“EU NÃO DISSE NADA, PAI! Preferi que ela tirasse suas próprias conclusões.” O nariz de Azif tremia e os olhos dele brilhavam de indignação. Os cabelos muito negros, que tanto haviam se mexido com o vento lá fora, estavam agora lentamente sendo cobertos com a matéria rastejante do uniforme-paradoxo, talvez reagindo às emoções do rapaz.
“Diga a verdade, Azif,” insistiu o Grão-Mestre, enfático e incisivo, seu bigode grisalho emprestando ainda mais dignidade às suas palavras, “diga ou eu mesmo, depois que este problema estiver resolvido, vou tomar as estátuas do seu alojamento.”
Os ídolos da Terra Castanha, pensou Dova. Ele realmente é devoto desses deuses... mas como falou tão mal dos sacerdotes, e como conseguiu me resgatar deles, se é um fiel? E a menina preferiu não pensar mais naquele paradoxo, e sim agir.
“O senhor que diga a verdade!” interrompeu a garota. “Que é que tinha a esconder de mim que era tão importante?”
“Não era à verdade que eu estava me referindo,” reagiu o velho, contrafeito. “Me referia às opiniões dele! Você acabou de fazer um gesto de apaziguamento, típico dos sacerdotes da Terra Castanha. Eu já disse a esse meu filho que estas coisas são superstições e que os sacerdotes só servem para nos pagar caro pelas trufas. Os deuses deles não são reais, Azif!” falou mais alto, voltando-se para o filho, “e o que é ainda mais importante, os uniformes não são demônios do Ermo!”
“Demônios...?” a voz de Dova saiu hesitante.
“Sim! Se eu pudesse, vestiria um uniforme exatamente como o dele e o que está no corpo de Euro, e que deveria ter sido seu! Mas acontece que, para os que não são da espécie do pai de Euro – os neander – a união com o traje só pode ser feita na adolescência! E mesmo assim são poucos os que podem de fato se unir a elas!” O Grão-Mestre parecia furioso. “É uma roupa viva, cultivada pelos neander, um fruto das guerras do passado, tanto quanto as próprias trufas alucinógenas que vendemos aos sacerdotes. Ocorre que os sacerdotes odeiam os neander e preferem enxergar estas roupas tão preciosas e úteis, como demônios que possuem uma raça inteira de humanos apenas um pouco diferentes de nós.”
Azif parecia envergonhado. Não ousava replicar. “De qualquer forma,” continuou o velho, “é bom que existem aqueles entre nós que não usem a roupa. Assim podemos lidar com os compradores das trufas ou andar mais livremente em meio ao povo da Terra Castanha.”
Dova parecia pensativa, o olhar meio perdido. “Menina,” falou o Grão-Mestre, “eu deveria neste momento te explicar o que é exatamente um uniforme-paradoxo, te dizer que a união é irreversível, mas que ele lhe seria um fiel companheiro; e perguntar se você aceitaria um desses companheiros. Havia um já à sua espera. Mas parece que o nosso amigo Euro, aqui, me impediu de fazer essa oferta; daqui que o tearcuba gere mais um traje, já teremos sido mortos pelos camaleões-do-meio-dia, ou então os teremos derrotado.”
Dova olhou a própria mão. Parecia ainda mais pensativa e respondeu nesses termos, o olhar firme, a voz, serena:
“Minha família foi morta pelos sacerdotes. Não tenho mais ninguém e, sinceramente, simpatizei mais com Azif – e não, ele não me contou nada sobre os uniformes, senhor – e mesmo com a moça que encontramos lá fora, Charya, do que com a maioria dos membros da minha família...”
Lá fora, um zumbido começou a ser ouvido. A voz da menina ficou um tanto embargada, mas ela continuou, “...Fora certas pessoas como meu avô. Então, também não tenho nada a perder!”
O zumbido começou a aumentar e as pessoas começaram a tomar de armas, como redes, zarabatanas e algumas armas de choque. Outras empunhavam espadas ou bastões. Euro chegou muito perto de Dova e a observou, admirado, como se estivesse enxergando algo que o Grão-Mestre e Azif não podiam ver. Para espanto dos dois – e de toda a assistência de nômades – Dova ergueu a mão esquerda, queimada pelo uniforme dourado de Euro, e uma brancura começou a se espalhar da mão para o braço, do braço para o resto do corpo. Dova então gritou: “EU ACEITO!”
Um sorriso se abriu no rosto do Grão-Mestre e algumas pessoas murmuravam fascinadas, mas ele não deixou que perdessem o ímpeto de guerra: “Se é assim, então vamos para fora! Não vamos deixar que eles entrem na nossa caverna! Você, você e você,” apontou para três homens com roupa de deserto, “fiquem aqui dentro para resguardarem a gruta. E sejamos fortes!”
Azif fitou Dova com uma mescla de temor e alívio. Estava sendo um longo dia, como ele havia previsto.
O Grão-Mestre Bendante ajeitou os abafadores de ouvido e começou a gesticular para os contrabandistas se agruparem em tropas de acordo com as armas que empunhavam. Azif virou-se para Dova e disse, “São para nos proteger do zumbido das lampreias-voadoras. Senão elas vão acabar prejudicando nosso desempenho... que azar, esses bichos atacarem logo na hora da agitação das lampreias.”
“Nem você, nem eu nem Euro vamos precisar disso”, respondeu Dova. “É como se este uniforme aqui fosse especial, ele está sussurrando coisas na minha mente, e muito mais rápido do que Charya poderia fazer. Ele me diz para fazer isto...”
Dova suspirou e tocou os ouvidos de Euro e Azif. Eles sentiram um calor intenso, a intensificação do zumbido e... em poucos segundos, aquele começo de moleza provocada pela proximidade das lampreias cessou totalmente.
“Vamos pra fora,” Euro gritou, erguendo o punho. “Estou pronto!”
Azif balançou a cabeça, meio preocupado mas maravilhado com aquilo, e sacou da coxa uma espada curva negríssima, “Alguns paradoxos geram coisas assim, Dova. E o seu?”
“Ainda não me disse nada sobre isso. Quem sabe lá fora. Vamos.” Azif notou que, embora a aparência física dela fosse a mesma de antes – salvo pelo uniforme mais branco que o branco, cheio de símbolos estranhos decalcados na superfície, feitos de linhas prateadas – seu jeito parecia o de alguém com bem mais dos treze anos que tinha.
Os grupos de contrabandistas foram se espalhando pelo cânion que desembocava na caverna oculta, sob a liderança do Grão-Mestre. Os três uniformizados – os três Prodígios – foram correndo na frente, as pernas impulsionadas com rapidez pela energia compartilhada pelos paradoxos.
E, ao virar uma curva, perceberam que a situação era bem pior do que pensavam: não só Charya lutava desesperadamente, junto com quatro nômades, contra aquelas distorções semissólidas de calor e umidade, que o Grão-Mestre chamava de camaleões do meio dia... como parecia que as lampreias voadoras haviam se unido a eles.
Parecia impossível que aqueles coisas irracionais, parecendo libélulas monstruosas, estivessem atacando em enxames organizados (podia-se perceber a lentidão nos movimentos dos contrabandistas, embora menos em Charya), mas logo o trio percebeu a fonte daquela ameaça, que visivelmente comandava as lampreias e os camaleões: uma menina esbelta, de cerca de quinze anos, cabelos azulados e curtos fustigados pelo vento do cânion, vestindo um uniforme-paradoxo de cor azul-cobalto, cheio de ranhuras azul-turquesa.
Os olhos da garota azul estavam tomados de uma cor estranha, como a aurora boreal, mudando de jeito surreal com a ferocidade dos golpes de espada curta que a menina desferia em Charya.
Vermelho contra azul, e os olhos multicoloridos, mergulhados num transe frenético, da mesma cor da carne da coisa gigante que havia sido morta para alimentar o vício dos sacerdotes da Terra Castanha, Dova logo percebeu.
Os alienígenas ofendidos pela morte do primeiro mensageiro haviam escolhido um segundo... ou na verdade, uma segunda mensageira, que vagava pelo Ermo. Dova, Azif, Charya e Euro podiam não saber disto, mas eram considerados culpados; e iriam pagar.
Junto com o zumbido, o clamor da batalha decisiva ficava mais forte...