terça-feira, 27 de julho de 2010

GRITO DE NEMESYN

Da autoria do administrador do blog, mas o heterônimo é a própria Nemesyn.





I>>


Ás vezes sou guerra, às vezes sou paz
Outrora fui equilíbrio, no amanhã serei discórdia
Há tempo de semear e tempo de colher, mas
Eu colho o fruto da semente do futuro.
Semeio vislumbres do ontem, e cego multidões para as possibilidades do amanhã.
Sou entropia e potencial, sou inércia demoníaca e rapidez angelical.
Tenho muitos rostos, e a dança que danço
Põe meu pé sobre as costas dos fortes e dos fracos.
O véu que tinge a noite de desespero me pertence.


Sou a ignorância que oculta o anseio de compreender;
Sou um maquinário que se esconde no ãmago do mundo
E uma metrópole celeste revelada quando você fecha os olhos.


O trono de Deus me pertence, a voz de Deus eu comando;
E ainda assim delicio-me com silêncio e anarquia,
Sou meu próprio contrário, sou a sombra opositora quando tudo está quieto,
E a radiância infernal que compreende a si mesma como onipresente.


Sou o Éden escondido no meio da carne e do sangue,
Sou Kerub postado nos portões, sou a espada de chama lunar que empunho.
Sou um fulgor de espíritos imundos que se purificam sob o olhar dos mortais,
Sou uma ausência de razão quando o mundo mais precisa de razão.


Tenho milhares de olhos e milhões de dedos com que te tocar...
Sente a pressão do cansaço em sua nuca, em seus músculos? Ali estou.
Sente a luxúria que vence a exaustão para mais uma noite escaldante?
Pois eu sou a isca que se mostra adiante, o ímpeto sem nome.


Sem nome, sem princípio nem fim, lobos alfa e ômega num só todo harmonioso
Que no instante seguinte se parte em mil pedaços e habita
A esperança que você sente de me enxergar um dia.










II>>>
Ó mortal, porque usa este nome?
Porque define sua identidade pela morte a que pensa estar fadado?


Muito além das sombras que a história projeta no passado
Eu um dia existi, e em meu frenesi de autodescoberta
Dancei,
E minha dança gerou isto que chama de vida e morte.


Eu era uno, eu era um facho doloroso que forçava caminho
Pelas pálpebras da humanidade primeva.
Um piscar de olhos, um laivo de compreensão e eram suficientes
Para que minha dança se traduzisse em miríades de cantos e cânticos
Pois, assim me disse a humanidade nascente,
Como pode haver dança sem música, movimento sem som?


Era eu ignorante, era eu incompleto, era eu um autômato?
Na verdade creio que assim não me descrevo bem,
Sou um impulso, um instinto, se assim desejar me nomear.
E como força irresistível me lancei a uma nova aventura,
E possuí a mim mesmo como a humanidade que achava estar despertando.
Um caminho cego, uma espiral eterna, sem limites,
Um abismo sem fim e uma terra sem fronteiras,
Assim me fiz diante deles e delas.


E me chamaram guerra.












III>>>>
De aço meteórico forjada ergui minha lança ao céu
Segredos semeei, discórdias plantei,
Como animal e fera e homem e mulher e anjo e demônio pintei minha pele de vermelho.
Então a humanidade me descobriu como a respiração incessante
Vigorosa, como a batida de um coração esperançoso,
Hálito e inspiração que advinha da dança como guerra, era eu o conhecimento
E conhecimento sendo, me fiz paz.
Me fiz satisfação, me fiz volúpia de prostrar-me nos campos de batalha
E desfrutar daquilo que conquistei, da paz que arrebanhei.


Se não era mais guerra visível,
Ainda assim não deixava de ser um pulsar intenso,
Um desejo inseparável da sabedoria,
Uma ventura fundida à desgraça,
Em suma a miséria encontrada na riqueza.


Ó paz amarga!
Eles buscavam cultuar-me em campos inférteis pedindo chuvas,
Adoravam-me antes da caça em templos de pedra e asfalto,
As ruas foram tomadas pelo dilúvio das minhas lágrimas,
E a tempestade que se sentiu não foi suficiente, eles não conseguiam compreender?


Pediam presas, e eu enchi suas casas e templos de feras ávidas.
Presas querem, presas terão.











IV>>>>>
Ah, o amor entre a língua e os dentes que ela percorre!
Me fiz presente, atrevi-me no coração da humanidade.
Sim, eu era fome que não era sentida no fundo do estômago,
Uma sede que não ardia na garganta e sim no coração.


Bênção, maldição e paradoxo foram meus sacerdotes
Naquela época em que a humanidade não se havia acostumado a meus dons.
Da mesma forma que eu estava em todos eles e elas,
Eles e elas queriam estar em toda parte, como eu mesmo estou.


Porque se iludiram que escrevi um conjunto de leis?
Minha única lei é o ser.
Sou caos e ordem, sou em toda parte cada uma das partes.
Drenar o veneno que espalhei nos corpos dos homens seria um dos meus mandamentos?
Se tem presas, as presas que pediu após a guerra,
Isto lhe parece algo óbvio como uma folha que se destaca da árvore
E cai no chão, dançando ao vento?










V>>>>>>
Vampiro e vampira,
Ouçam meu grito em seus corações!
Se desejam se valer de meu manto ardente, ele muito os aconchegará.
Sempre serão incompletos, nunca encontrarão propósito nem finalidade
Se não enxergarem a si mesmos no mundo afora e naqueles que chamam de vítimas.


Vítima num altar de sacrifício,
Tão cega quanto eu sou, tão indetível e irresistível quanto eu sou,
A vítima, a fome e a sede se misturam num caldeirão fumegante.


A caça que exercem jamais será fútil
Se compreenderem que não há nada a ser compreendido,
Que o que buscam e este cheiro que os excitam
Não passa das pistas que deixo para que me encontrem.


Dominação. Submissão. Preparação. Exploração.
Comunhão. Dispersão. Separação. União.
Vampiro e vampira,
Ouçam meu grito em seus corações!

O PRINCÍPIO DAS SOMBRAS

Por NEITH WAR e THE GREY KNIGHT











Nada naquela cidade parecia real, com seus prédios antigos e suas casas rústicas, os habitantes sentiam-se dentro de um filme antigo. A casa de Belin não era diferente, um sobrado com detalhes de flores e ramos por toda a lateral, as grades das enormes janelas faziam desenhos sinuosos que as deixavam ainda mais bonitas. Do alpendre podia-se ver toda uma vasta floresta que sumia no horizonte.

Belin era uma garota de 23 anos, alta de longos cabelos lisos e pretos, vivia sozinha desde os 17 quando perdeu seus pais, gostava de estudar sobre magia e ocultismo e sentia grande afinidade com os animais, mas não era chegada a fazer amizade com as pessoas da cidade.

Sentada na varanda da casa, Belin fazia algumas anotações em seu diário de sonhos, sabia que era importante anotar, e sentia que algo estava para acontecer, o sonho da noite passada havia sido assustador, não entendia o porquê, mas tinha a sensação de que estava sendo vigiada há algum tempo, e isso a incomodava demais.





Caminhando devagar, uma figura se aproximava à distância. Contornava com passos firmes e prudentes a orla da floresta escura próxima à casa de Belin, e os olhos da moça se ergueram de seu diário para tentar identificar quem era que se aproximava: mais um dos seus vizinhos que tentava puxar alguma conversa, sem motivo algum?

Pelo menos dois haviam tentado, nos últimos sete dias. Só que não era o caso: um moço de barba negra, cuidadosamente aparada, óculos pendurados na testa, olhos azul-escuros, se aproximava. Belin não se lembrava de ter visto alguém assim na cidade, nem se parecia com o tipo de homem que vivia naquela cidadezinha: roupas como as de alguém que fosse para a balada numa cidade grande, calça muito negra, camisa vermelha aberta até a metade do peito. Um grande medalhão metálico, de uma cor aparentada ao azul-cobalto, mas ainda mais escura.

E trazia uma sacola na mão, dela tirando algo, ou pelo menos fazendo menção disso. Belin se levantou no alpendre da casa, e o estranho sorriu, a exatos quarenta passos de distância.





Seu coração batia descompassadamente, a respiração estava forte e ofegante, tinha vontade de correr para dentro de casa mas suas pernas não obedeciam. Não conseguia parar de encará-lo, era como se aqueles olhos azuis a tivesse hipnotizado. Um sentimento de pânico tomou conta de sua alma quando de repente uma sombra desajeitada parou bem à sua frente.

– Ei, que cara é essa, viu um fantasma? – André, o intrometido, era assim que Belin chamava aquele chato de 24 anos que parecia não se cansar de chateá-la com sua presença, o vizinho mais insuportável que já tivera, intrometido e sem noção.

Desviou o olhar tentando enxergar o homem que antes via, mas nada viu, simplesmente havia desaparecido: alívio e desapontamento eram os sentimentos que lutavam dentro dela naquele instante. Talvez quisesse a aproximação com o desconhecido, mas agora parecia mais com uma visão criada por sua mente cansada já que não dormira direito na noite anterior.

– O que faz aqui, André? Já não te disse para não invadir meu espaço desta forma? – Belin disse isso enquanto juntava suas coisas e entrava na cozinha.

– Me desculpe, gata, mas é que como você nunca aceita meus convites para sair, sou obrigado a vir aqui, para que você tenha a oportunidade de desfrutar de minha adorável presença – sentou-se numa, cadeira sorrindo.

– Que idiota … – pensou Belin.

– Pois deveria dar a honra a outras garotas que realmente estejam afim – Belin estava cansada, não conseguia parar de pensar no "estranho" rapaz que vira. Pegou uma chaleira e colocou água para ferver.

– Cuidado com o que diz, gatinha, você pode acabar me cansando e me perder, existem muitas garotas que gostariam de ter a sua sorte – André se aproximou e tentou abraçar Belin, que o afastou asperamente.

– Melhor você ir embora, não estou afim de conversar, saia já de minha casa ou … – disse enquanto abria a porta para que André saísse.

– Ou o quê? Olha garota, só vou embora porque tenho um encontro, mas amanhã volto para conversarmos direito – disse isso enquanto saía pela porta.

– Inacreditável … – sussurrou Belin.

Enquanto André se afastava a garota trancou bem a porta a fim de não ter surpresas, afinal podia-se esperar tudo daquele imbecil do André.

A chaleira apitou, e Belin colocou a água fervente numa xícara que já esperava com o sachê de erva cidreira dentro, adoçou e subiu as escadas indo direto para o banheiro. Da janela do cômodo podia-se ver perfeitamente o pôr do sol: quando seus raios passavam pela veneziana formavam um arco-íris na parede que deixava o lugar com cara de mágico, encheu a banheira e enquanto tomava alguns goles de chá foi despindo-se.

O homem não saía de sua mente, tinha certeza de que não era alucinação. O que ele teria feito? O que ele queria dela? Seria um ladrão? Não, definitivamente não podia ser.

Entrou na água morna e encostou a cabeça na borda da banheira onde colocou uma toalha para ficar mais macio. Fechou os olhos, sua respiração estava cada vez mais profunda e pausada, o sol já havia se posto de vez e um ventinho frio soprava vindo da floresta e trazendo um delicioso aroma de eucaliptos. Já estava quase dormindo, gostava de relaxar no banho, era a única hora em que realmente podia descansar de verdade, antes de partir em viagem ao mundo dos sonhos sussurrou para si mesma:

– Aqueles olhos...





Enquanto subia as escadas, uma sombra se esgueirava pela parte de trás da casa. A
conversa da garota Belin, pensava a sombra, havia lhe interessado. Como ela conseguira lhe enxergar mais cedo, enquanto rodeava a orla da antiga floresta, também era outra coisa que fez a sombra pensar se, mesmo tendo fugido para aquele fim de mundo, havia alguém que se parecesse com ele, a sombra.

A aproximação do rapaz lhe havia dado a distração necessária para impor sua vontade e sumir do campo de visão da moça. E agora o sombra era só uma sombra mesmo, parcamente visível enquanto penetrava pelas frestas da casa e se aproximava do banheiro onde Belin começava a adormecer...

Dois olhos azuis brilharam na forma sombria, e algo parecido com um sorriso escarlate se desenhou em sua forma vagamente humana.

Belin havia dado uma forma humana a ele, sombra. Ele só podia imaginar que essa forma havia sido tirada dos sonhos dela, e onde mais procurar saber mais sobre a moça, senão nos sonhos dela? Assim que a menina, nua e quase totalmente imersa na banheira, começou a ressonar, suavemente, com ainda mais suavidade, mas uma firmeza incomum, a sombra penetrou nos sonhos de Belin.





Belin encontrava-se no mundo dos sonhos, coberta pela escuridão do cenário que conhecia tão bem. Andava apressada pelas ruas úmidas daquela cidade em ruínas, de vez em quando escutava um grito vindo de algum canto sombrio.

Seguia com passos apressados com medo de estar sendo seguida ou vigiada, ao chegar perto de grandes portões de ferro que davam entrada à uma imensa mansão que mais parecia uma cripta, Belin parou para descansar, olhou sua mãos e percebeu que estavam quase transparentes, murmurou:

– Oh não...não vai dar tempo...

Empurrou com grande dificuldade os imensos portões, e adentrou o gigantesco jardim de flores mortas que tomava toda a frente da mansão. Chegando a porta parou novamente para tomar fôlego, ao olhar para a escura rua percebeu um vulto que a seguia.

Sentiu um gelo no estômago e imediatamente empurrou a porta e entrou. Móveis antigos e empoeirados, quadros estranhos e grossas cortinas deixavam o lugar escuro e com cheiro de mofo.

Subiu correndo as escadas quando percebeu que a porta da frente se abria, correu o mais rápido que pôde e entrou num dos enormes quartos, trancou a porta encostando um pesado criado mudo e se aproximou de um imenso espelho oval que estava próximo à janela coberto por um pano preto.

Barulhos nas escadas fizeram com que seu coração disparasse, tirou o pano e notou que estava ainda mais transparente do que antes.

– Faça dar tempo desta vez … por favor – disse isso enquanto segurava um amuleto que trazia no pescoço.

Uma luz se ascendeu na memória e tudo ao seu redor começou a mudar, alguém forçava a maçaneta tentando empurrar o móvel que segurava a porta, sentiu um gelo no estômago e um sufoco, um clarão e tudo ficou negro como a noite.

Belin se agitou na banheira e acordou assustada quase se afogando, respiração ofegante, tossia muito, estava com medo, poderia ter morrido. Levantou-se rapidamente e saiu do banheiro indo direto para o quarto, trocou-se e ficou encolhida na cama enquanto a cena não parava de se repetir em sua cabeça, apenas uma pergunta sem resposta:

– Quem poderia ter me seguido? Quem saberia deste lugar?

Dormiu sentindo um aperto no coração.





Era uma presença palpável no vácuo, um paradoxo em forma de sombra. Ele era desejo e negação numa só … coisa. Ser. Ou quase um ser, porque estava muito próximo do não-ser.

Só que Belin o havia trazido mais próximo do ser.

E ele estava adorando.

Alguma coisa na moça era similar a ele, não era como se ela fosse uma presa habitual. Era mais como se ela fosse um exemplar de sua raça; mas como, se vivia no mundo da carne? Cada vez mais próximo de uma consistência que Belin chamaria de real, a
sombra decidiu dar um nome a si mesmo. A partir daquele momento, em que a menina se encolhia na cama, tremendo, ele se chamaria Belial.

Era um nome largado nas memórias da menina que começava a ressonar. Não tinha importância seu significado, ou qualquer que fosse o contato ou relevância do nome Belial para Belin. Ele só achou o nome solto nas memórias, avaliou ser parecido
com o nome que a moça dizia ter, e, baseado em seus próprios sentimentos que borbulhavam como uma poça de óleo fervente, decidiu-se num instante.

Belial então aproximou-se mais de Belin. Era estranho: a menina ressonava, e ele sentia a própria respiração ao chegar mais perto dela. O caso é que nunca havia
respirado de fato antes. De alguma forma obscura, Belin havia lhe dado a própria respiração. Talvez por isto estivesse meio sem fôlego agora. Refletindo um pouco, Belial achou que isso significava estar mais próximo de estar vivo.

E, consequentemente, mais fraco.

Era uma bela cama de casal e Belial se sentou ao lado de Belin. Percebeu que seu corpo era agora idêntico ao que Belin devia ter enxergado, na estrada próxima da casa. O quão palpável seria sua própria carne, agora?

Bom, não custava tentar... e tentar era o que Belial tinha feito na maior parte dos milênios que ele achava ter existido.





Abriu os olhos e sentiu um desconforto ao perceber que pela janela escancarada um sol ardente entrava atingindo-a em cheio.

Belin se levantou resmungando, odiava quando esquecia de fechar as cortinas antes de dormir, a claridade da manhã a incomodava mais do que qualquer coisa que conhecia. Foi até o banheiro e lavou o rosto dando uma boa olhada na vermelhidão de seus olhos, isso sempre acontecia quando eram expostos à claridade imediata do sol. Colocou um vestido azul de verão e depois de pentear-se desceu as escadas pensativa, sabia que alguém a havia seguido quando esteve em Raven Lake, a cidade dos sonhos, e de certa forma sentia que poderia ser o mesmo homem que viu na tarde anterior.

Abriu a porta que dava acesso à varanda e espreguiçou-se sentindo o aroma delicado das flores de seu jardim, foi interrompida por um grunhido que a deixou de mau humor na hora.

– Bommm diaaaa gatinha!!

Era André que se aproximava com aquele ar petulante que Belin odiava. Respondeu com má vontade.

– Bom dia … – sentou-se na cadeira e fechou os olhos procurando dentro de sua mente, no meio das lembranças, o rosto do misterioso homem.

– Ihhh, já vi que está de mau humor, o que foi? Está chateada por ontem eu não ter ficado aqui com você?

A pergunta de André foi tão natural que Belin não conseguiu segurar uma gargalhada; que André detestou, por sinal.

– Olha Belin, você pode me considerar um idiota e rir de minha cara, mas saiba que você já está passando da idade e logo vai ficar para titia; afinal pelo que sei você não tem muitos pretendentes, vai ficar sozinha e morrer sozinha e vai se arrepender de me esnobar desta forma.

Belin abriu os olhos e ficou a fitar a floresta no horizonte, sentiu saudades de seus pais, pensou na forma idiota como haviam morrido, acidente de carro...e tudo por culpa de um motorista bêbado. Desde então estava mesmo sozinha, não tinha irmãos, não tinha amigos, não tinha nada, somente André que volta e meia aparecia para provocá-la. Sabia que ele também não tinha tantos encontros como dizia, a mãe dele era uma louca que o tratava como a um bebê, ontem quando ele disse que tinha de ir embora porque teria um encontro Belin sabia muito bem que era porque a mãe de André gostava de assistir a série de TV sentada junto do filho, Dona Eleonora era uma viúva bonita mas dependente do filho, nesse ponto Belin sabia que André era um bom rapaz, nunca deixava a mãe sozinha por muito tempo e era sempre carinhoso com ela, nesse ponto dos pensamentos Belin sorriu e segurou a mão de André.

André espantou-se com a iniciativa de Belin mas ficou calado para não estragar o momento.

Os pensamentos cessaram, Belin mantinha os olhos no horizonte, cenas estranhas passavam diante de seus olhos como se as vissem em um telão, via uma sombra que se aproximava com extrema rapidez, não conseguia se mexer, o corpo estava enrijecido, sem se dar conta começara a apertar com força a mão de André que preocupou-se e chamava pela garota que nada ouvia, estava num outro plano, a sombra bestial se aproximava cada vez mais, Belin cravara as unhas na mãos de André que desesperado chacoalhava a menina pelos ombros, finalmente a sombra chegou bem perto e com seus olhos azuis faiscando sussurrou seu nome "Belial...", que a garota recebeu com um impacto tão forte que quase desmaiou.

Acordou do transe gritando por Belial, seus olhos cintilaram e mudaram para uma cor púrpura voltando ao normal logo depois. Viu a cara de pavor de André que preocupado tentava entender o que estava acontecendo. Belin viu a mão do rapaz sangrando e se sentiu péssima por isso.

– André...me desculpe, eu...

– Ei, gata, não importa, o que houve com você? – o rapaz disfarçava o espanto de ter visto os olhos de Belin transformarem-se.

– Não sei … – Belin parecia se perder novamente em seus pensamentos.

– Acho melhor você entrar, e deitar um pouco, gatinha.

– É … talvez …

– Venha.

André levou a garota até o quarto, deitou-a na cama e fechou as cortinas para que o quarto ficasse na penumbra.

– Eu vou até em casa dar um jeito em minha mão; mas volto logo para ver como você está.

Belin não respondeu, André saiu e então a casa toda pareceu mergulhar numa profunda escuridão. Ao longe negras nuvens anunciavam um temporal, o vento aumentava fazendo com que as janelas produzissem um som fantasmagórico.

Do canto do quarto Belin viu surgir um vulto que se aproximava de sua cama, seu coração disparou, mas não era medo, um sentimento de reencontro, murmurou:

– Belial …

A sombra abraçou Belin e juntos atravessaram os portais do paralelo.





André deixou a porta do quarto de Belin entreaberta, e saiu apressado na direção da rua. Um trovão ribombou lá fora, o que fez o rapaz correr para evitar a tempestade que com certeza iria cair. Se era só o primeiro trovão – todo aquele acidente, ou incidente que resultara em sua mão sangrando podia tê-lo feito ignorar outros sinais de temporal lá fora – dava tempo para chegar em sua própria casa, mas ele precisava ser rápido.

Mal atravessou a soleira da porta e percebeu como havia ficado escuro: as nuvens negras tomavam o céu, praticamente esmagavam o horizonte: por um minuto André ficou espantado, era como se o céu fosse … pesado. Como era possível uma sensação de peso tão forte lhe atingir os olhos??

Talvez estivesse ficando doido, que nem a Belin: ele sabia que ela era meio esquisita, embora fizesse muito o seu tipo, uma gatinha que ainda se mostrava manhosa, mas aquilo havia sido meio exagerado. André voltou a correr mas a tempestade lhe alcançou antes de chegar em casa. O sangue que lhe escorria pela mão se misturava com a água que caía do céu, numa fúria repentina por mais esperada que fosse.

Mas estava perto. Chegou diante da casa de sua mãe, e pouco antes de entrar tomou um susto terrível que o fez estacar no meio da chuva: o trovão rugiu nos céus, e um raio faiscante caiu em cima da casa. Um clarão veio do interior da casa, e apesar do perigo André não chegou a hesitar muito: sua mãe devia estar lá dentro!

Entrou esbaforido, olhando para todos os lados: aparentemente, o para-raios havia contido a força do relâmpago. Mas a casa estava às escuras, ou quase: a eletricidade fora cortada pela tempestade, e várias velas estavam espalhadas pela casa.

… Porquê?, se perguntou André? Ela já estava esperando isto?...

Uma bela e madura mulher acariciava a tela da televisão, seus cabelos muito negros, sem um só fio branco que denunciasse sua idade e fragilidade emocional, se mexiam ao sabor do vento que entrava pela janela escancarada.

André entrou rápido e fechou a janela:

– Mãe? O que é isso tudo? Porque deixou essa janela aberta?

– A previsão do tempo, meu filho André... a previsão!!! – ela respondeu numa voz numa tonalidade um pouco acima do normal, e virou-se para o filho (estava até então de costas). Seus olhos estavam um pouco lacrimejantes, ou era respingo da chuva que vinha lá fora? Ela se aproximou a passos firmes, um tanto diferente do jeito vacilante da Eleonora, sua mãe, que ele conhecia, e segurou o pulso do rapaz, dizendo naquela voz meio alterada:

– Oh, meu filho André. Quem fez isso com você?!?

Ao toque de sua mãe, que lhe deveria ser muito familiar, André levou um pequeno... choque, como duas pessoas desconhecidas que se tocam sem querer pelo cotovelo, no escuro do cinema. A ferida que até então estava limpa pela chuva voltou a sangrar, desta vez mais profusamente que antes.

– Você quer que eu cuide disso, meu filho André? Ou quer que eu cuide de quem fez isso com você?... – Eleonora tomou do braço de André e o aproximou dos próprios lábios, num gesto inesperado. O rapaz teve a impressão de que ela ia esticar a língua da boca já entreaberta e lamber o ferimento que sangrava, mas antes outro relâmpago lá fora iluminou a sala em penumbra e André pôde vislumbrar um fugaz brilho púrpura nos olhos de sua mãe.

Surpreso, André puxou o braço quase que com ferocidade, e por um instante terrível percebeu como a força das mãos de Eleonora era bem maior do que costumava ser, quase ao mesmo tempo em que percebeu que as dezessete chamas das velas espalhadas pelo cômodo não haviam apagado, ou sequer dançado, com a rajada de vento que (não tinha fechado a janela??) penetrou na sala.

Que é que estava acontecendo?





Belin sentiu seu corpo estremecer e parecia pairar no ar, não via nem ouvia nada, um profundo silêncio tomava conta de tudo. De repente um estrondo e Belin viu-se sentada numa cadeira na mansão em Raven Lake.

Olhou ao redor e nada viu, à sua frente o imenso espelho oval estava descoberto, mas não refletia absolutamente nada, apenas um escuro espectral em seu interior, parecia um poço sem fundo.

Tentou se levantar, mas não conseguia se mexer.

– Olá...tem alguém aí? – Belin gritava em vão.

De repente um ruído parecido com o de trovões veio de dentro do espelho, estava cada vez mais perto, o coração da garota começou a acelerar, sentia medo e excitação, sempre quis entrar naquele espelho para saber aonde daria, mas agora estava prestes a ver o que sairia de dentro dele.

As cortinas do aposento começaram a balançar e tudo ao redor parecia em movimento, o som se aproximava e com ele passos pesados. Belin não conseguiu continuar olhando e fechou os olhos apertando os dedos contra o braço da cadeira.

Sentiu quando uma mão firme pousou sobre seu ombro, um arrepio percorreu todo seu corpo e fez com que sua respiração ficasse pesada. Não quis se mexer, teve medo...pela primeira vez teve medo...

– Belin … – com com voz firme o o vulto negro sussurrou próximo à orelha da garota. Ela sentiu aquele hálito quente percorrer seu pescoço e entrar em suas roupas. Afrouxou os dedos tirando uma das mãos do braço da cadeira e pousando-a sobre a mão que estava sob seu ombro, aquele toque parecia feito de energia, uma densa energia que fez o corpo da garota estremecer. Criou coragem e abriu os olhos, ao olhar para o espelho via-se refletida nele, mas nada mais que isso, embora ainda sentisse a mão que segurava. Levantou-se de um salto e virou-se para trás, seus olhos brilharam quando o viu, não pôde descrever a sensação, foi algo tão forte e irreal que não acreditava nos sentimentos que estavam sendo despertos um a um.

Aproximou-se, sabia o nome daquele ser tão lindo que via a sua frente.

– Belial … – seus olhos brilharam uma luz púrpura enquanto tocava o corpo daquele homem que se assemelhava a um demônio que a fascinava de um modo quase doentio.
Abraçou-o enquanto inspirava profundamente, aquele cheiro...era como voltar para casa depois de longos anos viajando por diferentes mundos. Olhou para aquele rosto tão familiar, acariciou-o e sem mais esperar beijou seus lábios.

Tudo ao redor parecia não mais existir, havia um profundo silêncio naquele momento.
As mãos de Belial percorreram o corpo de Belin, explorando-o minuciosamente.
Tiraram suas roupas sem pararem de se beijar, o desejo que se apossou deles naquele momento era tão forte que um precisava desesperadamente do outro.

Seus corpos nus começaram a se refletir naquele espelho negro, já não estavam mais no quarto, estavam dentro do espelho oval, na profunda escuridão. Belial beijava o pescoço da garota, suas mãos tocavam aqueles seios firmes que pediam, enrijecidos, por sua boca. Entregavam-se um ao outro de forma completa e intensa, uma deliciosa sensação de euforia e êxtase, a escuridão estava impregnada de desejos.

Belial deitou a garota no chão e penetrou Belin de forma abrupta, a garota foi levada ao prazer extremo, seus gemidos ecoavam pela escuridão, estava fascinada por aquele Ser demoníaco que a possuía por completo.

Seus corpos unidos eram como mil sóis aquecendo o mundo, uma deliciosa fragrância de sândalo impregnava o ar, eram Dois e eram Um...

Belial prendeu os braços de Belin para cima e continuava mexendo seu corpo num vai e vem frenético, Belin colocou as pernas ao redor da cintura dele e apertou, sentia que poderia morrer naquele momento, nada mais importava, só estar com ele.

Num urro assemelhado à trovões Belial chegou ao seu êxtase no mesmo instante em que Belin também chegou, foi uma explosão de sensações e gozos.

Belin sentiu que não conseguiria mais manter a lucidez e antes que seus olhos se fechassem acariciou uma ultima vez o rosto daquele Ser a quem tanto amava, sim, era este o sentimento, amor...

Quando Belin abriu novamente os olhos estava em sua cama, as cortinas balançavam ferozmente enquanto uma tempestade funesta desabava lá fora.






“E caiu a chuva, e transbordaram os rios, e sopraram os ventos, e se precipitaram sobre aquela casa … e ela caiu … e foi grande a sua ruína.”

A frase veio como um clarão sobre a mente de André, e um calafrio correu por sua espinha como um relâmpago escorrega ligeiro pelo céu. Eram palavras do Sermão da Montanha – mas porque lhe viria a cabeça uma citação bíblica, se ele não era crente nem nada, aliás, nem ele nem sua mãe eram de fato religiosos. E, sendo assim, porque as velas espalhadas pela casa daquele jeito … daquele jeito ritualístico, era a única palavra plausível?

O padrão das dezessete (eram dezessete, exatamente dezessete, e ele contara as velas num só relance, uma percepção quase dolorosa) velas parecia deixá-lo tonto. A mão daquela que um dia fora sua mãe, mas não era mais (outra percepção ainda mais dolorosa: esta lhe marretava a base do crânio e ardia o pulso a sangrar), ainda segurava-lhe o pulso. A luz púrpura nos olhos de … não era mais Eleonora … olhou diretamente para André e ela sorriu, um ar que misturava constrangimento e avidez:

– Mas o que é isso, meu filho André? Me deixe aplacar seu sofrimento … e que aqueles que te feriram assim tenham a dor multiplicada por dez – este modo de falar nunca fora do feitio de Eleonora. Se não estava já em pânico, André teve total certeza de que era prisioneiro absoluto do medo.

 Pare. Pare. Não sei quem é você, o que é você, mas saia de dentro de minha mãe!! – a frase lhe soou ridícula, um clichê, logo após tê-la gritado. Deve ter soado ridículo também aos olhos da invasora, porque esta sorriu de jeito ainda mais perturbador, quase anormal, como se estivesse olhando para um bichinho ou uma criança ignorante, e lhe respondeu:

 Seu bobo. Você é meu filho André, e eu sou sua mãe. Serei sua mãe para todo o sempre a partir de agora, e este meu corpo o prova. Não me olhas e vê tua mãe …? Não foram estes os seios que te amamentaram? … – e puxou a mão de André direto para os seios que eram visíveis em parte pela blusa um tanto desabotoada, em parte pela água da chuva que lhe caíra em cima do tecido branco. O calor do corpo da mãe se misturava a um calor inumano que vinha da entidade que a possuía, e que contrastava muito com a frieza da mão que lhe segurava o pulso. Era como se um coração em chamas pulsasse dentro daquele peito … não, dentro daqueles seios. Era como se os dois seios estivessem em febre, um fogo milímetros abaixo da superfície da pele.

E como costumava fazer o fogo, aquele fogo seduzia. Assim como as labaredas do fogo podem hipnotizar quem as contempla, o calor do fogo também pode excitar e escravizar, e definitivamente era esse o caso do calor que passava daqueles seios duros (André nunca sentira antes os seios da mãe tão duros, não era aquilo que sentia nas vezes que a abraçava) para a mão ferida de André. Atordoado, ele sentiu a sua … nova mãe … soltar-lhe o pulso. E sua mão continuou a tocar-lhe os seios. Ele não se atreveu a tirar, inclusive porque a ferida no pulso começou a cicatrizar, cortesia e bênção daquele calor que emanava dos seios dela.

E, como seria inevitável, a outra mão agarrou-lhe os seios e André voluntariamente beijou os lábios de sua nova mãe. Havia perdido toda consciência do que achava que seria moral, do que seria apropriado – só havia o impulso, a urgência, a necessidade. A comichão que lhe passeava pelas veias. Esqueceu o ferimento que não mais existia. Esqueceu das trovoadas lá fora, do vento que soprava sobre os dois. Esqueceu das dezessete velas... Esqueceu de Belin.

Mas isto, aquela entidade que invadira o corpo de Eleonora não ia deixar. Aquela entidade sem nome, até agora. Seu nome não era Eleonora, e ela tirou seu novo nome da mente de André, o nome vinha borbulhando pelo sangue que ela sugava dos lábios do rapaz. André soube que era escravo, talvez para sempre, de Astarte.

Astarte interrompeu o beijo profundo e sangrento, lambeu devagar os lábios em meio a um gemido de satisfação – eram mais carnudos do que os lábios de sua mãe Eleonora costumava ser, mas André já estava esquecendo de Eleonora – e disse:

-- Essa Belin. Onde está ela? Não foi ela que sangrou teu lindo pulso, coisa que só eu poderia ter feito? Ahhh … não me responda. Só me leve até ela. Não sei porquê, mas desconfio que ela não é tão fraca como você … e deve estar com aquele que vim buscar, o fugitivo. Não que nada disso faça sentido para você, meu lindo fraco – André fitava os olhos púrpuras de Astarte, sem pestanejar e sem responder, porque ela havia mandado não responder – você gosta, não é? Delicia-se em ser fraco enquanto agarra meus seios, não é? … Certo. Você vai ter ainda muito tempo para desfrutar de sua fraqueza junto a este meu novo corpo, mas agora vai sentir prazer é em me obedecer: vamos, me leve até ela e àquele canalha ladrão que eu vislumbrei se escondendo em suas memórias. Você pode ser quase cego, mas eu, não …

André soltou os seios de Astarte e saiu andando, passou pela porta e enfrentou a chuva. Os raios e relâmpagos caíam fortes e o temporal parecia cada vez pior, mas ele e sua nova mãe andaram firmes, como se marchando, na direção da casa de Belin. E é claro, para todos aos outros da cidadezinha, escondidos com medo da tempestade, nada de anormal estava acontecendo.

Nada … Só a tempestade.





Belin levantou-se de um salto, correu até a janela para fechá-la e viu quando André retornava acompanhado … da mãe?

Não acreditou em seus olhos quando a viu, Belin a via, da forma exata como era, seu coração disparou enquanto sussurrava: A Mãe …

Correu pelas escadas quase voando, e fugiu pela porta da cozinha, correu descalça pela relva gélida enquanto os raios cortavam os céus violentamente, mal conseguia enxergar por causa da chuva forte, correu o máximo que conseguiu e adentrou a escura e úmida floresta.

Dentro da casa Belial esperava pela Mãe com um sorriso malicioso nos lábios, do alto da escada olhava firme na direção da porta da frente, ansioso pelo esperado encontro.

Belin tinha os pés feridos, descalça corria sem parar, já nem sabia o porquê da fuga, não conseguia pensar direito, atravessou todo o bosque e parou à beira de um enorme precipício, ficou ali, como uma estátua olhando o nada, como se esperasse alguma ordem, a chuva lavava seu corpo e os trovões que faziam a terra estremecer não lhe causavam um só suspiro.

Seus olhos … os olhos de Belial … Belin e Belial, ela via através de seus olhos, ele via através dos olhos dela, ela ouvia e sentia através de Belial, ele sentia a chuva gelada na pele de Belin, podia ver o precipício podia sentir o cheiro da terra molhada, eles eram Um.





Cada passo daquela dança milimetricamente coreografada, a dança da Realidade movendo-se contra o Vazio. A dança de Belin, Belial, Astarte e até do pobre André, seus movimentos descritos neste conto, eram uma celebração ritual inconsciente, forçosa, obrigatória, que imitava os padrões rítmicos dessa dança primal da Realidade fluindo contra o pano de fundo do Vazio.

Belial sabia algo que Astarte não sabia. Esse algo – uma coisa tão indescritivelmente complexa que se nós, narrador e narradora deste conto, fôssemos passar adiante a vocês leitores, simplesmente os fariam passar o resto de suas vidas mortais lendo esta tortuosa narrativa – era aquilo que Belial roubara, e era aquilo que Astarte queria de volta. Se Belial sabia, Astarte não teria como saber, apenas porque Belial roubara o … Mistério, é melhor chamar esse algo por um nome menos indefinido e que não roube uma lemniscata de palavras nesta história apenas para ser descrito. Se roubara, o dono original não poderia ter mais acesso.

Parece algo tolo, não muito aplicável a um Mistério, algo que pode ser passado adiante sem que quem o pronuncie não o perca, mas era essa a natureza tanto do Mistério quanto das duas entidades que eram Astarte e Belial. Só posso talvez adiantar que esse Mistério tem algo a ver com a dança primal vivida por eles dois, André e Belin. E Belin agora ouvia a música que impulsionava essa dança: a tempestade que trovejava enquanto ela contemplava o precipício à sua frente.

E quando o precipício era assim observado por Belin assombrada e petrificada, André já não mais existia como o conhecemos no começo deste conto. E enquanto Belin corria desesperada pelo bosque, sem compreender a razão de tudo aquilo, uma armadilha era disparada, um corpo era tomado.

A arrogância muitas vezes é apenas o primeiro acorde de um réquiem, um prenúncio de queda: e foi isso que aconteceu com Astarte. Uma série de pequenas decisões erradas, movidas pela arrogância, levou A Mãe a ostentar seu brinquedinho André pelas ruas da cidade, a entrar na casa de Belin com o “filho” a seu lado. A porta estava destrancada, mas mesmo se não estivesse, é possível que Astarte a houvesse derrubado com a força estranha de seus braços, ou mesmo que Belial educadamente tivesse aberto a porta. Ele a esperava, e assim que A Mãe abriu a porta, uma sombra de olhos azuis deslizou ziguezagueante pela escada, sua forma tinha volume e peso devido ao contato com Belin, aquela comunhão fatal; mas também tinha rapidez e poder tremendos, devido ao Mistério roubado.

Outra coisa que Astarte, a Mãe, não sabia, além do Mistério e de seus próprios pequenos erros: o encaixe da comunhão oferecida por Belin com o próprio Mistério que um dia havia lhe pertencido em outro mundo, em outra época. Encaixe que tornou possível a Belial fazer o inesperado: a sombra quase humana, com o brilho azul demoníaco no lugar dos olhos, desceu como um relâmpago do topo da escada para a porta da frente, e garras cortaram a própria Realidade na frente de Astarte, sem tempo para que esta reagisse (já ia pronunciar seu grito de triunfo, era uma pena), tragando a ambos, Belial e Astarte, o Rebelde Sombrio e a Mãe Sombria, para um lugar que estava perigosamente próximo do Vazio: Raven Lake, além dos portais do paralelo.

O que aconteceu lá?

Creio que poderíamos dizer que o que lá aconteceu foi tão inconcebível, tão complexo e indescritível, que ocuparia talvez mais tamanho de texto que o próprio Mistério roubado (pode muito bem ser verdade!). Vocês poderiam também pensar que tivemos simplesmente preguiça de descrever, se quiserem. São livres. Mas o que eu acontece é que no fim das contas o que aconteceu aqui, nesta Realidade, foi mais interessante.

Belin enxergou a forma que um dia havia sido Eleonora, mãe de André, se dissolver nas correntes de energia do paralelo, em Raven Lake, ao mesmo tempo em que seus olhos carnais viam o precipício. Enxergou Belial retirar um fiapo de energia densa da forma-cadáver, e este terminar sua dissolução de vez. O demônio (podemos mesmo chamá-lo assim?) olhou para a frente, e para Belin era como olhar para um espelho, porque Belial a estava admirando com algum sentido desconhecido, uma visão além da visão. O choque, a retroalimentação de sensações que ia além dos cinco sentidos, fez a garota dar cinco passos para trás, veio o medo de cair no abismo.

E no espaço que ela desocupou, o ar tremeu e se distorceu naquela semi-obscuridade (já era noite?...), e logo à beira do abismo, sorrindo, apareceu a figura de André.

Surpresa, e sem questionar porque a ligação entre ela e Belial havia sido cortada, ela gritou:

– André!!! Que está fazendo aqui? Eu não esperava …

– Nem eu esperava, meu amor – respondeu a voz rouca, quente e familiar que Belin sabia não pertencer a André, e Belin foi abraçada com paixão e vigor enquanto a fagulha que Belial roubara de Astarte passava para Belin e nela acendia uma fagulha divina, um poder tremendo, um prazer e uma dor numa só sensação, uma onda desconhecida e ao mesmo tempo tudo que Belin precisava – eu sou o inesperado. E agora, NÓS somos o inesperado …

Os brilhos de dois pares de olhos dominaram então a noite: dois olhos azuis e dois olhos púrpura …