sábado, 23 de abril de 2011

O RETORNO DA RAINHA

O Capítulo Dezoito da SAGA DOS PRODÍGIOS surpreendeu até ao autor Arthur Ferreira Jr.'.




Prazer em conhecer
Espero que adivinhe meu nome
Oh, sim, pois o que os confunde
É a natureza do meu jogo

Cântico da Simpatia, de um culto dalai tsu à Avalanche


NO CENTRO DO SALÃO DE MÁRMORE RUBRO, um homem de vestes sacerdotais púrpuras sorria para os três Prodígios enquanto tocava a coxa de uma garota pendurada por correntes do teto, trajando um uniforme-paradoxo vermelho. Entre esta figura – Azif a identificou de pronto como o Alto Sacerdote Judaas Mordekai, ou um simulacro da mesma espécie do irmão de Dova – e os três invasores estava a Soberana Berya, as duas mãos erguidas na direção de Dova, que se contorcia no chão com o choque elétrico provocado pelo fogo-fátuo.

        Dessa vez o fogo-fátuo não parece muito a nosso favor, pensou Azif fascinado. Demônios do Ermo, como ela é bonita... mas é minha irmã. Enquanto Euro aparecia na porta para ajudar Dova, Berya ergueu as mãos em gestos precisos e solenes, declarando numa voz autoritária: “Pela honra da Terra Castanha...!”

        Os véus que lhe cobriam o corpo azulado pareceram obedecer a uma compulsão mágica, pois se dissolveram como névoa sobre a pele de Berya e se reformularam como um tipo de exoesqueleto macabro, vagamente biomecânico, acentuando a aparência já alienígena da Soberana. Seu cabelo longo e azul se movia como se houvesse vento forte no salão, e as laterais de seu rosto se cobriram da mesma casca resiliente que lhe protegia o corpo. Toda essa transformação levou pouco mais de dois segundos para acontecer. Os olhos brilhavam com um azul sobre azul, sem distinção de pupila.

        Azif não sabia bem o que dizer e tentou argumentar, “Nós só estamos aqui para ver Charya, não queremos machucá-los...” O olhar que Berya lhe retornou era indiferente e frio. Era como se estivesse em transe. Ela o respondeu sacando do exoesqueleto azul-quase-negro que cobria seus braços, duas espadas curtas de metal também azul, só que de outro tom, leve e reluzente – era a primeira vez que Azif via alguém manifestar dois armadoxos de uma só vez. É um pesadelo, e eu quero acordar, gemia no fundo de sua mente.

        Dova abriu os olhos meio atordoada e viu a situação toda num átimo. Alguma coisa dentro de si – mais forte que suas intuições, mais forte que o sussurrar de seu uniforme-paradoxo – a moveu para a frente, e ela sabia que era o único ato certo a fazer: deu um chute preciso no meio das costas de Azif, tirando seu fôlego e fazendo-o cuspir um jato de cristal como aquele que havia antes se desprendido no lodaçal... a nuvem de cristal anão que se formava rodopiou e distraiu Berya, e isso foi a deixa para Euro investir correndo sobre o sacerdote Mordekai.

        Berya tentou ignorar a nuvem e atacar Azif e Dova com suas espadas, mas o próprio cristal a impediu – assumiu uma forma feminina, a mesma que mais cedo Azif havia confundido com sua mãe, Kashramael. “E então, menina? Vai ferir sua própria mãe?”

        Enquanto isso Dova se arremessava por cima do campo de batalha que o salão da Torre havia se tornado, empunhando báculo e katana na ânsia de ajudar Euro a derrotar Mordekai, que havia recebido um soco poderosíssimo no rosto, sem piscar. “Não sou tão frágil quanto vocês imaginam – e que ótimo, a garotinha veio trazer a espada da Adversária para mim...”

        Azif estremeceu ao ver a figura de cristal sair de dentro de si e assumir de novo aquela forma, mas sua surpresa paralisante durou pouco.  Teleportou-se para trás de Berya e pôs a cimitarra em seu pescoço, “Renda-se, eu já disse, não quero ter que te machucar, irmã...” Falo a verdade, pensou Azif entrando numa espécie de desespero, mesmo sendo aqui só um sonho muito real.

        “Esta não é minha mãe, mortal.” Mortal? Ela pensa que é uma deusa?

        “Exatamente, filha. Você não é sábia e onisciente? Então,” interrompeu a criatura com a forma de Kashramael, sorrindo e exibindo dentes afiados, “use sua visão profunda e enxergue o que eu sou – o que todos nós somos!”


        Uma semente de dúvida brotou na mente rígida de Berya e ela fez o que a coisa pedia. Sua percepção se expandiu, tocando toda a Torre Vermelha... e a presença próxima dos outros quatro estimulou algo que ela não tinha experimentado antes: toda a área ao seu redor era branca, um nada informe, uma aparência ilusória... e só ela e os outro três Prodígios eram reais. Até mesmo os guardas mortos nos corredores não passavam de decoração... exceto duas criaturas cristalinas que enxameavam assumindo formas humanas, a forma de sua mãe diante de si e a forma de seu pai lutando contra Euro e Dova. O padrão dos cristais era o mesmo dos ídolos de cristal anão que ela guardava em um nicho na Torre Azul, durante sua infância. Restos de uma era anterior, depósitos de informação, objetos de veneração – os cristais anões também eram usados pela elite da Terra Castanha para condicionar os jovens mais problemáticos de sua própria casta. Aquilo se tornou evidente às percepções profundas de Berya. Era como brincar com fogo, porque aqueles dois cristais haviam assumido vida própria, mas ela ainda não saiba o porquê.

        Dova ergueu a katana de Charya e percebeu que havia cometido um erro – ao saltar ansiosa para combater o Alto Sacerdote, não havia deixado uma mão livre para fazer o gesto de bênção e liberar a Prodígio Vermelha de seu sono forçado. Mas percebeu que podia usar a espada para dispersar Mordekai em pedacinhos como havia feito com a falsa Kashramael – os dois pareciam ser feitos da mesma substância, distinta tanto da dos zelotes derrotados quanto da substância dela, de Euro, Azif e Berya. Apenas não conseguiu fazer isso, porque Mordekai vibrou um golpe de mãos nuas sobre o pulso de Dova, desarmando-a e fazendo a katana cair longe, quase aos pés de Berya e Azif.

        “Filha!” gritou o falso sacerdote enquanto tentava se desvencilhar de Euro que o tentava imobilizar, “Eletrocute esse desgraçado e pegue a espada!”

        “Não...” Berya jogou as próprias espadas longe e Azif imediatamente retirou sua cimitarra do pescoço da irmã. A Kashramael-simulada deu três passos para trás como se quisesse assistir melhor a cena, ainda sorrindo, divertida.

        Dova aproveitou que Euro deixava o sacerdote ocupado e usou sua mão livre para tocar o corpo da Adversária – parte da sua raiva havia se esvaído ao ser desarmada, Charya deveria acordar naquele instante e tudo estaria acabado, o sonho teria um fim.

        Mas não foi isto que aconteceu.

        A Adversária abriu os olhos e Berya imediatamente sentiu que aquela massa inerte com a forma de Charya despertava e diferenciava-se da massa branca e ilusória, era na verdade – Berya sentia isso com sua segunda visão profunda – um rodopio multicolorido, como a aurora boreal do Ermo. Como o Alienígena que a havia possuído, ela agora lembrava. Algo está faltando, algo está faltando, alguém... E lembrando tentou um ato inesperado – estendeu a mão para a espada e ela veio para suas mãos, por um instante parecia que empunharia a katana de Charya numa batalha mítica contra o Alienígena e a criatura cristalina que havia assumido ali a forma de seu pai...

        Mais uma vez, não foi isto que aconteceu.

        A Adversária atacou Dova estendendo tentáculos cor de aurora que saíam do corpo idêntico ao de Charya, os olhos multicoloridos como Dova havia presenciado em Berya na batalha no labirinto-penhasco. Euro se engalfinhava com o sacerdote que parecia muito mais forte do que sua forma franzina aparentava. Azif avaliava a situação e preparou-se para teleportar para o lado da Adversária e defender Dova.

        Berya partiu a katana com as duas mãos – parecia mais fácil do que quebrar a casca de um ovo – e o ar diante da Prodígio Azul se distorceu, dando lugar a uma garota de cerca de seus dezessete anos, cabelos loiros presos num rabo de cavalo, olhos atentos e boca carnuda, envergando um uniforme-paradoxo vermelho – quase uma armadura feita de casca de crustáceo perfeitamente adaptada aos contornos de seu corpo, cheia de espinhos rubros – e uma espada de dois gumes nas mãos, na verdade uma katana de dois gumes.

        Charya, a Prodígio Vermelha.

LEIA O EPISÓDIO ANTERIOR
BAIXE A COMPILAÇÃO DO PRIMEIRO ARCO DE HISTÓRIAS:

2 comentários:

  1. A citação inicial é na verdade um trecho da música Sympathy for the Devil, dos Rolling Stones.

    IMAGENS E ILUSTRAÇÕES, AUTORES E FONTES

    1
    Ilustração Digital de Mario Wibisono
    http://www.dumage.com/impressive-digital-girls/

    2
    Lady Gaga em Alejandro
    http://kaitiescaps.livejournal.com/18656.html

    3
    Ilustração de Guilherme Marconi
    http://www.zupi.com.br/index.php/site_zupi/view/guilherme_marconi/

    4
    Old Ones, autor não-identificado
    http://www.eldritchdark.com/galleries/inspired-by-cas/all/a/9

    5
    Innocent Eve, de Camilla d'Errico
    http://www.camilladerrico.com/paintings/

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  2. http://sagadosprodigios.blogspot.com/2011/09/o-retorno-da-rainha.html

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