sexta-feira, 15 de abril de 2011

PRATA E ESPLENDOR

Arthur Ferreira Jr.'. desesperadamente apresenta o Episódio Onze da SAGA DOS PRODÍGIOS!







ALGUNS DIAS ANTES...

        O velho Nehru levantou-se cedo, como fazia todas as manhãs. Chegou na soleira da porta e contemplou o horizonte, e as nuvens carregadas sobre o Ermo da Condenação, como fazia, também, todas as manhãs. Mas viu sua neta Dova ajoelhada nos campos mal cuidados da propriedade, e isso não era algo que acontecia todas as manhãs.

        Nehru Daury estava cansado e preferiu não ir perguntar o que ela estava fazendo ali. Há algum tempo, teria se arrastado até lá, arriscando ferir os pés nas ervas daninhas que, vindas do Ermo, teimavam em assolar a plantação. Mas aquele não parecia um tempo normal e Nehru deu privacidade a sua neta.

        Parecia que não era só ele que havia acordado cedo. Os donos daquela casa-grande, a sede da Propriedade Daury (haviam outras duas casas-grandes, de núcleos menos importantes da família, incluindo a casa do louco Morituri, que tentava em vão criar trufas no solo desgastado), cochichavam em seu quarto, e haviam deixado a porta entreaberta.

        “Menna,” sussurrava Kaiza, o genro do velho Nehru e pai de Dova, “tenho certeza de que esse espetáculo foi um erro. Nós já pagamos caro pela aceitação e discrição dos ortodoxos, se desde o princípio já era arriscado empregar o dom de Dova para encontrar trufas e a expor aos sacerdotes, torná-la responsável pelo abate daquele monstro vai chamar muito mais atenção!”

        “Você gosta de viver às margens da Terra Castanha, Kaiza? Eu não.”

        “É assim como sempre foi, para termos liberdade de sermos dalai tsu. Pagamos o dobro do dízimo e ficamos longe das intrigas dos nomos. Você tem é inveja do talento de Dova e quer se aproveitar disso!”

        “Eu não tenho culpa de não ter nascido dotada como os nossos antepassados!”

        “Os talentos Daury estão se esgotando, Menna.” A voz do homem tinha um tom cansado e isso magoava o velho Nehru. “Aceite isso, prima. Nosso casamento foi arranjado para tentar manter o legado da fundadora na família, como todos os outros, mas só o que fez foi enfraquecer o talento. Dova é praticamente uma aberração se comparada aos outros, um caso como ela não vai se repetir tão cedo.”

        “Por isso mesmo temos que aproveitar o máximo possível!”

        “Será que não vê que não temos poder nem influência para resistir aos sacerdotes se atrairmos atenção demais?!?”

        “Eu tenho um plano. Que tal se ela se casar com Manyu e...”

        O homem interrompeu a voz trêmula da esposa e quase gritou, “Está louca? Eles são irmãos. Não quero dois filhos casados!”

        Nehru entrou no quarto, abrindo a porta (sabia que não estariam nus nem nada disso; o velho desconfiava das saídas de Menna e dos olhares cansados de Kaiza) já dizendo, “Ele tem razão, a endogamia só fez enfraquecer a linhagem. Estamos acabados.”

        “Me desculpe, com todo o respeito, pai, só diz isso porque o senhor mesmo já está acabado! No fim da vida! Mas Dova é jovem e...”

        “Jovem que poderia utilizar seus dons de modo melhor que só colher trufas,” cortou o velho. “Pense que a intuição dela serve para várias outras coisas que não isso, você na verdade está subestimando sua própria filha. Eu desconfio que ela é uma catalisadora.”

        “Não é possível,” atalhou Kaiza. “Esse dom já se extinguiu entre nós.”



        “Está sendo muito pessimista, e a verdade é que vocês dois não têm mais poder algum, ou nunca tiveram. O fato é que eu tenho minha própria intuição aprimorada quando estou perto dela. E se estou no fim da vida...” voltou-se com o olhar agressivo, cofiando a barba branca com força, “e não MORTO, devo isso a ela, porque parte do meu vigor vem do fato de ela fazer todo mundo se sentir melhor.”

        “Ahnnn... entendi agora.” A voz da filha soou insidiosa. “O senhor quer é que ela não saia em missões pelo Ermo e fique dentro de casa o dia inteiro para que o senhor viva mais. É patético.”

        O velho ficou furioso e a discussão se estendeu um pouco mais, os ânimos se exaltando e as vozes soando mais alto. Pode ser que aquela conversa durasse bem mais, se ruídos de quebradeira não a interrompessem.

        Kaiza abriu a porta do quarto assustado, para ver a filha, que estava escutando a conversa desde que o avô entrara no quarto, agarrada por dois zelotes ortodoxos e sendo amordaçada por um terceiro. Mais dois zelotes empunhavam armachoques, rapidamente apontados para Kaiza... e para os outros dois familiares que restavam para ser exterminados, já que as ordens eram só de poupar Dova.

        A própria Dova prefere não se concentrar nas memórias do que aconteceu depois disso.

        Mas o ressentimento, a culpa e a indignação são emoções que – similares a outras como os ciúmes – não são facilmente enterrados. O normal é que um lodaçal se forme na mente das pessoas, prendendo tudo que é deixado para trás, tudo que é reprimido, tudo que é deliberadamente esquecido ou ignorado.


***




Dova podia não ter caído no lodaçal onde Azif estava preso, mas definitivamente aquelas memórias – incluindo o desfecho da cena, a morte dos pais e do avô, os dias na prisão-elevada – a assombravam enquanto ela pulava de uma árvore para outra.

        E a enchia de raiva saber que Azif estava ali naquela lama com aquela mulher; a enchia de raiva e ciúmes saber que seu salvador estava ali implorando ajuda daquela mulher voluptuosa, cheia de tatuagens e marcas pelo corpo praticamente seminu. Mais do que as tatuagens, davam-lhe raiva as feições angulosas, meio caprinas, daquela mulher... coisa que Dova notou quando caiu de uma árvore por sobre a ameaça, golpeando o ar e as costas daquela prostituta, com a katana que empunhava com as duas mãos.

        “Aaargh!” gritou a aparição, desfazendo-se em uma nuvem de cristal muito parecida com o cristal que se dissolvia no lodaçal, vindo de Azif.

        Azif olhou espantado para Dova e percebeu que ela ficava em pé sobre aquele lodo movediço com a mesma facilidade de sua mãe – ou quem quer que fosse que parecia sua mãe. A menina estava suada com o esforço, respirava forte e segurava a katana com uma gana mal reprimida.

        “Dova...? Que aconteceu com você?... Essa não é a katana de Charya?...”

        “Aham... bem, Azif, digamos que estou afiada e pronta pra um pouco da boa e velha ULTRAVIOLÊNCIA...




BAIXE A COMPILAÇÃO DO PRIMEIRO ARCO DE HISTÓRIAS:

5 comentários:

  1. Apesar deste ser o segundo episódio do segundo arco de histórias, REVOLUÇÃO, é o quinto e último dos episódios centrados em cada um dos protagonistas.

    Preparem-se para mais revelações e revoluções em muito breve!

    IMAGENS E ILUSTRAÇOES, AUTORES E FONTES

    1
    Playful Bunny, de Camilla d'Errico
    http://www.camilladerrico.com/

    2
    Desenho à mão livre de Si Scott
    http://www.zupi.com.br/index.php/site_zupi/view/a_mao_livre/

    3
    Grafite de Bansky
    http://www.zupi.com.br/index.php/site_zupi/view/o_melhor_do_graffiti_mundial/

    4
    Google Imagens.
    Provavelmente da celebração do Dia dos Mortos mexicano.

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  2. Muito show, adorei!!! Quero mais...

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  3. Oi, Gil

    O melhor é baixar os nove primeiros no link da compilação, quem sabe seja mais agradável que ler no blog.

    Ou então acessar o marcador SAGA DOS PRODÍGIOS, lembrando que o blogspot mostra tudo na ordem de publicação recente...

    A Saga vai aparecendo por aqui sempre, cada episodio tem o tamanho de um miniconto, ou seja, nunca passa de 2000 palavras.

    Além disso fique à vontade pra explorar o resto do blog... tem várias outras coisas ocultas por aí...

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  4. A Poesia dos atos e da seqüência,pode ser notada.
    Que assim como se percebe no início um movimento e depois a evolução deste acrescido de outros fatos.
    Onde pequenos detalhes podem gerar muita mudança em toda história.
    Se aproximando do modelo da realidade em que vivemos.
    E se distanciando desta ao mesmo tempo pela fantasia.
    Percebemos que as mudanças seguem um padrão.
    Como os fractais ou a Teoria do Caos.
    Ainda sim não sei se podemos aplicar isto à histórias, porque isto é pura matemática.
    Logo, isto está criando uma dimensão a mais.
    Quando se faz perceber que os limites são quebrados em pontos onde se deveria seguir uma lógica quase euclidiana, formada por pontos e linhas simples, montando uma realidade progressivamente. Para algo que tem vida, e que a cada leitura parece aumentar os detalhes, como se houve-se realmente existido, ou fosse existir tudo aquilo que é escrito.
    Excelente.

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  5. http://sagadosprodigios.blogspot.com/2011/09/prata-e-esplendor.html

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