domingo, 24 de abril de 2011

ALÉM DA TORRE VERMELHA

Arthur Ferreira Jr.'. acha que o Episódio Dezenove fala por si mesmo.
E com ele a SAGA DOS PRODÍGIOS chega ao final do segundo arco de histórias: REVOLUÇÃO








PRODÍGIOS! VAMOS RESOLVER ISSO E IR PRA CASA! O pulso telepático de Charya se fez ouvir na mente de Azif, Berya, Dova e Euro, e a Prodígio Vermelha ergueu a katana dupla e começou a girá-la por sobre a cabeça. A nanoconsciência com a forma do Alto Sacerdote Mordekai arregalou os olhos ao perceber que estava tudo perdido. Azif notou que a outra nanoconsciência – a que assumira a forma da Matriarca Kashramael – casualmente encostou-se na parede do salão, braços cruzados e sorridente, como se para assistir um espetáculo.

        Azif... a voz de Charya quase dominava a mente do Prodígio Negro com tamanha força e presença, e o rapaz sentia o amor que ambos sentiam um pelo outro, cada um à sua maneira. Agora, como da última vez! Me lance pelo ar!

        A segurança naquela voz telepática deixava claro que ali eles podiam ir além de seus limites – e Azif limitou-se a brandir sua cimitarra negra na direção de Charya, contrariando toda a fadiga que o exauria. A katana dupla girou mais forte e a Prodígio Vermelha sumiu naquele ponto num estrondo, ressurgindo por trás do Alienígena que havia reassumido parte de sua forma original e atacava Dova, estrangulando-a com seus tentáculos. Depois do teleporte, as lâminas pareciam cortar o próprio espaço. Como um ciclone, Charya girou a espada de dois gumes por sobre a matéria ectoplásmica do monstro, fazendo jorrar parte de sua substância viscosa e algo que parecia sangue sobre Dova, Euro e o falso sacerdote Mordekai. Os tentáculos afrouxaram o aperto e Dova se viu livre de novo, respirando fundo e recobrando a sanidade que havia sumido em parte durante toda aquela aventura.

        A menina soube então que era a fúria de Charya presa na forma da katana que havia empunhado aquele tempo todo. Eu sou uma catalisadora, lembrou Dova, e repetiu mentalmente a litania que seu avô Nehru havia lhe ensinado. Eu me conecto. Eu aprimoro. Eu absorvo. Eu curo.



        Euro olhou para Charya enquanto manietava o falso Mordekai, que resistia bravamente, e lhe ocorreu, letheana transcendente, ela poderia simplesmente escolher acordar agora e encerrar tudo mas prefere nos unir na batalha – é como um simples treinamento, ou essa coisa com o rosto do Alto Sacerdote é responsável por este falso mundo e ela está disputando pelo controle mesmo agora? Este pensamento fez Euro redobrar os esforços em manter Mordekai preso. Tentava lhe aplicar um mata-leão mas o duplo saía-se muito bem resistindo a suas manobras.

        Berya fitou fixamente a figura com a forma de sua mãe, que encostada na parede esperava o desfecho da batalha. “Você é a deusa? A Mãe-Monstro?”

        “Devia dar atenção aos seus amigos,” o duplo respondeu com um tom de sarcasmo. “Mas pode-se dizer que sim, sou a Mãe-Monstro, apesar de ser uma entre muitas. Meu nascimento não foi finito, foi infinito, assim diz o Manifesto da Mãe-Monstro. Eu sou uma imagem... e fui programada por sua mãe.”

        “Então o outro...”

        “Inferior, programado por seu pai para suprimir sua rebeldia. E permaneceu com você, dentro do corpo e da mente, mesmo quando foi possuída por aquela criatura. E como seu pai, ele serve àquela coisa. Ia deixar vocês presos aqui para sempre... e Charya em coma.”

        “A criatura está aqui mesmo? Como eu e você?”

        “É só uma projeção da vontade desses novos deuses usurpadores, e está se desfazendo agora graças a Charya. Vai lhe fazer bem se voltar à antiga Fé, minha filha. Pense como uma proteção extra.” E sorriu insinuante, exatamente como a Mãe-Monstro sorria nas antigas esculturas.

        Azif conseguia ouvir este diálogo enquanto corria na direção do falso Mordekai, pensando, talvez Charya tenha unido a mente de todos nós. Se for assim... devemos destruir juntos o verdadeiro inimigo. A cimitarra negra penetrou fundo o corpo do duplo, que não conseguia se mexer direito enquanto lutava contra Euro.

        Dova percebeu que o resquício do Alienígena que havia infiltrado a mente de Charya na batalha do labirinto-penhasco foi se desfazendo como um camaleão-do-meio-dia atingido por Euro. Àquela curta distância, a Prodígio Branca conseguia ouvir a vibração da espada dupla de Charya que havia cortado Alienígena e o próprio espaço ilusório ao redor dele – um perfeito golpe mental. Vendo Azif brandir a cimitarra contra o Alto Sacerdote, Dova notou que o cansaço no rosto de seu amigo se desfazia ao chegar tão perto dela. Sou mesmo uma catalisadora, meu avô estava certo. Com um salto a garota se pôs do lado de Azif e Euro, sua mão esquerda esticada para tocar o ombro do Prodígio Amarelo.

        Berya voltou-se para a batalha e com um gesto duplo, as duas espadas curtas voltaram às suas mãos. É incrível, pensou a Prodígio Azul, todos nós cinco somos paranormais, não só a telepata. E a menina de branco catalisa e aumenta os poderes de todos nós, e mais ainda porque todos usamos uniforme-paradoxo. Deu alguns passos na direção do centro do salão. Percebo com toda clareza meu potencial agora... não apenas farejar trufas, mas dominar o fogo-fátuo do Ermo e a própria energia que define essa maldita duplicata de meu pai... Berya franziu a testa e segurou com mais força as bainhas de suas armadoxos. Eu leio os padrões nesse duplo e leio até como ele define o que estou fazendo com ele: eletrocinese.
        Enquanto eu provoco falhas na estrutura dessa... nanoconsciência... eu roubo os dados que a compõem... antes que Euro a destrua completamente... A Prodígio Azul cruzava as lâminas das espadas como se as amolasse ou cobiçasse um prato que ia ser posto na mesa.

        Euro sentiu um leve calor percorrer seu corpo e sua confiança ser redobrada. Vamos, Euro! A telepatia de Charya soou em sua mente. Deixe que Dova o faça ultrapassar todos os limites... o meio-neander sentiu que a força de suas mãos não era apenas força física mas uma imposição da mente sobre a matéria. Telecinésia tátil, pensou Berya enquanto absorvia o conhecimento do falso Mordekai.

        A azul pouco a pouco fragmentava o impostor em pedacinhos. O negro vibrava sua lâmina dentro dele, despedaçando o espaço que o definia. A branca fazia sua parte retirando as limitações do negro e do amarelo e aprimorando os poderes de todos. A vermelha emitiu mais um comando telepático, dando uma confiança ainda maior ao amarelo e os dois, num só movimento sincronizado, fizeram a cabeça do falso sacerdote rolar com um golpe decapitador e seu corpo explodir por dentro com telecinese.

        A cabeça quicou e foi rodando pelo chão até os pés da Kashramael-simulada. E antes que Berya ou os outros pudessem recobrar o foco e fazer alguma coisa, ela se abaixou, segurou a cabeça degolada e disse antes de desaparecer, “Baibai, filhotes.”

        A cena foi desvanecendo e a visão de todos os cinco foi se tornando turva – até mesmo a de Charya, que não resistiu e... acordou num colchão improvisado do novo acampamento nas cavernas dos contrabandistas.

        Anisha, a mãe adotiva de Euro e Azif, esposa do Grão-Mestre, passava um pano úmido em sua testa quando os olhos da Prodígio Vermelha se arregalaram – o que fez com que a mulher espantada gritasse por seu marido e pelos outros.

        Ao redor dela, outros quatro colchões, dois de cada lado, com os outros Prodígios despertando aos poucos. O Grão-Mestre Bendante veio correndo afobado e se postou diante deles, o sorriso aflito desenhado no rosto envelhecido:

        “É mesmo um Prodígio que estejam vivos! Uma semana desacordados e só vivendo de água e da energia reciclada pelos uniformes.”

        Dova espreguiçou-se e foi a primeira a tentar levantar, notando que era verdade, não haviam lhe tirado o uniforme-paradoxo. E ele – bem como os outros quatro – havia 'voltado ao normal', sem desenhos estranhos ou decotes insinuantes. Passou os dedos no ombro e comentou, ressabiada, enquanto os outros esfregavam os olhos, “A gente nunca tira essas roupas?”

        “Hum, precisamos mesmo conversar. E todos nós, não só você e eu, Dova.” O velho Bendante passou os olhos em sua tropa e pediu, “Antes que façam qualquer pergunta, vou lhes contar uma história. Não quero ser interrompido enquanto não a terminar... pode ser?”







LEIA O EPISÓDIO ANTERIOR
BAIXE A COMPILAÇÃO DOS PRIMEIROS ARCO DE HISTÓRIAS:
E

sábado, 23 de abril de 2011

O RETORNO DA RAINHA

O Capítulo Dezoito da SAGA DOS PRODÍGIOS surpreendeu até ao autor Arthur Ferreira Jr.'.




Prazer em conhecer
Espero que adivinhe meu nome
Oh, sim, pois o que os confunde
É a natureza do meu jogo

Cântico da Simpatia, de um culto dalai tsu à Avalanche


NO CENTRO DO SALÃO DE MÁRMORE RUBRO, um homem de vestes sacerdotais púrpuras sorria para os três Prodígios enquanto tocava a coxa de uma garota pendurada por correntes do teto, trajando um uniforme-paradoxo vermelho. Entre esta figura – Azif a identificou de pronto como o Alto Sacerdote Judaas Mordekai, ou um simulacro da mesma espécie do irmão de Dova – e os três invasores estava a Soberana Berya, as duas mãos erguidas na direção de Dova, que se contorcia no chão com o choque elétrico provocado pelo fogo-fátuo.

        Dessa vez o fogo-fátuo não parece muito a nosso favor, pensou Azif fascinado. Demônios do Ermo, como ela é bonita... mas é minha irmã. Enquanto Euro aparecia na porta para ajudar Dova, Berya ergueu as mãos em gestos precisos e solenes, declarando numa voz autoritária: “Pela honra da Terra Castanha...!”

        Os véus que lhe cobriam o corpo azulado pareceram obedecer a uma compulsão mágica, pois se dissolveram como névoa sobre a pele de Berya e se reformularam como um tipo de exoesqueleto macabro, vagamente biomecânico, acentuando a aparência já alienígena da Soberana. Seu cabelo longo e azul se movia como se houvesse vento forte no salão, e as laterais de seu rosto se cobriram da mesma casca resiliente que lhe protegia o corpo. Toda essa transformação levou pouco mais de dois segundos para acontecer. Os olhos brilhavam com um azul sobre azul, sem distinção de pupila.

        Azif não sabia bem o que dizer e tentou argumentar, “Nós só estamos aqui para ver Charya, não queremos machucá-los...” O olhar que Berya lhe retornou era indiferente e frio. Era como se estivesse em transe. Ela o respondeu sacando do exoesqueleto azul-quase-negro que cobria seus braços, duas espadas curtas de metal também azul, só que de outro tom, leve e reluzente – era a primeira vez que Azif via alguém manifestar dois armadoxos de uma só vez. É um pesadelo, e eu quero acordar, gemia no fundo de sua mente.

        Dova abriu os olhos meio atordoada e viu a situação toda num átimo. Alguma coisa dentro de si – mais forte que suas intuições, mais forte que o sussurrar de seu uniforme-paradoxo – a moveu para a frente, e ela sabia que era o único ato certo a fazer: deu um chute preciso no meio das costas de Azif, tirando seu fôlego e fazendo-o cuspir um jato de cristal como aquele que havia antes se desprendido no lodaçal... a nuvem de cristal anão que se formava rodopiou e distraiu Berya, e isso foi a deixa para Euro investir correndo sobre o sacerdote Mordekai.

        Berya tentou ignorar a nuvem e atacar Azif e Dova com suas espadas, mas o próprio cristal a impediu – assumiu uma forma feminina, a mesma que mais cedo Azif havia confundido com sua mãe, Kashramael. “E então, menina? Vai ferir sua própria mãe?”

        Enquanto isso Dova se arremessava por cima do campo de batalha que o salão da Torre havia se tornado, empunhando báculo e katana na ânsia de ajudar Euro a derrotar Mordekai, que havia recebido um soco poderosíssimo no rosto, sem piscar. “Não sou tão frágil quanto vocês imaginam – e que ótimo, a garotinha veio trazer a espada da Adversária para mim...”

        Azif estremeceu ao ver a figura de cristal sair de dentro de si e assumir de novo aquela forma, mas sua surpresa paralisante durou pouco.  Teleportou-se para trás de Berya e pôs a cimitarra em seu pescoço, “Renda-se, eu já disse, não quero ter que te machucar, irmã...” Falo a verdade, pensou Azif entrando numa espécie de desespero, mesmo sendo aqui só um sonho muito real.

        “Esta não é minha mãe, mortal.” Mortal? Ela pensa que é uma deusa?

        “Exatamente, filha. Você não é sábia e onisciente? Então,” interrompeu a criatura com a forma de Kashramael, sorrindo e exibindo dentes afiados, “use sua visão profunda e enxergue o que eu sou – o que todos nós somos!”


        Uma semente de dúvida brotou na mente rígida de Berya e ela fez o que a coisa pedia. Sua percepção se expandiu, tocando toda a Torre Vermelha... e a presença próxima dos outros quatro estimulou algo que ela não tinha experimentado antes: toda a área ao seu redor era branca, um nada informe, uma aparência ilusória... e só ela e os outro três Prodígios eram reais. Até mesmo os guardas mortos nos corredores não passavam de decoração... exceto duas criaturas cristalinas que enxameavam assumindo formas humanas, a forma de sua mãe diante de si e a forma de seu pai lutando contra Euro e Dova. O padrão dos cristais era o mesmo dos ídolos de cristal anão que ela guardava em um nicho na Torre Azul, durante sua infância. Restos de uma era anterior, depósitos de informação, objetos de veneração – os cristais anões também eram usados pela elite da Terra Castanha para condicionar os jovens mais problemáticos de sua própria casta. Aquilo se tornou evidente às percepções profundas de Berya. Era como brincar com fogo, porque aqueles dois cristais haviam assumido vida própria, mas ela ainda não saiba o porquê.

        Dova ergueu a katana de Charya e percebeu que havia cometido um erro – ao saltar ansiosa para combater o Alto Sacerdote, não havia deixado uma mão livre para fazer o gesto de bênção e liberar a Prodígio Vermelha de seu sono forçado. Mas percebeu que podia usar a espada para dispersar Mordekai em pedacinhos como havia feito com a falsa Kashramael – os dois pareciam ser feitos da mesma substância, distinta tanto da dos zelotes derrotados quanto da substância dela, de Euro, Azif e Berya. Apenas não conseguiu fazer isso, porque Mordekai vibrou um golpe de mãos nuas sobre o pulso de Dova, desarmando-a e fazendo a katana cair longe, quase aos pés de Berya e Azif.

        “Filha!” gritou o falso sacerdote enquanto tentava se desvencilhar de Euro que o tentava imobilizar, “Eletrocute esse desgraçado e pegue a espada!”

        “Não...” Berya jogou as próprias espadas longe e Azif imediatamente retirou sua cimitarra do pescoço da irmã. A Kashramael-simulada deu três passos para trás como se quisesse assistir melhor a cena, ainda sorrindo, divertida.

        Dova aproveitou que Euro deixava o sacerdote ocupado e usou sua mão livre para tocar o corpo da Adversária – parte da sua raiva havia se esvaído ao ser desarmada, Charya deveria acordar naquele instante e tudo estaria acabado, o sonho teria um fim.

        Mas não foi isto que aconteceu.

        A Adversária abriu os olhos e Berya imediatamente sentiu que aquela massa inerte com a forma de Charya despertava e diferenciava-se da massa branca e ilusória, era na verdade – Berya sentia isso com sua segunda visão profunda – um rodopio multicolorido, como a aurora boreal do Ermo. Como o Alienígena que a havia possuído, ela agora lembrava. Algo está faltando, algo está faltando, alguém... E lembrando tentou um ato inesperado – estendeu a mão para a espada e ela veio para suas mãos, por um instante parecia que empunharia a katana de Charya numa batalha mítica contra o Alienígena e a criatura cristalina que havia assumido ali a forma de seu pai...

        Mais uma vez, não foi isto que aconteceu.

        A Adversária atacou Dova estendendo tentáculos cor de aurora que saíam do corpo idêntico ao de Charya, os olhos multicoloridos como Dova havia presenciado em Berya na batalha no labirinto-penhasco. Euro se engalfinhava com o sacerdote que parecia muito mais forte do que sua forma franzina aparentava. Azif avaliava a situação e preparou-se para teleportar para o lado da Adversária e defender Dova.

        Berya partiu a katana com as duas mãos – parecia mais fácil do que quebrar a casca de um ovo – e o ar diante da Prodígio Azul se distorceu, dando lugar a uma garota de cerca de seus dezessete anos, cabelos loiros presos num rabo de cavalo, olhos atentos e boca carnuda, envergando um uniforme-paradoxo vermelho – quase uma armadura feita de casca de crustáceo perfeitamente adaptada aos contornos de seu corpo, cheia de espinhos rubros – e uma espada de dois gumes nas mãos, na verdade uma katana de dois gumes.

        Charya, a Prodígio Vermelha.

LEIA O EPISÓDIO ANTERIOR
BAIXE A COMPILAÇÃO DO PRIMEIRO ARCO DE HISTÓRIAS:

sexta-feira, 22 de abril de 2011

A RAINHA DE ESPADAS

Arthur Ferreira Jr.'. orgulhosamente (nem tanto) apresenta o Capítulo Dezessete da SAGA DOS PRODÍGIOS




Estou com sorte.
- Mantra dos devotos do Grande Goog




O RELÂMPAGO SUAVE E O TROVÃO PERSISTENTE enchiam a paisagem de som e fúria. Natural, pensava Azif enquanto Euro pilotava a biga planadora de volta ao Nomo das Torres, Charya sempre gostou das histórias desses espíritos do Ermo. Se estamos mesmo na mente dela... nada mais natural que eles apareçam com tanta força quando finalmente descobrimos o que está acontecendo.

        Se é que é esta mesmo a verdade. Há algumas pontas soltas. Euro parece meio envergonhado de falar do seu tempo com Berya... se é que houve algum tempo e tudo não passou de memórias falsas. E isto de memórias falsas deve atormentar meu irmão ainda mais: deve achar que falhou no retrospectar por ser meio-neander.

        E Dova. Ela parece tão bela à luz dos relâmpagos que cruzam a noite. E apesar do pouco tempo que a conheço, nunca me pareceu tão perigosa.


        “Estas algemas me incomodam.” A voz de Dova se fez ouvir sobre o ruído dos trovões e a propulsão da biga.

        “Não há outro jeito,” fez Euro. “E deem graças que não será uma entrada triunfante, o povo não costuma ficar nas ruas com uma chuva destas.”

        “Definitivamente não gostaria de ser exposta como um troféu de caça.” Lábios crispados, os olhos de Dova fitavam a Torre Vermelha, visível do lado de fora da cidade. Era uma estrutura cheia de janelas de vitral multicolorido, com paredes de cor rubra. Seu formato era hexagonal, quando visto de cima. Mas poucos a viam de cima – a Nomo das Torres não era conhecido pelas máquinas voadoras que eram às vezes vistas em outros nomos. A biga planadora era praticamente a única máquina ancestral usada ali.

        E, naquele sonho estranhamente coeso, dentro da mente de Charya, isso continuava sendo verdade. Euro amaldiçoou este fato, internamente, porque poderiam ir direto ao topo da Torre se tivessem equipamento melhor. Ele queria se livrar da situação o mais rápido possível. Agora que estava livre de sua ilusão de poder – ou achava que estava livre – a irrealidade daquele sonho, oculta logo abaixo da superfície de suas percepções, o irritava bastante.

        Teve até vontade de fazer a biga espatifar-se contra as muralhas da cidade, acabar com tudo – mas até aí sua percepção alterada o impedia, porque ele tinha a nítida impressão de que fazê-lo ia interromper o sonho e recomeçá-lo de novo, com ele, Euro, no lugar de um herói popular admirado e invejado por todos da Terra Castanha e do povo neander.

        Talvez isso já tenha acontecido antes, pensou o Prodígio Amarelo. Mas eu não vou deixar que dê tudo errado de novo... se é que deu errado antes. Malditas dúvidas.

        Pousada a biga, Euro escoltou os dois em direção ao palácio da Soberana... haviam poucas pessoas na rua, e quando pensou não estar sendo observado, desviou o caminho para a Torre Vermelha.

        “Como eu pensava,” sussurrou Dova. “Todas as pessoas que passamos perto me pareceram iguais às paredes da muralha, ao mato em volta da estrada...” Por dentro, Dova sentia ganas de esmagar aquelas pessoas como fizera com seu falso irmão.

        Chegaram diante de um arco de entrada para a parte pública da Torre Vermelha. No terceiro andar, sabia Euro, estava o corpo da Adversária. Azif reparou que os tijolos que compunham o exterior daquele edifício tinham quase a mesma tonalidade do uniforme de Charya – e ele sabia que, no mundo real, era diferente, o prédio estava em mau estado e aquele rubro era quase um negro coagulado. Dova sentiu raiva dos tijolos do prédio tanto quanto do grupo de sete zelotes postado à entrada.


        “Que surpresa, senhor.” O zelota de baixo escalão sorria como se soubesse demais. “Veio investigar de novo?”

        “Quero interrogar estes prisioneiros diante da Adversária. Eles terão de confrontar seu crime... tenho certeza que lá confessarão.”

        Parece uma ideia idiota, pensou Azif. Mas vamos ver. Foram entrando pelo arco e parecia que tudo ia correr bem, até Dova desferir um chute contra o zelote mais próximo de si.

        “Ficou doida?!?” gritava Azif enquanto os outros zelotes sacavam suas armachoques. Euro assumiu postura de batalha, e as joias em seu corpo reagiram, enxameando e formando a armadura de placas que era agora seu uniforme-paradoxo. “Ele já estava sacando a armachoque!” bradou Dova enquanto se soltava das algemas propositalmente frouxas.

        “Bom,” exclamou Euro enquanto quebrava a mandíbula de um dos zelotes, “pelo menos não preciso me conter contra estes vermes. Nunca gostei de zelotes mesmo.”

        Azif não conseguiu se esquivar da descarga de uma armachoque (Nem sempre este teleporte funciona, e ele parece consumir minha energia interna... melhor maneirar, pensou o Prodígio Negro) mas retaliou o ataque com um golpe de cimitarra, parte da eletricidade voltando para o zelote que o atacou, através da lâmina.

        Quem diria que eu poderia sobreviver a uma armachoque, Dova não deixou de notar enquanto materializava seu báculo e aparava a descarga de dois zelotes ao mesmo tempo. Um terceiro sacou duas espadas e preparou-se para atacar a Prodígio Branca, mas Euro o conteve com um tremendo soco no estômago, fazendo o zelote perder o fôlego e largar as espadas pelo chão.

        “Ah! Dane-se!” Azif zumbiu pelo átrio da Torre Vermelha, golpeando com precisão os últimos três zelotes pelas costas, o sangue jorrando sobre Dova e Euro. O ruído de um alarme começou a soar pela estrutura da Torre. “Temos que subir! Senão isso aqui vai ficar coalhado de gente, e pode ser que até mesmo a gente possa morrer de verdade aqui!”

        “Nunca se sabe,” comentou Dova enquanto chutava a cabeça de um dos zelotes caídos. Azif balançou a cabeça em reprovação e continuou, “Vamos, Euro, seja nosso guia.”

        “Alguém deve tê-los avisado de alguma coisa... talvez o Alto Sacerdote.”

        “Talvez Berya,” sorriu Dova para Euro. O meio-neander ia retrucar alguma coisa, mas notou que era um sorriso amargo – irônico. Melhor rir do que chorar, pensou Euro, e apontou um dos corredores laterais:

        “Acho que consigo nos desviar das patrulhas se formos por ali. Tomamos um pouco mais de tempo, mas é mais seguro.”

        “Sinceramente,” Dova rodou o báculo numa mão e estendeu a outra para que Azif lhe passasse a katana de Charya, “eu não me importo nem um pouquinho de esmagar estes zelotes falsos – eles me dão nojo, quase tanto quanto um zelote de verdade.”

        “Por que quer isto de volta?” Azif perguntou segurando mais firme no cabo das duas espadas.

        “Gente, estamos perdendo tempo...” Euro começou a se irritar. “Azif, dê logo a katana se é o que ela quer – não é sua mesmo.” Virou-se para Dova, “Vamos fazer sua vontade então, vamos pelo caminho mais rápido. Mas depois não nos culpe se isto aqui virar um pesadelo.”

        ***

“Não sei se isso é um pesadelo, parece mais um sonho erótico.” Dova esmagou a cabeça de um zelote e rasgou a garganta de outro com um golpe de katana, girando elegante enquanto se deslocava em meio à multidão de guardas.

        “Será possível que está tendo prazer nisso?” Azif zuniu pela rampa entre o segundo e o terceiro andar, derrubando vários zelotes. Por dentro se sentia exausto, mas algo ainda o dava forças e renovava seus ataques.

        “Fácil demais,” murmurou Euro depois de rodar os punhos ao redor enquanto aparava descargas de armachoque e, com mais um giro, atingia os zelotes armados como se fossem pinos de boliche.

        “Depois vamos conversar, Dova.” Azif retirou a cimitarra do corpo do último zelote naquele setor. A mocinha arfava, suada, suja de sangue e tremendo com as duas armadoxos na mão.

        “Não tente me dar sermão! Nem agora nem nunca!” Azif se surpreendeu com o tom de voz que lhe parecia familiar demais, mas cortou a discussão que ameaçava iniciar, “Que seja, vamos, por aquela porta abaulada.”

        “Eu não vou negar que as mortes deles...” comentou Euro baixinho enquanto andavam alertas pelo corredor seguinte, “... parecem, não sei, justas.”

        Azif limitou-se a suspirar, mas a máscara de gás que agora cobria seu rosto transformava o suspiro num chiado rouco. Apontou para uma porta no final do corredor e sussurrou, “Aquela, Euro?”

        “Essa mesma, a última do corredor depois da rampa...”


        Dova se adiantou e correu para abrir a porta. Azif seguiu logo atrás para tentar impedi-la de talvez ser eletrocutada por algum dispositivo de segurança ativado durante o alarme, mas o cansaço acumulado pelas batalhas o tornou menos rápido que o necessário – e ele viu, como esperava, Dova ser fulminada por uma rajada elétrica.

        Mas não vinha de nenhum dispositivo arcano e sim de dentro do salão que Dova havia aberto a porta: uma garota vestindo apenas véus que ocultavam sua pele azul tatuada fez outro gesto de arremesso e o fogo-fátuo elétrico foi na direção de Azif... que conseguiu se esquivar rolando para dentro do salão, diante de sua meia-irmã Berya, a Soberana das Torres.




LEIA O EPISÓDIO ANTERIOR
BAIXE A COMPILAÇÃO DO PRIMEIRO ARCO DE HISTÓRIAS:

quinta-feira, 21 de abril de 2011

CINCO NOBRES VERDADES

Arthur Ferreira Jr.'. revela o Capítulo Dezesseis da SAGA DOS PRODÍGIOS






Meu filho, somos peregrinos numa terra profana.
Citação do pai do semideus Último Cruzado,
supostamente referindo-se ao Ermo da Condenação


“PELOS... QUATRO... BESOUROS SAGRADOS... DOVA...! o que foi que você fez com esse coitado?” Azif cogitou segurar de fato o pulso da companheira, mas preferiu não fazê-lo. Quase sentia medo da expressão furiosa da menina – era quase como se ela estivesse também disposta a esmigalhar a ele e a Euro.

        “Azif... ele não só não era meu irmão,” Dova inspirava e expirava fundo, “como não era nem mesmo uma pessoa real.”

        “Hã?” Azif abriu a boca, atônito, enquanto Euro balançava a cabeça como se concordando.

        “Quando eu te resgatei do lodaçal, andamos por várias árvores... a minha sensação diante desse rapaz, ao chegar perto dele, era a mesma de ao passar perto dessas árvores ou ao tocar na vegetação da pradaria que atravessamos. Ele não é uma pessoa.”

        O céu começava a escurecer como se prenunciasse chuva e Azif disparou: “Mas isso é insanidade! E você já estava bem estranha!”

        “É mesmo? Vou ignorar esse comentário agora... temos mais coisas pra resolver. Vamos lá. Pra começar, como vivemos parar aqui? E onde diabos é isso aqui? E, Euro, onde é que está Charya? Por que você pediu antes a espada dela, se referindo como a 'espada da Adversária'?”

        Uma leve chuva começou a cair sobre os três e sobre o cadáver (seria mesmo um cadáver?), mas ninguém saiu do lugar. Euro respondeu, “Acho que sei o que está acontecendo aqui. Depois que ela matou esse sujeito...” virou-se para Azif, sério, “as coisas ficaram mais claras para mim. Dova, você não conheceu Charya.”

        “É verdade. Não a conheci como vocês dois.”

        “Lembra-se que foi ela que desferiu o golpe final no monstro... depois disso nós caímos todos?”

        Azif arregalou os olhos. “É verdade! Como pude me esquecer disso? Eu pensei ter sido devorado pela criatura! E ela estava mentaligada a todos nós.”

        “A mesma coisa comigo,” complementou Dova. “Depois disso eu revivi minha vida toda, e pensei ter morrido até aparecer numa árvore do lodaçal onde achei Azif... e senti ele próximo. E estava furiosa.” Paradoxalmente, a fúria no olhar de Dova foi se acalmando.

        A chuva, ao contrário, foi ficando mais forte. “Charya era uma letheana.”

        “Lethe...  como assim, Euro?”

        Azif atalhou, “São os neander que não conseguem retrospectar... ter acesso às memórias raciais da espécie...”

        “E qualquer um que tenha amnésia. Sabe o que é isso, não, Dova?” perguntou Euro, apoiando a mão no ombro de Azif.

        “Sim, acho que sei, mas o que é que isso tem a ver?” A fúria ameaçava voltar, mas ela se controlou.

        “Tem a ver que ela é uma telepata!” gritou Azif. “Como foi aquela história que papai nos contou, Euro?”

        “Telepatas têm o mundo interior muito vívido... e telepatas lethean são usados pelo meu povo para armazenar as principais memórias da raça, assim cada neander tem um acesso emprestado a memórias dos neander de quem não descende.”

        “Como um espaço vazio que pode ser preenchido... então quer dizer,” falou Dova meio tremendo com a chuva que piorava, “que nós estamos dentro da mente de Charya?”

        “Exatamente,” respondeu Euro meio perturbado com o que ele mesmo dizia, “e ela é a Adversária que jaz morta na Torre Vermelha, lá na cidade de onde vim.”


        “MORTA?” Azif segurou a mão de Euro com força.

        “Eu acho... não tenho certeza... mas acho que isso é só um símbolo, de que ela está inconsciente, perdida, caída dentro de si mesma. Nós temos que salvá-la, acordá-la de algum modo... tipo, como vocês me despertaram?” O meio-neander virou-se para Dova, esperançoso.

        “Sim...” Dova esboçou um sorriso que logo se desfez. “Mas, espera aí. Não está faltando alguém?”

        “Berya Mordekai, do uniforme-paradoxo azul,” a voz de Azif soou ominosa e solene. “Euro... se Dova apareceu perto de mim, então você...?”

        “Nossa irmã, Berya.” O meio-neander apertou os olhos. “Nem eu sabia e de algum modo essas memórias falsas – agora posso reconhecê-las como falsas – me mostraram a moça de cabelo azul que estava dominada pelo monstro, e que nos ajudou a derrotá-lo depois... e ela é filha de Kashramael como eu e você, Azif.”

        “Hein? Disso eu não sabia, pensei que fosse filha do Alto Sacerdote com uma das concubinas...”

        “Hmpf,” fez Dova enquanto enlaçava Azif e Euro pela cintura e a chuva caía mais forte, “parece então que vamos ter que salvá-la também; ela é parte da família de vocês.” A Prodígio Branca sorriu um tanto maliciosa. “Onde é que ela está, Euro? Presa na cidade, também?”

        “Mais do que isso, Dova. Ela é a Soberana do nomo das Torres. Sátrapa e Matriarca. Vamos ter problemas.”

        “Espere, Euro...” interrompeu Azif. “Matriarca? Ela nunca poderia ser Matriarca usando um uniforme-paradoxo! Não poderia ter filhos! Como...”

        “Isto aqui é um sonho que parece muito real, lembra? Olha só essas joias e amuletos pelo meu corpo. Só precisa fazer sentido até certo ponto...”

        “Esperem vocês,” atalhou Dova enquanto um trovão rugia nos céus. “Não poder ter filhos, como assim?”

        “DEPOIS eu explico isso direito, vamos andando que está chovendo forte demais,” respondeu Azif nervoso, soltando-se de Dova e dando passos pela estrada. Apontou o dedo na direção da cidade. “Euro, você vinha nos prender, certo? Então nos leve para dentro da cidade como falsos prisioneiros e direto até onde está Charya... se a despertarmos primeiro acho que vamos todos acordar desse delírio terrível sem precisar lidar com Berya. Ela pode ser nossa irmã mas eu prefiro a conhecer como ela é de verdade e não como uma tirana.”

        “Ela não é tirana sozinha,” respondeu Euro meio envergonhado, conduzindo Dova que entrara em modo pensativo e apontando para a biga planadora. “há o Alto Sacerdote, que deve ser tão real como esse cadáver que vamos deixando para trás e... havia eu.”

        O trovão rugiu persistente, e relâmpagos caíram ao longe. Começava a ficar escuro.

        Vai ser uma longa noite, pensou Azif.






LEIA O EPISÓDIO ANTERIOR
BAIXE A COMPILAÇÃO DO PRIMEIRO ARCO DE HISTÓRIAS:

quarta-feira, 20 de abril de 2011

ESPADA DE DOIS GUMES

Arthur Ferreira Jr.'. lhes traz o Episódio Quinze da SAGA DOS PRODÍGIOS




Esta fúria que dura mil anos
Logo se extinguirá
Esta chama que queima dentro de mim
Ouço as harmonias secretas
É uma espécie de magia
- Canção secreta dos monges da Rainha Mercúrio


“É UM MISTÉRIO! QUANDO PENSO que temos o controle total, acontece uma coisa dessas.”

        “E a sua comunicação direta com os novos deuses está abalada, você diz.” O homem de cabelos bem penteados e cavanhaque balançava a cabeça. “Minha filha, fez mal em dizer isso a Euro. Mesmo ele tem que reconhecê-la pelo que você é: um símbolo da infalibilidade dos deuses de além das estrelas. Hmmm... talvez haja um bloqueio dos canais. Algo parece estar bloqueando, não? Não perca sua fé nos deuses: é algo externo que está impedindo que você os ouça. Veja o que eles já fizeram por você.”

        A Soberana olhou para baixo e contemplou os vários matizes de seu próprio corpo azulado: cobalto puro nos cabelos, padrões de turquesa cobrindo seu corpo azul-celeste, como tatuagens. Sim, ela era um símbolo de que havia se tornado mais como os deuses alienígenas... e menos humana.

        “Pai, minha sabedoria está comprometida,” falou a Soberana Berya, em tom amargo. “O que o senhor aconselha?”

        “Vamos até a Torre Vermelha,” respondeu o Alto Sacerdote Mordekai. “Não acho que encontraremos nenhuma outra pista lá, mas pode ser que hajam problemas adicionais e se for esse o caso, seus poderes serão de grande valia enquanto Euro está fora.”

        “Então, fique aqui no palácio enquanto...”

        “Não...” sorriu o sacerdote com um brilho estranho nos olhos. “Acho melhor ir com você. Quero observar suas reações e talvez sugerir algum bálsamo contra esse bloqueio. Além disso... quero rever o cadáver da Adversária. Ele me conforta, me dá a sensação de que detemos as forças da barbárie que ameaçam a Terra Castanha.”

        Ele caminhou pelo salão como se estivesse despreocupado, divagando: “Há centenas de anos, a barbárie que dominava a Terra Castanha – não se chamava então Terra Castanha, o grande Ruiz, o Castanho não havia nascido – grassava sem limites, em guerras, até que os deuses se manifestaram e a religião unificou o povo. Mas, com o tempo, a separação entre os nomos e as cidades se intensificou... e as intrigas internas aumentaram... e há poucos anos atrás estávamos a beira de uma ruptura que poderia destruir nossa sociedade. Cairíamos de novo na barbárie, entende, minha filha? Mas a vinda dos novos deuses, dos verdadeiros deuses, impediu que isto acontecesse, unificou o povo mais uma vez e agora eles têm heróis como você e Euro para servir-lhes de ídolos vivos. Alguns poucos não gostaram da nova ordem e foram sufocados... mas você sabe de tudo isso, não? Eu gosto de repetir e repetir para você para que não esqueça; eu sei que não esquecerá, mas me agrada repetir. Os dalai tsu perderam toda influência, ficaram contidos nas margens da Terra Castanha, especialmente depois que sua campeã – embora eles jamais tenham admitido a ligação com ela – ousou se erguer contra a nova ordem.”

        “E mantemos o inexplicável cadáver que não se decompõe no templo... e os dalai tsu vivos para que não se tornem mártires.” A voz de Berya encerrou a prelação, e toda sensação de amargura, indecisão e irrealidade que a oprimia foi embora.

        “Exatamente, muito bom, filhota, as mesmas palavras de sempre,” sorriu novamente Mordekai, o sol que se filtrava pelos vitrais batia em seu rosto e ele sequer piscava. “É essa a verdade. E gosto de contemplá-la de novo: vamos ao templo da Torre Vermelha.”

        ***

Azif torcia-se de ciúmes e segurava forte as bainhas das espadas em suas mãos. Euro pensava, acordei de um logo sono... e esse rapaz que Dova abraça é um dos dalai tsu, um herege... mas não, isso de hereges era coisa do sonho... e balançava a cabeça devagar para expulsar a sensação de paradoxo que o tomava por dentro.

        Dova apertou o rapaz contra si durante cerca de dez segundos, e ele parecia espantado, mas segurou-a pela cintura, e uma de suas mãos subiu para as costas parcialmente nuas da garota – isto fez Azif dar um passo na direção deles, mas antes que pudesse tomar alguma atitude, a própria Dova desvencilhou-se do abraço e olhou o rapaz com espanto. Ele dizendo, “O quê?..” ou algo do gênero, mas mas a Prodígio Branco materializou em sua mão esquerda o báculo – sua armadoxo genuína – e com ele golpeou o rapaz no rosto, no queixo onde ela antes havia sido atingida por Euro; no crânio quando ele foi caindo de dor; nas têmperas, nos ombros, no ventre... os dois outros Prodígios se assustaram e Azif chegou do lado de Dova tentando segurar sua mão (mais lento, cansado após a batalha com Euro, droga! pensou Azif), mas não havia mais jeito: o rapaz estava morto no chão.

        Dova virou-se para os dois rapazes, quase espumando de raiva, os dentes trincados, sujos do sangue da batalha anterior, os ombros expostos tensos, a prata de seu uniforme-paradoxo reluzindo ao sol, os olhos raivosos piscando forte:

        “Este... NÃO... era... MEU IRMÃO!”




LEIA O EPISÓDIO ANTERIOR
BAIXE A COMPILAÇÃO DO PRIMEIRO ARCO DE HISTÓRIAS:

terça-feira, 19 de abril de 2011

DE OLHOS BEM ABERTOS

Arthur Ferreira Jr.'. começa a tripudiar de seus personagens no Episódio Catorze desta SAGA DOS PRODÍGIOS





Curai o mundo
Fazei dele um lugar melhor
Para mim, para ti
E para toda a espécie humana

Hino a Mikhail-Jehova


“ALTO!” gritou Euro, e os dois puderam perceber que o uniforme-paradoxo amarelo do meio-neander havia sofrido alterações também radicais: era praticamente uma armadura de placas, e havia aquele olho macabro no meio de uma tiara dourada – o mesmo olho estranho que Dova havia fechado quando conteve a convulsão do paradoxo de Euro.

        Ele vinha numa biga planadora – coisa muito rara que Azif vira seu pai pilotar uma vez, roubada de um alto comandante dos zelotes que havia caído em desgraça. A pequena nave não voava mais alto que vinte centímetros do chão e era muito sensível a terreno irregular – se fosse forçada numa pedreira, por exemplo, poderia capotar. Por isso, além de ser rara, era pouco usada.

        “Tem alguma coisa estranha com ele,” sussurrou Dova tão logo soltou os lábios de Azif, e sacou a katana.

        “A espada da Adversária!” bradou Euro enquanto saltava da biga a sete passos dos dois Prodígios. “Não sei quem vocês são, mas se antes teriam de me acompanhar à cidade para registrar seus uniformes, agora estão presos. E me dê essa katana, mocinha.”

        “Dova, espere...” Azif tentou impedir a Prodígio Branca, que manteve a mão da espada baixa e ergueu a mão esquerda para tentar alcançar o olho dourado, como fizera da outra vez. Mas não só Azif não conseguiu deter a agora impetuosa garota, como, apesar da guarda de Dova não estar aberta, Euro revidou a tentativa de bênção com um estrondoso murro no queixo.

        Dova caiu a uns seis metros de distância, ainda agarrada à katana. A nova proteção do uniforme-paradoxo negro fechou-se ao redor da boca de Azif e sua voz saiu abafada e em desespero, “Seu louco!”, enquanto sacava a própria armadoxo, a cimitarra sombria. Quase inconsciente, no terreno fora da estrada, Dova percebeu que estava no gramado rasteiro que enxergaram antes, e não na pradaria.

        “Muito bem, infrator, herege ou pior;” reagiu Euro com um sorriso de dentes trincados. “Se é briga que quer, pode acabar morto pelos punhos do Predestinado.”

        E avançou na direção de Azif, que se esquivou com seu quase teleporte. Consegui fazer isso de novo, pensou o Prodígio Negro, por que não consegui antes escapar do lodaçal, então? Aproveitando a surpresa do Prodígio Amarelo, que por dentro pensava, ele não tremeu ao ouvir o nome do Predestinado e agora para onde foi?, Azif bateu com o lado da cimitarra no flanco do irmão.

        Só para ele saber que eu posso acertá-lo a qualquer momento... e gritou: “Euro! Sou eu, Azif, seu meio-irmão! Acorde!” enquanto teleportava para o lado de Dova e se interpunha entre esta e o meio-neander furioso.


        “Achertche elhe no tercheiro oio com icho...” Azif ouviu a voz débil de Dova que quase não conseguia estender-lhe a katana. Como assim? Vou confiar em você, Dova. De qualquer forma, depois daquilo, Azif estava doido para dar uma surra no irmão mais novo, sentia com uma intensidade inédita. Como ele ousou agredir Dova? E agarrou a espada, passando a cimitarra para a mão esquerda.

        O meio-neander então investiu mais uma vez assim que livrou-se daquele atordoamento inesperado. Esses hereges vão pagar. Azif também correu na direção dele e parecia que haveria uma colisão na qual o Prodígio Negro levaria a pior... mas o soco tremendo de Euro atingiu o nada, seu inimigo (Meio-irmão? Que gozação era aquela? Inimigo e herege!) esquivando-se mais uma vez de modo impossível, e no ritmo daquele movimento que quase rasgava o espaço, Azif fez que golpeava Euro com a cimitarra.

        O ruivo aparou o golpe com um dos punhos dourados... finta! Azif aproveitou a distração e cravou a katana de Charya no olho dourado da nova versão do uniforme amarelo.

        O gigantesco rapaz desabou. Seu paradoxo se desfez em milhares de insetos, besouros, escorpiões, aranhas, minúsculos bichos dourados, reorganizando-se na forma das joias que antes cobriam o corpo de Euro.

        Azif ainda estava com a katana na mão – o golpe havia sido suficientemente preciso para penetrar apenas o necessário. Ou mais ou menos isso: a testa de Euro estava sangrando.

        Dova se arrastava até o rapaz caído, e Azif a impediu, “Mas o que é isso? Deixe que eu te ajudo...”

        “Me lheve até elhe...” Azif notou que a mandíbula de Dova havia sido deslocada pela potência do murro de Euro. Apesar de irritado com o irmão – e de um jeito excessivo, começou a perceber – o Prodígio Negro carregou a garota até o corpo desmaiado de Euro.

        Dova estendeu a mão esquerda e enfim pôde tocar na testa do meio-neander, agora sem a tiara do terceiro olho, de onde fluíam filetes de sangue. A menina havia se obrigado a tocar na testa – alguma coisa dentro de si dava-lhe a ideia de aproveitar a derrota do Prodígio Amarelo e esganar seu pescoço exposto.

        Mas não o fez, e Azif sentiu o estremecimento do corpo da garota. Assombrado viu que Dova mexia a boca, experimentando-a, como se não houvesse mais ferimento algum, e assim que ela tirou a mão da testa de Euro, viu também que aquela perfuração havia cicatrizado. O ruivo abriu os dois olhos, “Dova?... Azif!”

        Havia muito a ser dito e perguntando naquele instante, se Dova não percebesse alguém que chegava pela estrada e parecia ter presenciado toda a batalha. Desvencilhou-se afobada de Azif e, correndo, foi abraçar o rapaz de pouco mais de vinte anos, barba por fazer, roupas de fazendeiro.

        “MANYU! Manyu Daury! Meu irmão...” chorava nos braços do rapaz. “Eu pensei que você estivesse morto!...”




BAIXE A COMPILAÇÃO DO PRIMEIRO ARCO DE HISTÓRIAS:

segunda-feira, 18 de abril de 2011

ESMAGUE MINHA UTOPIA

O Episódio Treze quase fez o autor Arthur Ferreira Jr.'. perder a simpatia por alguns de seus personagens da SAGA DOS PRODÍGIOS



Não poderia amar um homem de modo tão puro
Até a escuridão perdoou seus caminhos tortos
Aprendi que nosso amor é como um tijolo
Construa uma casa ou afunde um cadáver

Fragmento de um Épico da Mãe-Monstro:
O Tolo Sagrado e o Rei Sem Uma Coroa






O AR SE ENCHEU DE PERFUMES E O INCENSO se dispersou, porque ela não estava tolerando adulações dos sacerdotes naquele dia. A Soberana pôs a mão na testa e inalou os perfumes que ela mesmo gerava. Ela sentia seus poros formigando e a preocupação aumentar. Levantou a outra mão e um dos serviçais se aproximou para receber as ordens:

        “Traga-me Euro.”

        Euro, o Predestinado. Em menos de dez minutos ele entrava no salão da corte da Soberana, e o ambiente se iluminava com as joias douradas que ele usava para adornar seu corpo: braceletes, piercings, braçadeiras, um grande medalhão com o símbolo do clã Adonai, tudo compondo quase uma armadura amarela, âmbar e dourada.

        Entrou e, ao contrário da imensa maioria dos que entravam no salão de audiências, não se prostrou diante da Soberana, porque ela o considerava um igual. O herói mesmo assim demonstrava respeito e esperou aquela bela e esguia mulher, envolta em véus de um azul translúcido que mal escondiam sua própria pele também azulada – uma cor azul celeste coberta por tatuagens turquesa e complementada por um longo cabelo azul-cobalto – dizer a razão pela qual Euro fora chamado.

        “É um mistério,” começou a Soberana, “consulto os deuses e eles não me sabem responder. Recebo só estática em troca de minhas perguntas. Isso me deixa mais aflita.”

        “O que aconteceu?” Euro sabia que a Soberana costumava comentar primeiro as consequências ou interpretações dos problemas antes de mencionar os problemas diretamente, e aprendeu a ter paciência nesses momentos... mas hoje, apesar do protocolo obedecido, Euro estava com uma sensação estranha na garganta. Uma agonia e um sentimento de urgência o levaram a tentar apressar o pedido da Soberana.

        “A espada da inimiga dos deuses desapareceu sem deixar vestígios. Os zelotes não sabem dizer o que aconteceu.” O tom de voz era frio e imparcial, ou pelo menos tentava ser assim. Euro percebeu que era apenas uma tentativa, mas só detectou isto devido à intimidade com a Soberana. “A princípio pensei que havia alguma trama ou incompetência, mas os que a vigiavam não podem mentir para mim, então pela primeira vez em alguns anos... estou sem saber o que fazer a não ser mandar chamá-lo.”

        “Soberana,” respondeu o Predestinado Dourado, “a Torre Vermelha onde o corpo é guardado é de fato muito bem vigiada, e por homens de confiança. Mas ela é também um miliário de peregrinação, muitos vão até lá presenciar a prova de que a Adversária foi derrotada com sua própria espada,” fez uma pausa um tanto dramática e continuou, “só que creio ter sido este o erro. Sei que o cadáver da Adversária é incorruptível e esse fato inexplicável nos serviu para criar um monumento ao fim da revolução e à derrota dos antigos deuses, mas... eu sempre pressenti algo errado, e esse algo acabou acontecendo.”

        A jovem de pele azul que era chamada de Soberana se irritou e revidou, “Euro. Tenho certeza de que não quer questionar minha sabedoria quando o que é preciso é que o problema seja solucionado. É preciso que a katana seja recuperada, não é possível inventar uma reforma na Torre sem despertar suspeitas, então não é uma providência que dure muito tempo.”

       “Não seria talvez oportuno aproveitar o ensejo e acusar os dalai tsu do roubo, Soberana? Eles têm sido uma pedra em nossa paz, e pelo pacto antigo estamos obrigados a tolerá-los, mas um escândalo como esse furto poderia servir a nosso favor.” O herói demonstrava uma seriedade total em seu rosto, que foi respondida com um sorriso amargo de sua parceira e com a resposta:

        “Não mesmo. Isto seria traição e ainda acho que os tsu podem me ser úteis. O que quero é que você saia em busca da espada enquanto a Torre Vermelha passa por uma reforma. Se você conseguir recuperá-la, será uma boa razão para destruir de vez aquele cadáver incorruptível sem parecermos fracos e você fica com a katana como espólio... digo, como símbolo de seu valor na defesa da Terra Castanha.”

        Euro torceu os lábios, “Algum oráculo para me guiar na demanda?”

        “Saia de modo triunfal e espalhafatoso como é de seu costume,” respondeu um tanto sardônica a Soberana, “mas não revele a ninguém onde vai. Depois fique atento porque com certeza alguém vai te seguir, é inevitável. Não sendo uma de suas fãs entre seu povo, interrogue quem quer que seja e extraia indícios.”

        O herói dos neander sacudiu a cabeçorra afirmativamente e apenas comentou, “Espero que seja um oráculo genuíno, porque vou interrogar o espião nem que seja uma de minha admiradoras.” Sorriu e saiu correndo do salão, deixando a mulher que acumulava a posição de sátrapa líder e Matriarca do nomo imersa em seus pensamentos confusos, sua estática na cabeça.

        Ao chegar nas ruas da cidade, o meio-neander foi aclamado por alguns passantes, que gritavam, “Viva Euro! Viva o Predestinado! Viva a Soberana! Viva Berya!”

        Na praça principal correu na direção de sua biga voadora – já a havia deixado à espera, por conta do tal pressentimento – e antes que subisse e desse partida naquele transporte da elite, uma das tecnologias antigas recuperada, fez uma postura de batalha e bradou, “Pelo poder de Adonai!”, suas joias douradas multiplicaram-se como um enxame ávido de besouros sobre seu corpo, e em instantes o uniforme-paradoxo do maior herói da Terra Castanha e do povo neander estava formado: um conjunto de placas bem delineadas, como uma armadura, de aspecto brutal mas peso leve, e um terceiro olho dourado aberto na tiara de aspecto aristocrático que lhe protegia a testa.

        O Predestinado subiu na biga e partiu pela estrada que saía da cidade a toda velocidade, desacelerando logo que estava fora de alcance do olho nu, para esperar quem quer que o seguisse.

        Porém mais à distância enxergou uma cena esquisita: uma mocinha de uniforme-paradoxo branco, ombros à mostra e espinhos prateados enfeitando seu corpo, os cabelos castanho-claros um tanto ondulados. Ela beijava um rapaz também de paradoxo, só que de músculos negros e proteção facial, aberta no momento do beijo.

        Ora, ora, pensou Euro, desconhecidos envergando a veste dos deuses! Hora de abortar o plano inicial... Investiu com a biga pela estrada, gritando:

        “ALTO!”






BAIXE A COMPILAÇÃO DO PRIMEIRO ARCO DE HISTÓRIAS:

sábado, 16 de abril de 2011

BELEZA FANTASMA

O Episódio Doze da SAGA DOS PRODÍGIOS não resistiu e se exibiu antes do tempo!



A GAROTA CERROU OS DENTES, SOLTOU A KATANA em pleno ar, que foi puxada por seu uniforme-paradoxo – como se fosse um ímã, incorporando-se ao tecido espesso. “Você merecia ser deixado aí, mas eu não vou me igualar a ela.” Curvou o busto para a frente – nisto Azif notou, um pouco perturbado, que ela parecia mais madura do que antes, e não só na expressão, como na luta contra o Mensageiro – e estendeu as duas mãos espalmadas para o Prodígio Negro.

        “Por quê? O que é que eu fiz de errado?”

        “Cala a boca e entrelace as mãos nas minhas. Não, eu não vou te puxar: pare de fazer força. Isto não adianta nada. Só INSPIRE FUNDO, E BEM FUNDO.”

        Azif suspirou fundo. “Mais forte do que isso, vamos...” instigou Dova. Os pedacinhos de cristal que iam se dispersando pela lenta superfície do lodaçal foram atraídos pelo corpo de Azif, e Dova continuava impelindo, os dedos suados entrelaçados com os dedos sujos de lama do rapaz: “Vamos, seu bobo... você pode.”

        “Agh.” Azif sentiu uma dor penetrante em vários pontos do corpo; era como se algo se insinuasse dentro de seus poros. Aquilo começava a ser pior do que durante a cerimônia de união ao paradoxo, e ele não entendia como podia ser assim. Por fim, todos os fragmentos estavam nele e foi quando se sentiu livre para se mexer. Nesse momento, Dova largou as mãos e recuou três passos.

        Havia algo de desafio no olhar de Dova, que Azif não tinha notado antes. Ela pôs as mãos na cintura e disse, “E então? Que está esperando para se levantar?”

        “Como é que você sabia o que devia fazer?” Ele foi se apoiando como se saísse de um buraco, os membros e juntas ainda um tanto doloridos.

        “Não me pergunte isso, que eu não sei explicar. Coisa de Família, é o que meu avô diria. Tenho certas intuições quando estou perto de algumas pessoas e... você é uma delas.” Dova mordeu delicadamente os lábios e ajeitou uma mecha castanho-clara, com o gesto o uniforme se retraiu um pouco de seu pescoço, deixando até os ombros parcialmente nus.

        Azif conseguiu sair de todo e pisou na lama – um tanto borrachuda, mas era capaz de andar, embora não tão elegantemente quanto Dova. “É... queria entender como é que estou conseguindo andar em cima desse líquido. E por que e como você mudou a forma do traje dessa maneira...”

        Dova riu gostosamente. “Preste atenção na sua voz e vai ver que aconteceu algo parecido com você!” Azif se deu conta então que sua voz estava meio abafada, saía como se distorcida... de uma coisa que parecia uma mescla de máscara de gás e focinheira, feita do metal ou cristal anão do uniforme-paradoxo, e que havia coberto parte do seu rosto enquanto ele se concentrava em libertar-se. Ficou surpreso e olhou para o resto do uniforme, os metais estavam dispostos de forma mais simétrica, em padrões de arabesco, e o couro negro que era o tecido duro do uniforme-paradoxo se amoldava melhor aos contornos de seu corpo, formando uma musculatura artificial atlética.



        “É quase como se você tivesse sido esfolado e seus músculos fossem negros!” Ela se adiantou e tocou com a ponta do dedo o peito de Azif. “Hmm, é engraçado como dá pra sentir através do uniforme, né?”

        Ele tirou a mão de Dova do seu peito e só comentou um tanto seco, “Pode ser, mas não sei se essa recomposição tornou o uniforme mais sensível, então é melhor você não me tocar agora.”

        “E depois pode?” Riu meio galhofeira. Aziz pensou consigo, mas o que é isso? Ela não parecia ser assim. E só tem treze anos. Tá certo, várias dessa idade são assim, mas o jeito dela era diferente. Antes que pudesse fazer qualquer comentário ou reclamação, Dova saiu meio pulando em meio ao lodo, espanando lama, dizendo, “Vamos por aqui; acho que consigo achar a saída.”

        Os dois andaram em meio às árvores de galhos retorcidos, que foram cada vez mais ficando separadas e num dado momento Azif percebeu que haviam chegado na orla daquele manguezal. Do lado de fora, era perceptivelmente mais claro – lá dentro, tudo era penumbra.

        Era uma espécie de pradaria.

        “Tem ideia de onde estamos? Já que conseguiu nos tirar daqui...”

        “Mais ou menos. Essas minhas intuições aumentaram depois que eu usei o uniforme... ele cochicha na minha mente e melhora essa minha... sei lá, capacidade, mas ao mesmo tempo eu estou tendo uma certa dificuldade em entender o que ele quer dizer. O palpite que eu posso te dizer é... que é como se esse lugar de onde acabamos de sair fosse feito sob medida para você. Não me pergunte o sentido disso.”

        “Talvez com o tempo aprenda a compreender,” comentou Azif. “Afinal, você é muito jovem.”

        Dova fez um muxoxo e estendeu a mão para a frente, e a katana presa em suas costas foi até ela, como se reagindo. “É... com o tempo, né? Sei...” Apontou a espada para a frente e indicou, “Olha lá um caminho. Vamos segui-lo.”

        E de fato havia uma trilha muito batida. Os dois andaram uma meia hora por aquele chão poeirento e cheio de gramas de jeito esquisito, até chegar ao caminho avistado. Era uma espécie de estradinha como as que são costume na Terra Castanha.

        E ao pisar o pé na trilha, Dova ficou extasiada. O cenário em volta havia mudado – não era mais uma pradaria e sim um matinho rasteiro característico da Terra Castanha; mais adiante na estrada ela enxergou uma cidade. Tirou o pé e tudo voltou a ser como era antes.


        “O que foi?” Perguntou Azif, desconfiado. Parece estar ficando maluca.

        “Veja você mesmo,” e puxou o rapaz para perto de si. “É como se estivéssemos sonhando... não é mesmo? Um sonho?” Nesse momento Azif não se controlou; não só havia se surpreendido com a mudança de ambiente, como o sorriso que Dova lhe oferecia perto de seu rosto era muito parecido com os sorrisos maliciosos de Charya. E ele sentiu dentro de si impulsos que não sentia desde um ano antes, desde antes da cerimônia de união.

        O uniforme-paradoxo era ciumento, dizia a Matriarca, e o Grão-Mestre havia lhe explicado que o uniforme era vivo e se alimentava da energia que os neander chamavam de libido; canalizava aquilo tudo, todo aquele vigor da juventude, para as funções paradoxo. E assim Azif ainda amava Charya, mas não era mais apaixonado, porque já não sentia aqueles impulsos da adolescência que duravam boa parte da vida adulta.

        Ali naquela terra estranha, parecia que o uniforme aumentava esses impulsos, a máscara que cobria o rosto de Azif se abriu sozinha, com um ruído mecânico – e os dois se beijaram, os pés indo e voltando devagar durante o abraço, fazendo o cenário ser pradaria, mato, pradaria, mato, pradaria, mato... até que veio se aproximando uma biga a toda velocidade pela estrada, e o rapaz corpulento e um tanto familiar que comandava o cavalo gritou:

        “ALTO!”




BAIXE A COMPILAÇÃO DO PRIMEIRO ARCO DE HISTÓRIAS: