sábado, 2 de abril de 2011

COBALTO E TURQUESA

Arthur Ferreira Jr.'. revela o SÉTIMO EPISÓDIO da SAGA DOS PRODÍGIOS



ANDANDO EM CÍRCULOS. VOANDO EM CÍRCULOS. Eu sempre volto a essa cena... e não consigo sair.

        É o topo da Torre Azul, a noite cai e eu sou chamada por meu pai. Não adiantou nada tentar refletir, pensar... é uma decisão pra vida inteira, e não consigo me decidir; melhor deixar isso nas mãos de meu pai. Sim, ele sempre quis o melhor pra mim... por quinze anos ele cuidou de mim e de minha mãe, a Matriarca Kashramael.
         Meu pai é o Alto Sacerdote da Terra Castanha e ele sempre cuida bem de todas as suas mulheres. Esposas, filhas, a Matriarca... não importa.

        Mas agora as coisas mudaram. Um terço dos sacerdotes e sátrapas diz ter contatado os VERDADEIROS DEUSES. Então, tudo muda, se sempre acreditamos em falsos deuses. Especialmente porque meu pai faz parte desse terço e foi expelido de seu cargo por sua... heresia.

        Somos todos hereges agora, a cidade está em chamas, alguém pôs uma bomba na Prisão-Elevada, dá pra enxergar o incêndio daqui de cima. Os guardas enxameiam diante da Torre Azul, porque os zelotes do novo Alto Sacerdote podem atacar a qualquer momento; talvez o bombardeio tenha sido uma distração.

        É uma cidade linda à noite, mas eu pouco vou poder aproveitar, porque meu pai já decidiu que os novos deuses têm planos para mim. A servocrata me espera na porta da escadaria, silenciosa, eu engulo em seco e a sigo.

        Eu esperava estudar para ser uma das sátrapas: uma administradora de um dos nomos da Terra Castanha. Mas isso nunca acontecerá, porque meu pai me chamou de Prodígio e porque eu nunca provei das trufas propiciadoras de transe... as mulheres só poderiam experimentar o transe de comunhão com os deuses aos dezessete anos; faltavam dois anos, portanto, para que eu saísse de casa e aprendesse os truques e ritos de uma sátrapa.

        Mas eu sou um Prodígio, sinto as trufas debaixo da terra do Ermo. E isso me torna perfeita para os planos dos novos deuses, assim diz meu pai e assim aprova minha mãe. Às vezes me sinto cansada de obedecer e é esse cansaço que sinto ao descer as escadas, mas algo me impede de desobedecer, continuo na indecisão e na indecisão deixo a escolha nas mãos de meus pais.

        Estou num dos salões da Torre. Sei que isto é uma memória, e sei que se repetirá de novo, exatamente como foi das últimas vezes... quantas, não sei. Já perdi a noção de tempo, o tempo se tornou um uroboros, a cada volta corroído por sombras mexendo no canto do olho. Meu pai usa as vestimentas azuis de seu antigo posto, sei que devo guardar silêncio, e no centro do salão ele aponta uma grande máquina... como as que só a elite da Terra Castanha tem acesso, mas diferente.

        Ela é como uma ampulheta gigante, e dentro daquela forma retorcida vejo um rodopiar de forças e cores na parte superior, relâmpagos agitando aquela matéria estranha. E eu sinto medo. E sinto mais medo porque sei que aquilo é meu destino. É inevitável; passei por isso tantas vezes.

        Eu quase agradeço quando ele para de explicar aos seus seguidores mais próximos, que aquele é um tearcuba do povo neander; um aparato demoníaco, assim dizia a sabedoria dos sacerdotes ortodoxos. Mas ele não era mais ortodoxo, e rasgava as vestes azuis para mostrar sua nova devoção. Eu ficaria com medo, pois nunca vi meu pai assim, nu; e qualquer excitação que eu sentisse por ver um homem nu, mesmo sendo meu pai, guardo nessas memórias que se repetem porque algo me diz que nunca mais sentirei algo diferente.

        Mas era apenas um gesto ritual; e aquela máquina, nunca antes operada pelos sacerdotes fiéis, porque os uniformes-paradoxo são coisa de demônios neander, havia se tornado sagrada para os novos deuses. E estes diziam na mente embriagada pela carne da trufa gigante... aquela embriaguez persistente lhe dizia as fórmulas para construir a máquina a partir dos materiais roubados da tribo neander dizimada, três anos antes.

        Os antigos deuses podiam ter existido no passado da Terra Castanha, e ter transcendido e viver numa terra prometida além da morte, mas os novos deuses, dizia meu pai, nunca haviam sido humanos, e viviam além do céu. Muito mais dignos de ser venerados e em troca, ensinavam segredos como os daquele tearcuba especial.

        Daquela máquina sairia um uniforme-paradoxo como nenhum outro antes, superior a todos os outros usados pelos povo neander e, diziam os rumores, por alguns contrabandistas do Ermo da Condenação. Eu, Berya, filha do Alto Sacerdote Mordekai, seria a primeira das escolhidas para envergar o paradoxo e ser parte de uma elite dentro da elite, assim que os hereges derrubassem as sátrapas locais... em parte com minha ajuda e de outras que também usariam o uniforme.

        Seria uma elite superior à das sátrapas, bradava meu pai: e também menos numerosa, porque essas guerreiras não poderiam se casar, como é obrigatório às burocratas. O uniforme seria para sempre meu esposo, um esposo ciumento... e o uniforme que era gerado ali diante de mim, na tearcuba, vinha com uma centelha especial dos novos deuses, enviada ao Alto Sacerdote por sua devoção fervorosa.

        E então, a coisa ficou pronta.

        A parte inferior da tearcuba se abriu, e a superior derramou a massa pulsante, azul-cobalto, do uniforme-paradoxo. Minha mãe beijou minha testa numa bênção e eu toquei aquela coisa viva.

        Minha mente se desfaz a cada vez que revivo as sensações de ser coberta por um tecido vivo, pelos metais turquesa que formavam fibras e padrões ao redor do meu corpo nu, pela união tão avassaladora que dobrava e desdobrava minha mente... a coisa cobria até meus cabelos antes loiros, e no espelho do salão eu me via, o uniforme-paradoxo e eu éramos um, forte, rápida, presciente, a mente girando e processando dados, informações, gostos, memórias... os cabelos azuis, azuis... a espada curta azul que saía sozinha da minha coxa esquerda e eu segurava na mão direita! Dados, informações, gostos, memórias... memórias... e havia algo a mais ali, algo multicolorido, era como a aurora boreal do Ermo, mas estava só em minha mente, ela rodava dentro de mim e me deixava louca.

        Louca. E eu tomei da espada e fiz o que era exigido de mim.

        Todos mortos?

        Não sei, antes que o massacre terminasse, aquele sangue derramado por mim escorresse de fato, as memórias voltavam ao topo da Torre Azul e a minha indecisão. E eu devo escolher, e escolho o uniforme. Escolho o paradoxo. O que escolho? O que devo escolher?

        Paradoxo?

        Prodígio?

        Paradoxo... e pela enésima vez as cenas se repetem, mas quando eu estava para matar minha própria mãe, meus olhos doem, doem muito como se o sol quisesse me matar pelos meus próprios olhos, mil dias contemplando o sol, a aurora... e a aurora sai de mim.

        E eu estou livre!

        O turbilhão energético rodopia diante das três Prodígios e a moça de azul-cobalto e espada curta na mão pisca os olhos repetidas vezes, não acreditando no que vê: aquela coisa horrenda, tentáculos formados de cor pura e alienígena, e duas garotas muito próximas: uma bem novinha, cabelos castanho-claros orvalhados pelos fios de um uniforme-paradoxo branco, segurando um báculo igualzinho ao da mãe de Berya; e a outra de paradoxo vermelho, cheio de coágulos rubros que começavam a refletir a luz do sol, empunhando uma katana.

        Haviam outras pessoas próximas mas Berya sabia que não devia lhes dar atenção naquele momento; havia uma ameaça e ela tinha de cuidar daquilo, dentro de si, um sentimento forte e inexplicado de gratidão surgia pela menininha de branco. Uma voz firme se fez ouvir na mente de Berya, mas não era algo invasivo, era como um toque de uma mão preocupada, dizendo: Você está bem? Saia de perto dele, deixe a gente cuidar disso... e Berya teve certeza que a voz vinha da moça mais velha, de vermelho, embora esta não mexesse os lábios crispados.

        Berya ergueu sua espada curta cor de azul metálico, percebeu mais coisas como o fato de que estava num dos cânions do Ermo, mas não vacilou pensando em como havia parado ali. A coisa turbilhonante girou seus tentáculos por sobre as outras duas garotas, e o golpe iria atingir também Berya, mas antes que isso acontecesse, a menina aproveitou o movimento que enxergava em câmera lenta e passou o fio de sua armadoxo pelo próprio braço esquerdo, do corte surgindo uma energia azulada e flamejante, que envolveu a lâmina empunhada por Berya.

        Quando os tentáculos vibraram golpe sobre ela, a Prodígio Azul revidou com sua espada de fogo-fátuo, gritando – e a frase do grito, em dialeto antigo, vinha sabe-se lá de onde na confusão de suas memórias – “DIE, MONSTER! YOU DON'T BELONG IN THIS WORLD!”




2 comentários:

  1. Amanhã eu posto as referências de imagem... ou hoje, já é mais de meia-noite.

    Este episódio foi escrito sob influência da música WMA, de Pearl Jam:
    http://listen.grooveshark.com/s/Wma/2ysucv?src=5

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  2. ILUSTRAÇÕES E IMAGENS, AUTORES E FONTES
    (DESCULPEM A DEMORA)

    1
    Lions and Lambs, de Camilla d'Errico

    2
    Honeylocks, de Camilla d'Errico
    http://www.camilladerrico.com/paintings/

    3
    Mystic Elf, de Maurício Menezes
    http://melon-banzai.deviantart.com/

    4
    Spirale
    http://www.eldritchdark.com/galleries/inspired-by-cas/

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