escrito por Arthur Ferreira Jr.'.
My reflection, dirty mirror
There's no connection to myself
I'm your lover
I'm your zero
I'm your face in your dreams of glass
Smashing Pumpkins, Zero
"E naqueles três dias, só uma coisa me aliviou o cansaço provocado pelas providências a tomar e pelos estranhos e inesperados pesadelos. Essa coisa foi Anna."
Virgílio Mago, em O Farol na Escuridão
"NÃO DIGA QUE SOU INOCENTE!", meu grito ecoava pelos corredores da mansão.
"Eu já cansei de dizer a você, tenho dezessete anos, já voto nos corruptos que você apóia. Nem queira que eu continue com a lista de razões que lhe convençam de que eu não sou uma menininha ingênua, pai." Eu ofegava e me agarrava com unhas e dentes (naquele ponto, mais unhas que dentes; se ele insistisse muito, os dentes agiriam) ao grosso pacote de livros em cima, apertando-o de jeito a quase esmagar meus próprios seios.
"Anna ... esses livros não são para você. São parte do meu negócio de antiguidades, nem mesmo eu dou tanta atenção a eles. Largue isso ... agora mesmo." O homem parado à minha frente, de voz firme mas mãos trêmulas (começava a mostrar os sinais da doença de Parkinson), não se parecia em nada comigo, mas era meu pai. Olhos muito negros, a calvície incipiente eliminando os cabelos também muito negros, aquele era o senhor Vicente Leonardi, meu pai adotivo.
"Se são negócios, então, eu pago. Tenho minhas reservas de dinheiro, a mesada que você mesmo me dá não é gasta com bobagens, você mesmo me ensinou isso", meus cabelos ruivos, levemente encaracolados, cobriam parte dos meus olhos, mas eu não estava nem aí, de tão furiosa. "Não sou igual às minhas amigas, tenho direito a ter meus próprios interesses, então estou comprando esse pacote."
"Anna. NÃO. E não me faça repetir. Acontece que estes livros ..." foi interrompido pelo ruído da porta do gabinete sendo aberta, e um rapaz louro, magro mas atlético, de feições duras mas olhos afáveis, entrou, abotoando sua camisa polo. Esse era meu irmão ... meio-irmão ... meu melhor amigo dentro daquela casa, Victor. Ele olhou bem fundo em meus olhos verdes e virou-se para papai, "Deixe, afinal de contas ela precisa aprender a gerenciar os próprios desejos. E vai fazer isso com o dinheiro que tem. Os livros são bem caros, não é? Não faça desconto, então, papai. Deixe que ela pague por seus caprichos, vai ter que aprender com isso."
O velho abanou a cabeça, pensativo: "Aprender, hum ... não sei, não sei, as coisas nesses livros ..."
"Fantasias, papai." Victor sorriu, condescendente. "Outra coisa com que ela vai ter que aprender a lidar. A frustração é uma excelente professora."
"E o arrependimento, mais ainda," murmurou papai. "Está bem, meu filho, quem sabe você tenha razão. Faça o depósito na minha conta, Anna. E agora saiam os dois do meu escritório, preciso rever umas contas, e quero paz. Coisa que nenhum dos dois me dá de graça."
Saí correndo, de braço dado com Victor. "Essa foi fantástica, sabia? Nunca deixo de me maravilhar com o jeito que você dobra ele e outras pessoas." Afobada, fui indo na direção do meu quarto, segurando o pacote e sem deixar de agarrar o braço do meu irmão. Na porta do cômodo, Victor riu e falou, sussurrando: "Já vai querer me agradecer pelo favor?"
"Victor, pare," olhei meu irmão adotivo bem no fundo dos olhos, como ele costumava fazer comigo, "bem sei que o que fazemos não é errado, você não é meu irmão de sangue, mas ainda estamos de dia, vai dar na vista dos empregados. E aí eu quero ver o que é que você ia inventar pra papai."
"Não me teste, sua boba." Ele riu e se desvencilhou do meu braço. "Eu sei que você quer é agora explorar seus novos livrinhos. Vai juntar àqueles que você comprou, escondida de papai."
Resmunguei uma resposta qualquer e fechei a porta. Não na cara dele, que já estava adiantado no corredor, rindo baixinho. E então, fiz exatamente o que ele disse que ia eu ia fazer.
OS MANUSCRITOS PNAKÓTICOS ainda não estavam completos, e provavelmente eu ia levar muito tempo na compilação. Mas o Liber Ivonis estava ali, uma versão em italiano dos Cânones do Kleshayana ... juntei tudo em cima da cama e peguei o Percepções Anômalas do Tempo, do psicólogo Wingate Peaslee. Esse livrinho foi bem popular no século XX e hoje em dia, embora tenha virado uma obscuridade, é citado até por autores de auto-ajuda ... ainda bem que eu consigo chegar às fontes com mais rapidez do que as outras pessoas.
Se tem alguma coisa que me interessa mais do que sexo, é conhecimento. Então, nada de brincadeiras com o irmão adotivo nessa hora do dia. O capítulo do dr. Peaslee sobre a Hora do Sonho, dos aborígenes australianos, ia me ajudar muito naquele momento.
Eu sempre gostei de brincar com o desconhecido, também. Era o que me dava mais tesão, além de brincar e jogar com coisas extremamente familiares e íntimas ... tipo meu irmão adotivo. O que seria mais desconhecido que o que se esconde no fundo dos sonhos? Se o que eu juntara a partir dos livros estava certo, eu podia assegurar para mim algo muito mais importante que ser a menininha mimada, herdeira de uma fortuna ancestral.
Tudo se reduzia, então, ao ego. A existência era maior do que a identidade. A identidade não queria morrer e por isso éramos egoístas. Como impor a identidade à existência? Eu adorava ser quem eu era, e não queria deixar de ser eu mesma, depois de morrer ou sei lá o quê. Não importa o que viesse depois da morte. Ou se não existia nada depois da morte. Eu não queria ser mais do que eu era: queria assegurar que seria a mesma. Era uma ideia sensual a que eu acalentava, que chegava a me fazer tremer. Impor a vontade sobre o universo ...
Segundo as anotações que eu tinha feito ... estava começando a juntar tudo em capítulos ordenados, o primeiro recebera o nome de Simetria Macabra ... tudo se resumia, também, à linguagem: os sonhos eram uma linguagem, a linguagem da eternidade, do inconsciente, tentando se comunicar com o ego, a identidade, proporcionalmente menor, aquela ponta do iceberg da mente. Do topo do meu próprio iceberg eu conduziria as marés geladas a meu favor, então: era essa a vantagem de se estar acima da superfície, enxergar o horizonte.
Então, a linguagem. Os sigilos. Os símbolos anciões da yog-sothotery. Eram vários símbolos que eu havia coletado, aqueles símbolos anciões, como o que parecia uma folha de palmeira, aquele que parecia um pentagrama distorcido, o símbolo amarelo ... eu já havia conseguido forçar um pouco da magia, a yog-sothothery, daqueles sígilos; mas não tinha conseguido resultados muito impressionantes, pelo menos não para o meu grau de exigência.
O Cânones do Kleshayana falava da importância de uma arma mágica: um instrumento com que manipular a tessitura da existência ... e, como só podia ser, com a arma escrever os sigilos anciões que abriam os Portões da Eternidade. Outros ... magos ... usaram armas como varinhas, bastões, chaves prateadas, enfim, coisas que dão uma sensação de poder ao serem empunhadas. Qual seria a minha? O Kleshayana dizia que deveria ser algo pessoal.
Fiquei nesse impasse até que aconteceu um acidente ...
NUNCA VI UMA RACHADURA TÃO PRECISA. O espelho era da mais pura qualidade, rendia centenas de dólares, e o haviam deixado despreocupadamente num dos cantos da casa. Fui cutucar, atraída por aquele brilho soturno que ele tinha ... o espelho era quase melancólico. Sempre fui tão afoita. Quebrei o espelho.
Sete anos de azar, hein? Foda-se.
Preço muito baixo a se pagar pela arma mágica que eu precisava: o espelho rachou, crac! e o fragmento que dele se destacou tinha a forma muito similar à de uma adaga ... era uma adaga feita de espelho! Me ajoelhei e segurei a adaga de espelho em minhas mãos ... a parte que deveria ser o cabo não era afiada, e não me machucou. Já a ponta ... afiadíssima.
Fiquei ali, encantada com minha própria imagem, meu reflexo, minha identidade, surgindo nos lados da adaga, que eu virava com a mão ... começava a me perder em minha própria epifania, e o encanto devagar se transformou em horror ... coisas, coisas macabras, coisas medonhas, viviam além dos sonhos, entre os mundos, e queriam tomar minha adaga! Eram criaturas nojentas, feitas de uma substância empelotada, branca ... e eles queriam minha adaga. Não, eu não podia deixar que eles levassem minha imagem, meu reflexo, minha identidade, minha arma mágica.
Eu só podia lutar. Sempre fui tão afoita. Tinha que defender minha propriedade, minha imagem, meu reflexo, minha identidade. Girei a arma na mão e fiz um movimento de corte para a frente, rasgando uma daquelas coisas -- parecia o líder, era maior e mais ameaçador, tinha seis dedos em cada mão e nada no rosto a não ser dois olhos transidos, um em cima do outro, que se colocava onde devia estar a boca -- e a coisa caiu no chão, ferida, mas não morta. Os outros sumiram.
Tudo aquilo tinha sido como uma vertigem. Eu me reequilibrei e percebi ... que quem estava ferido no chão era meu pai. Mas que merda!
O velho foi se levantando e disse, com raiva, a barriga rasgada por um corte fundo, segurando a hemorragia com uma das mãos: "Eu estou bem! Mas você, você não está nada bem. Eu disse que não devia ficar lendo aqueles livros! Me dê esse caco de espelho, AGORA!"
Dar a ele minha adaga ritual, pela qual devia pagar tão caro, sete anos de azar? Nem fudendo.
"NÃO! Não vou dar, ela é minha!"
Ele avançou para mim, esquecendo o próprio ferimento, gritando, "Me dá isso aqui, menina ..."
E então aconteceu. Eu não queria perder minha adaga, e não queria perder meu pai. Sempre fui tão afoita. Decisões tomadas num milésimo de segundo. E imagina quem perdeu?
O cadáver do homem que havia me criado estava no chão, e a adaga, firme e segura comigo. Não percebi que meu irmão havia entrado no quarto e sua voz soou perto de mim, "Ele não tinha mesmo razão. Você ... não é nada inocente."
EU AINDA ERA MENOR DE IDADE e meu irmão precisava acobertar aquilo. Uma das criadas levou a culpa, havia tomado uma droga alucinógena por conta própria e acabara agredindo meu pai. A coisa da droga era verdade, ela só não era tão alucinógena, era originalmente de meu irmão, que fez questão de arranjar as coisas como se tudo parecesse verdade. A adaga funcionou muito bem, mas não era suficiente. Nunca nada é suficiente. E eu agora já tenho outras perspectivas, outros horizontes abertos, estou na universidade, no exterior, para onde meu irmão me mandou, ele ficou de custódio da minha parte da fortuna durante aqueles dois anos.
E durante aqueles dois anos ele foi um bom amante, mas nunca com a mesma intensidade de antes da morte de papai. Acabei percebendo que meu irmão não servia para os planos que eu tinha. Uma pena, quem sabe eu teria de arranjar outra pessoa ...
Winds and storms
Embrace us now
Lay waste the light of day
Open gates to darker lands
We spread our wings
And fly away
Emperor, Al Svartr (The Oath)
Qualquer semelhança com pessoas e eventos reais é uma mera distorção dos fatos ou coincidência.
ResponderExcluirIMAGENS E ILUSTRAÇÕES, AUTORES E FONTES
1 e 4
Da mostra Figuren, de Peter Van Stralen
http://www.zupi.com.br/index.php/site_zupi/view/a_danca_e_o_corpo/
2
The Lives of Lee Miller, de Judith Supine
http://www.flickr.com/photos/judithsupine/with/3723205657/
3
Sacrifice, de Paul Mudie
http://www.paulmudie.com/
5
Infelizmente salvei isto, sei lá quando, com uma numeração qualquer ... quem souber o autor, me avise aqui.
Lisérgico, como sempre. A associação de simbolismos é bem interessante. Um pouco mais de metáforas e ficaria ainda melhor.
ResponderExcluirUau! Ana é perversa!
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