, se é que Fernando podia dizer que tinha mais antebraço. Os moradores daquela parte da cidade ficaram em pânico, e um rumor começou a se espalhar. Quando ele acordasse no hospital, será que conseguiria se lembrar do que aconteceu? Iria contradizer ou confirmar a lenda urbana que nascia e se espalhava como a mancha de sangue que ficou naquele beco?
Que fera seria aquela que havia esmigalhado parte do seu corpo? Mas, mais do que isso, que beleza, qual erva alucinógena, era capaz de ainda levar parte de seu juízo com ela?
***
Aline não sabia como fora parar naquele parque. O que teria acontecido? Lembrava-se do som pesado na boate, de estar envolta em trance. Dos traços invisíveis por sua perna. Da sensação de tudo tentar agarrá-la, os suores, as salivas, e do enjoo que a fez sair dali. Lembrava-se de dois vultos e um tremor repentino. Aquelas loucas …
Serrilhava ainda mais os dentes. Lembrava-se de um rosto... Sua boca encheu-se de água... e de um sabor nunca antes provado. Ela não entendia, e ria. RIA! De como se sentia poderosa mesmo estando deplorável, com sua roupa rasgada e sua pele sangrenta. Não queria voltar pra casa. Queria fugir, mas não precisava! Estava tudo ali, em si, ao seu alcance!
Cansada, deitou-se no asfalto sob um céu levemente nublado, quase sem estrelas. O vento úmido e gélido era como um sopro infantil para sua pele em brasa. Descansou assim, por eras e segundos, até as luzes aparecerem. Cobriu os olhos.
Lanternas ziguezagueavam em sua direção. Dois homens, fardados, a indagaram sobre o que fazia ali a aquela hora da noite. Aline apenas respondeu, serena e lânguida:
IMAGENS E ILUSTRAÇÕES, AUTORES E FONTES
ResponderExcluir1
Série "Invisible"
Igour Oussenko
http://www.zupi.com.br/index.php/site_zupi/view/corpos_invisiveis/
2
Montagem de Geraldine Georges
http://www.geraldinegeorges.be/
3
Fotografia de Brian Sherry
http://www.zupi.com.br/index.php/site_zupi/view/mergulho_fotografico/
4
Werewolf Girl, de Drakaina Queen
http://drakainaqueen.deviantart.com/
5
Série Fotográfica "Motion"
Bill Wadman
http://www.zupi.com.br/index.php/site_zupi/view/danca_longa_exposicaeo/
Gostei do Conto...
ResponderExcluirAdoro lobisomens, e gostei da descrição da mudança, bem legal...
Faltou só mais a parte da descrição dos odores.
Espero o próximo.
Agradecimentos da minha parte como co-autor dessa história colaborativa:
ResponderExcluirA Vagner Campos, pelo seu entusiasmo por licantropos e indicação da banda Muse, que me deu inspiração para este conto aqui;
A Frank Belknap Long, autor de Cães de Tíndalos, de onde eu me inspirei em alguns pontos, embora os Cães não sejam licantropos; quem ler o (excelente e bizarro) conto, vai saber do que se trata;
A Lady, obrigado por espalhar beleza nos horrores que escrevo.
hehe...
ResponderExcluirSabia que vc iria gostar de Muse.
Acabou que, de fato, a música parece ter contribuído pro processo criativo. O texto está muito bom.
Parabéns.
Ah, sim... o site está mais bonito, mas o Wordpress é sem comparação!
ResponderExcluirauehauehauehaueahe
Abraço!
Eu acho que a função de co-autora é mais minha do que sua... É como se fosse uma viagem na qual fui uma co-piloto, sabe?
ResponderExcluirE há beleza no horror... afinal, ela não está nos olhos de quem a vê? Ou nos poros? Ou nas narinas...
Gostei..muito bizarro e deixa a mente viajar na historia imaginando cada momento vivido por Aline e em outros como Fernando..Parabéns.
ResponderExcluirEu acho muito interessante, mas muito mesmo essa idéia de psicodelia, efeito inebriante, frenesi em relação a "otherkins"(por falta de palavra melhor, não gosto desse termo haha). Essa ideia, pra mim, deveria ser mais difundida, parece t~]ao óbvio agora que esses seres, ao se tranformar, tornar-se a sua essência distorçam os sentidos de forma tão inebriante.
ResponderExcluirParabéns velho, tinah lido no dia qeu você escreveu, rapidamente, mas agora li ele com calma e olha, impressionou.
Outro dia me perguntaram, e respondo, foi esta a música específica do Muse, que acompanhou a criação do conto:
ResponderExcluirhttp://letras.terra.com.br/muse/1547227/
MK-Ultra