Estou com sorte.
- Mantra dos devotos do Grande Goog
O RELÂMPAGO SUAVE E O TROVÃO PERSISTENTE enchiam a paisagem de som e fúria. Natural, pensava Azif enquanto Euro pilotava a biga planadora de volta ao Nomo das Torres, Charya sempre gostou das histórias desses espíritos do Ermo. Se estamos mesmo na mente dela... nada mais natural que eles apareçam com tanta força quando finalmente descobrimos o que está acontecendo.
Se é que é esta mesmo a verdade. Há algumas pontas soltas. Euro parece meio envergonhado de falar do seu tempo com Berya... se é que houve algum tempo e tudo não passou de memórias falsas. E isto de memórias falsas deve atormentar meu irmão ainda mais: deve achar que falhou no retrospectar por ser meio-neander.
E Dova. Ela parece tão bela à luz dos relâmpagos que cruzam a noite. E apesar do pouco tempo que a conheço, nunca me pareceu tão perigosa.
“Estas algemas me incomodam.” A voz de Dova se fez ouvir sobre o ruído dos trovões e a propulsão da biga.
“Não há outro jeito,” fez Euro. “E deem graças que não será uma entrada triunfante, o povo não costuma ficar nas ruas com uma chuva destas.”
“Definitivamente não gostaria de ser exposta como um troféu de caça.” Lábios crispados, os olhos de Dova fitavam a Torre Vermelha, visível do lado de fora da cidade. Era uma estrutura cheia de janelas de vitral multicolorido, com paredes de cor rubra. Seu formato era hexagonal, quando visto de cima. Mas poucos a viam de cima – a Nomo das Torres não era conhecido pelas máquinas voadoras que eram às vezes vistas em outros nomos. A biga planadora era praticamente a única máquina ancestral usada ali.
E, naquele sonho estranhamente coeso, dentro da mente de Charya, isso continuava sendo verdade. Euro amaldiçoou este fato, internamente, porque poderiam ir direto ao topo da Torre se tivessem equipamento melhor. Ele queria se livrar da situação o mais rápido possível. Agora que estava livre de sua ilusão de poder – ou achava que estava livre – a irrealidade daquele sonho, oculta logo abaixo da superfície de suas percepções, o irritava bastante.
Teve até vontade de fazer a biga espatifar-se contra as muralhas da cidade, acabar com tudo – mas até aí sua percepção alterada o impedia, porque ele tinha a nítida impressão de que fazê-lo ia interromper o sonho e recomeçá-lo de novo, com ele, Euro, no lugar de um herói popular admirado e invejado por todos da Terra Castanha e do povo neander.
Talvez isso já tenha acontecido antes, pensou o Prodígio Amarelo. Mas eu não vou deixar que dê tudo errado de novo... se é que deu errado antes. Malditas dúvidas.
Pousada a biga, Euro escoltou os dois em direção ao palácio da Soberana... haviam poucas pessoas na rua, e quando pensou não estar sendo observado, desviou o caminho para a Torre Vermelha.
“Como eu pensava,” sussurrou Dova. “Todas as pessoas que passamos perto me pareceram iguais às paredes da muralha, ao mato em volta da estrada...” Por dentro, Dova sentia ganas de esmagar aquelas pessoas como fizera com seu falso irmão.
Chegaram diante de um arco de entrada para a parte pública da Torre Vermelha. No terceiro andar, sabia Euro, estava o corpo da Adversária. Azif reparou que os tijolos que compunham o exterior daquele edifício tinham quase a mesma tonalidade do uniforme de Charya – e ele sabia que, no mundo real, era diferente, o prédio estava em mau estado e aquele rubro era quase um negro coagulado. Dova sentiu raiva dos tijolos do prédio tanto quanto do grupo de sete zelotes postado à entrada.
“Que surpresa, senhor.” O zelota de baixo escalão sorria como se soubesse demais. “Veio investigar de novo?”
“Quero interrogar estes prisioneiros diante da Adversária. Eles terão de confrontar seu crime... tenho certeza que lá confessarão.”
Parece uma ideia idiota, pensou Azif. Mas vamos ver. Foram entrando pelo arco e parecia que tudo ia correr bem, até Dova desferir um chute contra o zelote mais próximo de si.
“Ficou doida?!?” gritava Azif enquanto os outros zelotes sacavam suas armachoques. Euro assumiu postura de batalha, e as joias em seu corpo reagiram, enxameando e formando a armadura de placas que era agora seu uniforme-paradoxo. “Ele já estava sacando a armachoque!” bradou Dova enquanto se soltava das algemas propositalmente frouxas.
“Bom,” exclamou Euro enquanto quebrava a mandíbula de um dos zelotes, “pelo menos não preciso me conter contra estes vermes. Nunca gostei de zelotes mesmo.”
Azif não conseguiu se esquivar da descarga de uma armachoque (Nem sempre este teleporte funciona, e ele parece consumir minha energia interna... melhor maneirar, pensou o Prodígio Negro) mas retaliou o ataque com um golpe de cimitarra, parte da eletricidade voltando para o zelote que o atacou, através da lâmina.
Quem diria que eu poderia sobreviver a uma armachoque, Dova não deixou de notar enquanto materializava seu báculo e aparava a descarga de dois zelotes ao mesmo tempo. Um terceiro sacou duas espadas e preparou-se para atacar a Prodígio Branca, mas Euro o conteve com um tremendo soco no estômago, fazendo o zelote perder o fôlego e largar as espadas pelo chão.
“Ah! Dane-se!” Azif zumbiu pelo átrio da Torre Vermelha, golpeando com precisão os últimos três zelotes pelas costas, o sangue jorrando sobre Dova e Euro. O ruído de um alarme começou a soar pela estrutura da Torre. “Temos que subir! Senão isso aqui vai ficar coalhado de gente, e pode ser que até mesmo a gente possa morrer de verdade aqui!”
“Nunca se sabe,” comentou Dova enquanto chutava a cabeça de um dos zelotes caídos. Azif balançou a cabeça em reprovação e continuou, “Vamos, Euro, seja nosso guia.”
“Alguém deve tê-los avisado de alguma coisa... talvez o Alto Sacerdote.”
“Talvez Berya,” sorriu Dova para Euro. O meio-neander ia retrucar alguma coisa, mas notou que era um sorriso amargo – irônico. Melhor rir do que chorar, pensou Euro, e apontou um dos corredores laterais:
“Acho que consigo nos desviar das patrulhas se formos por ali. Tomamos um pouco mais de tempo, mas é mais seguro.”
“Sinceramente,” Dova rodou o báculo numa mão e estendeu a outra para que Azif lhe passasse a katana de Charya, “eu não me importo nem um pouquinho de esmagar estes zelotes falsos – eles me dão nojo, quase tanto quanto um zelote de verdade.”
“Por que quer isto de volta?” Azif perguntou segurando mais firme no cabo das duas espadas.
“Gente, estamos perdendo tempo...” Euro começou a se irritar. “Azif, dê logo a katana se é o que ela quer – não é sua mesmo.” Virou-se para Dova, “Vamos fazer sua vontade então, vamos pelo caminho mais rápido. Mas depois não nos culpe se isto aqui virar um pesadelo.”
***
“Não sei se isso é um pesadelo, parece mais um sonho erótico.” Dova esmagou a cabeça de um zelote e rasgou a garganta de outro com um golpe de katana, girando elegante enquanto se deslocava em meio à multidão de guardas.
“Será possível que está tendo prazer nisso?” Azif zuniu pela rampa entre o segundo e o terceiro andar, derrubando vários zelotes. Por dentro se sentia exausto, mas algo ainda o dava forças e renovava seus ataques.
“Fácil demais,” murmurou Euro depois de rodar os punhos ao redor enquanto aparava descargas de armachoque e, com mais um giro, atingia os zelotes armados como se fossem pinos de boliche.
“Depois vamos conversar, Dova.” Azif retirou a cimitarra do corpo do último zelote naquele setor. A mocinha arfava, suada, suja de sangue e tremendo com as duas armadoxos na mão.
“Não tente me dar sermão! Nem agora nem nunca!” Azif se surpreendeu com o tom de voz que lhe parecia familiar demais, mas cortou a discussão que ameaçava iniciar, “Que seja, vamos, por aquela porta abaulada.”
“Eu não vou negar que as mortes deles...” comentou Euro baixinho enquanto andavam alertas pelo corredor seguinte, “... parecem, não sei, justas.”
Azif limitou-se a suspirar, mas a máscara de gás que agora cobria seu rosto transformava o suspiro num chiado rouco. Apontou para uma porta no final do corredor e sussurrou, “Aquela, Euro?”
“Essa mesma, a última do corredor depois da rampa...”
Dova se adiantou e correu para abrir a porta. Azif seguiu logo atrás para tentar impedi-la de talvez ser eletrocutada por algum dispositivo de segurança ativado durante o alarme, mas o cansaço acumulado pelas batalhas o tornou menos rápido que o necessário – e ele viu, como esperava, Dova ser fulminada por uma rajada elétrica.
Mas não vinha de nenhum dispositivo arcano e sim de dentro do salão que Dova havia aberto a porta: uma garota vestindo apenas véus que ocultavam sua pele azul tatuada fez outro gesto de arremesso e o fogo-fátuo elétrico foi na direção de Azif... que conseguiu se esquivar rolando para dentro do salão, diante de sua meia-irmã Berya, a Soberana das Torres.
LEIA O EPISÓDIO ANTERIOR
BAIXE A COMPILAÇÃO DO PRIMEIRO ARCO DE HISTÓRIAS:
BAIXE A COMPILAÇÃO DO PRIMEIRO ARCO DE HISTÓRIAS:
Eu ia dizer de onde vem a citação no início deste 17o. Episódio, mas cho que é totalmente desnecessário. Qualquer dúvida, Google it.
ResponderExcluirIMAGENS E ILUSTRAÇÕES, FONTES E AUTORES
1 e 2
Sex, e Marianne, de Kako
http://www.zupi.com.br/index.php/site_zupi/view/entrevista_com_kako/
3
Jogo Prototype
http://www.pspsps.tv/interviews/
4
Silence of the Lamb, de Camilla d'Errico
http://www.camilladerrico.com/paintings
5
Ilustração de Renato Alarcão
http://www.zupi.com.br/index.php/site_zupi/view/renato_alarcaeo/
Ah, sim, talvez seja bom dar crédito a
ResponderExcluirhttp://listen.grooveshark.com/s/Smash+It+Up+Batman+Forever+Ost+the+Damned+Cover+1995+/2D58MG?src=5
http://listen.grooveshark.com/s/Hold+Me+Thrill+Me+Kiss+Me+Kill+Me/2TbKyN?src=5
estas duas músicas das antigas que me inspiraram hoje. As duas únicas coisas boas associadas a um certo filminho da década de noventa...
http://sagadosprodigios.blogspot.com/2011/09/rainha-de-espadas.html
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