POR H.P. LOVECRAFT
TRADUÇÃO: ARTHUR FERREIRA JR.'.
Titulo Original: Beyond the Wall of Sleep
Tenho muitas vezes imaginado se a maioria da humanidade alguma vez chega a refletir sobre a muitas vezes titânica relevância dos sonhos, e sobre o obscuro mundo ao qual eles pertencem. Embora a maior parte de nossas visões noturnas talvez não seja mais que reflexos tênues e fantásticos de nossas experiências despertas – Freud fazendo a ênfase com seu simbolismo pueril – existe ainda uma certa lembrança cujo caráter não-mundano e etéreo não permite uma interpretação normal, e cujo efeito vagamente excitante e inquietante sugere possíveis vislumbres temporários de uma esfera da existência mental não menos importante que a vida física, embora separada desta última vida por uma barreira quase impassável. A partir de minha experiência, não posso duvidar que o homem, quando perdido para a consciência terrestre, está de fato jornadeando até uma outra vida incorpórea, de uma natureza bastante diferente daquela que conhecemos, e da qual somente as mais frágeis e indistintas memórias sobrevivem após o despertar. A partir destas memórias borradas e fragmentárias podemos inferir muito, porém nada provar. Podemos adivinhar que nos sonhos, a vida, a matéria e a vitalidade, como a terra reconhece tais coisas, não são necessariamente constantes; e que o tempo e espaço não existem como nossos egos despertos os compreendem. Às vezes creio que esta vida menos material é nossa vida mais verdadeira, e que nossa presença vã no globo terráqueo é em si um fenômeno secundário, ou apenas virtual.
Foi de uma epifania juvenil cheia de especulações deste tipo que emergi uma tarde no inverno de 1900-1901, quando foi trazido para a instituição psiquiátrica estatal na qual eu servia como interno um homem cujo caso até então tem me assombrado sem cessar. Seu nome, conforme dizem os registros, era Joe Slater, ou Slaader, e sua aparência era a de um habitante típico da região das Montanhas Catskill; um dos herdeiros repelentes e estranhos de um extrato camponês colonial e primitivo, cujo isolamento os fez cair num tipo de degeneração barbárica, ao invés de avançar junto a seus parentes mais afortunadamente posicionados dos distritos enxameados. Entre este povo estranho, que correspondia exatamente ao elemento decadente do “lixo branco” no Sul, a lei e a moral eram não-existentes; e seu estado mental geral está provavelmente abaixo de qualquer outra seção do povo nativo-americano.
Joe Slater, que veio à instituição sob a custódia vigilante de quatro policiais estaduais, e que foi descrito como uma figura bastante perigosa, certamente não apresentava evidência alguma de dita disposição quando o observei pela primeira vez. Embora muito acima da estatura média, e de composição um tanto grosseira, ele passava uma impressão absurda de estupidez inofensiva, através do azul sonolento e pálido de seus olhos pequenos e molhados, o desleixo de sua barba amarelada, negligenciada e nunca aparada, e derrubar apático de seu lábio inferior. Sua idade era desconhecida, já que entre o seus, não haviam registros familiares, nem laços familiares permanentes; mas baseado na calvície da frente de sua cabeça, e da condição decaída de seus dentes, o cirurgião cerebral escreveu que tratava-se de um homem de mais ou menos quarenta anos.
A partir dos documentos médicos e legais, aprendemos tudo que podia ser coletado quanto a seu caso: este homem, um vagabundo, caçador de carnes e peles, sempre foi um estranho aos olhos de seus primitivos associados. Ele tinha hábito de dormir à noite por muito além do tempo normal, e ao acordar falava de coisas desconhecidas, de um modo tão bizarro que inspirava medo nos corações do populacho sem imaginação. Não que sua forma de linguagem fosse de fato incomum, pois ele nunca falava em outra língua que não o patuá degenerado de seu ambiente; mas o tom e teor de seus pronunciamentos eram de tal selvageria misteriosa, que ninguém conseguia ouvir sem apreensão. Ele próprio geralmente ficava tão aterrorizado e confuso quanto seus ouvintes, e depois de uma hora após o despertar, esquecia tudo que havia dito, ou pelo menos tudo que o havia feito dizer o que havia dito; voltando a uma normalidade bovina e quase amistosa como a de outros moradores das colinas.
Conforme Slater envelhecia, parecia que suas aberrações matutinas gradualmente aumentavam em frequência e agressividade; até que mais ou menos um mês antes de sua chegada na instituição, ocorreu a chocante tragédia que causou sua prisão pelas autoridades. Uma ocasião, perto do meio-dia, depois de um profundo sono começado numa farra de uísque mais ou menos às cinco horas da tarde anterior, o homem despertou muito subitamente, com ululações tão terríveis e alienígenas, que vários vizinhos vieram à sua cabina – uma pocilga nojenta onde ele vivia com uma família tão indescritível quanto ele mesmo. Investindo pela neve, ele abria os braços e começava uma série de saltos diretamente para cima, no ar; enquanto gritava sua determinação em alcançar alguma “grande, enorme cabine com a claridade no telhado e paredes e chão e a estranha e alta música lá longe”. Assim que dois homens de tamanho moderado buscaram contê-lo, ele lutou com força e fúria maníaca, gritando de seu desejo e necessidade de encontrar e matar uma certa “coisa que brilha e tremula e ri”. Após ter temporariamente derrubado um de seus captores com um golpe repentino, jogou-se sobre o outro num êxtase demoníaco de sede de sangue, berrando de modo atroz, que ele “pularia alto no ar e queimaria sua trilha através de qualquer um que o tentasse parar”.
Família e vizinhos agora fugiam em pânico, e quando o mais corajoso deles retornou, Slater havia sumido, deixando para trás uma mingau irreconhecível que antes havia sido um homem vivo, um hora antes. Nenhum dos montanhistas ousou perseguí-lo, e é provável que eles receberiam bem sua morte por hipotermia; mas quando várias manhãs depois, ouviram seus gritos vindos de uma distante ravina, perceberam que ele de alguma forma conseguira sobreviver, e que sua remoção, de um modo ou de outro, seria necessária. Então foi formada um grupo de busca armado, cujo propósito (qualquer que tenha sido a princípio) tornou-se o mesmo de uma equipe do xerife, após um dos pouco populares policiais militares estaduais ter, por acidente, observado e então questionado, e finalmente se juntado aos perseguidores.
No terceiro dia, Slater foi encontrado inconsciente no oco de uma árvore, e levado à cadeia mais próxima, onde os alienistas de Albany o examinaram tão logo da volta de seus sentidos. Para eles, Slater contou uma história simples. Ele havia, disse, ido dormir numa tarde, por volta do pôr do sol, após beber muito. Ele despertou, achando-se de pé, com as mãos sangrentas, na neve atrás de sua cabina, tendo o cadáver mutilado de seu vizinho Peter aos seus pés. Horrorizado, adentrou os bosques, num vago esforço de escapar da cena daquilo que deveria ter sido seu crime. Além destas coisas, ele não parecia saber mais nada, nem o questionamento perito de seus interrogadores trouxe mais um único fato sequer.
Naquela noite, Slater dormiu quieto, e na manhã seguinte, acordou sem anormalidades, salvo uma certa alteração da expressão. O doutor Barnard, que havia observado o paciente, pensou que notara nos olhos azul-pálido um certo brilho de qualidade peculiar, e nos lábios flácidos, um endurecimento quase imperceptível, como se numa determinação inteligente. Porém quando questionado, Slater caiu na vaguidade habitual de montanhista, e somente reiterou o que disse no dia anterior.
Na terceira manhã, ocorreu o primeiro dos ataques mentais do homem. Após alguma mostra de inquietude durante o sono, ele explodiu num frenesi tão poderoso que os esforços combinados de quatro homens foram necessários para prendê-lo a uma camisa-de-força. Os alienistas escutaram com atenção fervorosa suas palavras, já que sua curiosidade havia sido levada a um alto grau, pelas histórias sugestivas, embora bastante conflitantes, de sua família e vizinhos. Slater algaraviou por mais de quinze minutos, balbuciando em seu dialeto florestal, falando de edifícios verdes de luz, oceanos de espaço, música estranha, e montanhas e vales sombrios. Porém na maior parte do tempo, ele se detinha em alguma entidade misteriosa e flamejante que tremulava e ria e zombava dele. Esta personalidade vasta e vaga parecia ter feito a ele um terrível mal, e matá-la numa vingança triunfante era seu desejo principal. Para alcançá-la, dizia Slater, ele voaria pelos abismos do vazio, queimando cada obstáculo em seu caminho. Assim correu seu discurso, até que com grande súbito, parou. O fogo da loucura morreu em seus olhos, e em fascínio embrutecido, ele perguntou a seus questionadores por que estava preso. O dr. Barnard desfez as presilhas de couro e não as restaurou até a noite, quando conseguiu persuadir Slater a vesti-las por vontade própria, para seu próprio bem. O homem agora já admitia que às vezes falava estranho, embora não soubesse o porquê.
Foi de uma epifania juvenil cheia de especulações deste tipo que emergi uma tarde no inverno de 1900-1901, quando foi trazido para a instituição psiquiátrica estatal na qual eu servia como interno um homem cujo caso até então tem me assombrado sem cessar. Seu nome, conforme dizem os registros, era Joe Slater, ou Slaader, e sua aparência era a de um habitante típico da região das Montanhas Catskill; um dos herdeiros repelentes e estranhos de um extrato camponês colonial e primitivo, cujo isolamento os fez cair num tipo de degeneração barbárica, ao invés de avançar junto a seus parentes mais afortunadamente posicionados dos distritos enxameados. Entre este povo estranho, que correspondia exatamente ao elemento decadente do “lixo branco” no Sul, a lei e a moral eram não-existentes; e seu estado mental geral está provavelmente abaixo de qualquer outra seção do povo nativo-americano.
Joe Slater, que veio à instituição sob a custódia vigilante de quatro policiais estaduais, e que foi descrito como uma figura bastante perigosa, certamente não apresentava evidência alguma de dita disposição quando o observei pela primeira vez. Embora muito acima da estatura média, e de composição um tanto grosseira, ele passava uma impressão absurda de estupidez inofensiva, através do azul sonolento e pálido de seus olhos pequenos e molhados, o desleixo de sua barba amarelada, negligenciada e nunca aparada, e derrubar apático de seu lábio inferior. Sua idade era desconhecida, já que entre o seus, não haviam registros familiares, nem laços familiares permanentes; mas baseado na calvície da frente de sua cabeça, e da condição decaída de seus dentes, o cirurgião cerebral escreveu que tratava-se de um homem de mais ou menos quarenta anos.
A partir dos documentos médicos e legais, aprendemos tudo que podia ser coletado quanto a seu caso: este homem, um vagabundo, caçador de carnes e peles, sempre foi um estranho aos olhos de seus primitivos associados. Ele tinha hábito de dormir à noite por muito além do tempo normal, e ao acordar falava de coisas desconhecidas, de um modo tão bizarro que inspirava medo nos corações do populacho sem imaginação. Não que sua forma de linguagem fosse de fato incomum, pois ele nunca falava em outra língua que não o patuá degenerado de seu ambiente; mas o tom e teor de seus pronunciamentos eram de tal selvageria misteriosa, que ninguém conseguia ouvir sem apreensão. Ele próprio geralmente ficava tão aterrorizado e confuso quanto seus ouvintes, e depois de uma hora após o despertar, esquecia tudo que havia dito, ou pelo menos tudo que o havia feito dizer o que havia dito; voltando a uma normalidade bovina e quase amistosa como a de outros moradores das colinas.
Conforme Slater envelhecia, parecia que suas aberrações matutinas gradualmente aumentavam em frequência e agressividade; até que mais ou menos um mês antes de sua chegada na instituição, ocorreu a chocante tragédia que causou sua prisão pelas autoridades. Uma ocasião, perto do meio-dia, depois de um profundo sono começado numa farra de uísque mais ou menos às cinco horas da tarde anterior, o homem despertou muito subitamente, com ululações tão terríveis e alienígenas, que vários vizinhos vieram à sua cabina – uma pocilga nojenta onde ele vivia com uma família tão indescritível quanto ele mesmo. Investindo pela neve, ele abria os braços e começava uma série de saltos diretamente para cima, no ar; enquanto gritava sua determinação em alcançar alguma “grande, enorme cabine com a claridade no telhado e paredes e chão e a estranha e alta música lá longe”. Assim que dois homens de tamanho moderado buscaram contê-lo, ele lutou com força e fúria maníaca, gritando de seu desejo e necessidade de encontrar e matar uma certa “coisa que brilha e tremula e ri”. Após ter temporariamente derrubado um de seus captores com um golpe repentino, jogou-se sobre o outro num êxtase demoníaco de sede de sangue, berrando de modo atroz, que ele “pularia alto no ar e queimaria sua trilha através de qualquer um que o tentasse parar”.
Família e vizinhos agora fugiam em pânico, e quando o mais corajoso deles retornou, Slater havia sumido, deixando para trás uma mingau irreconhecível que antes havia sido um homem vivo, um hora antes. Nenhum dos montanhistas ousou perseguí-lo, e é provável que eles receberiam bem sua morte por hipotermia; mas quando várias manhãs depois, ouviram seus gritos vindos de uma distante ravina, perceberam que ele de alguma forma conseguira sobreviver, e que sua remoção, de um modo ou de outro, seria necessária. Então foi formada um grupo de busca armado, cujo propósito (qualquer que tenha sido a princípio) tornou-se o mesmo de uma equipe do xerife, após um dos pouco populares policiais militares estaduais ter, por acidente, observado e então questionado, e finalmente se juntado aos perseguidores.
No terceiro dia, Slater foi encontrado inconsciente no oco de uma árvore, e levado à cadeia mais próxima, onde os alienistas de Albany o examinaram tão logo da volta de seus sentidos. Para eles, Slater contou uma história simples. Ele havia, disse, ido dormir numa tarde, por volta do pôr do sol, após beber muito. Ele despertou, achando-se de pé, com as mãos sangrentas, na neve atrás de sua cabina, tendo o cadáver mutilado de seu vizinho Peter aos seus pés. Horrorizado, adentrou os bosques, num vago esforço de escapar da cena daquilo que deveria ter sido seu crime. Além destas coisas, ele não parecia saber mais nada, nem o questionamento perito de seus interrogadores trouxe mais um único fato sequer.
Naquela noite, Slater dormiu quieto, e na manhã seguinte, acordou sem anormalidades, salvo uma certa alteração da expressão. O doutor Barnard, que havia observado o paciente, pensou que notara nos olhos azul-pálido um certo brilho de qualidade peculiar, e nos lábios flácidos, um endurecimento quase imperceptível, como se numa determinação inteligente. Porém quando questionado, Slater caiu na vaguidade habitual de montanhista, e somente reiterou o que disse no dia anterior.
Na terceira manhã, ocorreu o primeiro dos ataques mentais do homem. Após alguma mostra de inquietude durante o sono, ele explodiu num frenesi tão poderoso que os esforços combinados de quatro homens foram necessários para prendê-lo a uma camisa-de-força. Os alienistas escutaram com atenção fervorosa suas palavras, já que sua curiosidade havia sido levada a um alto grau, pelas histórias sugestivas, embora bastante conflitantes, de sua família e vizinhos. Slater algaraviou por mais de quinze minutos, balbuciando em seu dialeto florestal, falando de edifícios verdes de luz, oceanos de espaço, música estranha, e montanhas e vales sombrios. Porém na maior parte do tempo, ele se detinha em alguma entidade misteriosa e flamejante que tremulava e ria e zombava dele. Esta personalidade vasta e vaga parecia ter feito a ele um terrível mal, e matá-la numa vingança triunfante era seu desejo principal. Para alcançá-la, dizia Slater, ele voaria pelos abismos do vazio, queimando cada obstáculo em seu caminho. Assim correu seu discurso, até que com grande súbito, parou. O fogo da loucura morreu em seus olhos, e em fascínio embrutecido, ele perguntou a seus questionadores por que estava preso. O dr. Barnard desfez as presilhas de couro e não as restaurou até a noite, quando conseguiu persuadir Slater a vesti-las por vontade própria, para seu próprio bem. O homem agora já admitia que às vezes falava estranho, embora não soubesse o porquê.
Dentro de uma semana, mais dois ataques se sucederam, mas deles, os médicos pouco aprenderam. Quanto à fonte das visões de Slater, muito foi especulado, já que ele não podia nem ler nem escrever, e aparentemente jamais ouvira uma única lenda ou conto de fadas, fazendo com que sua imagética extravagante fosse muito pouco explicável. O fato de que não vinha de qualquer mito ou romance conhecido, tornava-se demasiado claro pelo fato do infeliz lunático expressar-se apenas de sua própria maneira simples. Ele algaraviava sobre coisas que não compreendia e nem podia interpretar; coisas que ele clamava ter experimentado, mas que ele não poderia ter aprendido através de nenhuma narração normal ou conexa. Os alienistas logo concordaram que sonhos anormais eram a fundação do problema: sonhos cuja vividez poderia por um tempo dominar de todo a mente desperta deste homem basicamente inferior. Com a devida formalidade, Slater foi julgado por assassinato, inocentado pela alegação de insanidade, e enviado à instituição onde eu mantinha um posto bastante humilde.
Já disse que sou um especulador constante quanto à vida onírica, e a partir disto, vocês podem julgar a avidez com que eu me aplicava ao estudo do novo paciente, tão logo avaliara de todo os fatos de seu caso. Ele parecia sentir uma certa amizade em mim, nascida sem dúvida do interesse que eu não conseguia ocultar, e da maneira gentil com que eu o questionava. Não que ele jamais me reconhecesse durante seus ataques, quando eu ficava sem fôlego com seus retratos verbais cósmicos tão caóticos; mas ele me reconhecia em suas horas quietas, quando ele sentava ao lado de sua janela com grades, fiando cestos de palha e salgueiro, e talvez com nostalgia da liberdade montanhista que jamais poderia de novo desfrutar. Sua família jamais buscou vê-lo; provavelmente ela descobriu outro chefe de família temporário, à maneira do povo decadente das montanhas.
Com o passar do tempo, comecei a sentir um enorme fascínio pelas concepções loucas e fantásticas de Joe Slater. O próprio homem era piedosamente inferior, tanto em mentalidade quanto em linguagem; mas suas visões brilhantes e titânicas, embora descritas num jargão bárbaro e desconexo, certamente falavam de coisas que somente um cérebro superior, ou mesmo excepcional, poderia descrever. Como poderia, muitas vezes me perguntava, a imaginação imperturbável de um degenerado das Catskill conjurar tais vislumbres cuja própria posse demonstrava uma centelha de gênio à espreita? Como algum estúpido da floresta poderia ter conseguido alguma ideia assim dos reinos brilhantes de radiância e espaço supernos dos quais algaraviava Slater em seu delírio furioso? Cada vez mais, inclinava-me à crença de que sob a lamentável personalidade que se encolhia perante mim, estava o núcleo desordenado de alguém além da minha compreensão; algo infinitamente além da compreensão dos meus colegas médicos e científicos mais experientes, embora menos imaginativos.
E ainda assim, não conseguira extrair nada definitivo do homem. A soma de toda a minha investigação foi de que, num tipo de vida onírica semi-corpórea, Slater vagava ou flutuava por vales, prados, jardins, cidades e palácios de luz resplandecentes e prodigiosos, numa região sem limites, desconhecida do homem; que ele não era nenhum camponês ou degenerado, mas uma criatura de importância e vividez, movendo-se orgulhosa e dominantemente, detida apenas por um certo inimigo mortal, que parecia um ser de estrutura visível, embora etérea, e que não parecia ter forma humana, já que Slater jamais referia-se a ele como um homem, mas como uma coisa. Esta coisa fizera a Slater algum mal sem nome, que o maníaco (se é que era um maníaco) buscava vingar.
Pela maneira com que Slater aludia a estes encontros, julguei que ele e a coisa luminosa encontravam-se em termos iguais; que em sua existência onírica, o homem era ele mesmo uma coisa luminosa da mesma raça de seu inimigo. Esta impressão foi sustentada por suas frequentes referências a voar pelo espaço e queimar tudo que impedia seu progresso. Ainda assim, estas concepções eram formuladas em palavras rústicas, totalmente inadequadas à sua transmissão, uma circunstância que me levou à conclusão de que se de fato existia um mundo onírico, a linguagem oral não era o seu meio de transmissão de pensamento. Podia ser que a alma onírica que habitava este corpo inferior estava desesperadamente lutando para falar coisas que a língua simples e restrita da estupidez não conseguia pronunciar? Podia ser o caso que eu estaria para encontrar emanações intelectuais que explicariam o mistério, se apenas pudesse conseguir como descobri-las e lê-las? Não contei aos médicos mais velhos sobre estas coisas, já que a meia-idade é cínica, cética e sem inclinações a aceitar novas ideias. Além disso, o chefe da instituição havia há pouco me advertido, à sua maneira paternal, que eu estava trabalhando demais; que minha mente precisava de um descanso.
Há muito tempo, creio que o pensamento humano consiste basicamente de movimento atômico ou molecular, convertível em ondas ou energia radiante, como o calor, a luz e a eletricidade. Esta crença desde já me havia levado a contemplar a possibilidade da telepatia ou da comunicação mental, através de um aparato adequado, e em meus dias de faculdade preparei um conjunto de instrumentos de transmissão e recepção de certo modo similares aos aparelhos complicados empregados na telegrafia sem fio, naquele período rudimentar anterior ao rádio. Testei aqueles aparelhos com um colega estudante, mas sem alcançar resultado algum, logo os empacotei junto com outros obstáculos e finalidades científicas para possível uso futuro.
Agora, em meu intenso desejo de sondar a vida onírica de Joe Slater, busquei mais uma vez esses instrumentos, e passei vários dias reparando-os para a ação. Quando estiveram mais uma vez completos, não perdi a oportunidade de testes. A cada surto de violência de Slater, ajustaria o transmissor à sua testa e o receptor à minha, constantemente fazendo arranjos para vários comprimentos de onda hipotéticos de energia intelectual. Tinha uma noção mínima de como as impressões de pensamento, caso transmitidas com sucesso, despertariam uma reação inteligente em meu cérebro, mas tinha certeza de que poderia as detectar e interpretar. Portanto, continuei meus experimentos, embora sem informar a ninguém sobre sua natureza.
Foi no dia 21 de fevereiro de 1901 que a coisa aconteceu. Quando olho para trás, com o passar dos anos, percebo o quão irreal a coisa parece, e às vezes imagino se o velho doutor Fenton não estava certo quando creditou tudo à minha imaginação empolgada. Lembro que ele ouviu com grande gentileza e paciência ao que eu lhe dizia, mas depois me receitou uma medicação para os nervos e fez os preparativos para férias de um semestre, para as quais partir na semana seguinte.
Naquela noite fatídica, eu estava altamente agitado e perturbado, porque apesar do excelente cuidado que recebia, Joe Slater sem dúvida estava morrendo. Talvez porque tinha saudade de sua liberdade de montanhista, ou talvez o tumulto em seu cérebro houvesse chegado a um ponto prejudicial em seu físico um tanto inerte; mas em todo caso, a chama da vitalidade começava a diminuir naquela corpo decadente. Ele sentia-se sonolento perto do fim, e conforme a escuridão caía, ele entrava num sono conturbado.
Eu não afixei a camisa-de-força, como era costume quando ele dormia, já que via que o paciente estava muito frágil para ser perigoso, mesmo que acordasse em desordem mental mais uma vez, antes de falecer. Porém pus em sua cabeça e na minha as duas extremidades de meu “rádio” cósmico, esperando, contra todas as probabilidades, que a primeira e última mensagem do mundo onírico viesse, no breve tempo que restava. Conosco na cela estava uma enfermeira, companheira medíocre que não compreendia o propósito do aparato, ou sequer pensava em perguntar do que se tratava. Conforme as horas escoavam, eu via sua cabeça escorregar pateticamente no sono, mas não o perturbei. Eu mesmo, embalado pela respiração rítmica do homem saudável embora moribundo, devo ter cabeceado um pouco depois.
Foi o som da bizarra melodia lírica que me despertou. Coros, vibrações e êxtases harmônicos ecoavam passionais, a todo momento, enquanto em minha visão fascinada explodia o estupendo espetáculo da beleza definitiva. Muralhas, colunas, e arquitraves de fogo vivo ardiam refulgentes ao redor do ponto onde eu parecia flutuar no ar, estendendo-se para cima até um domo abobadado infinitamente alto, de esplendor indescritível. Misturando-se a esta demonstração de magnificência palaciana, ou na verdade às vezes suplantando-o na rotação caleidoscópica, mostravam-se vislumbres de planícies amplas e vales graciosos, montanhas altas e grutas convidativos, cobertas de cada atributo amável do cenário que meus olhos deslumbrados poderiam conceber, embora formados totalmente de alguma entidade plástica, etérea e brilhante, que compartilhava da consistência tanto do espírito quanto da matéria. Conforme eu me transfixava, percebia que meu próprio cérebro tinha a chave para estas metamorfoses encantadoras; pois que cada visão que aparecia perante mim era aquela que minha mente mutável mais queria contemplar. Em meio a este reino elísio, eu não vagava como estranho, pois cada visão e som eram a mim familiares; da mesma forma que havia sido por incontáveis éons de eternidade antes, haveria de ser pelas eternidades por vir.
Então a aura resplandecente de meu irmão de luz se aproximou e começou o colóquio comigo, de alma para alma, num intercâmbio silencioso e perfeito de pensamentos. Era a hora do triunfo se aproximando, pois meu ser companheiro não estava escapando por fim de uma prisão periódica; estava escapando para sempre, e preparando-se para seguir o opressor amaldiçoado até os mais longínquos campos de éter, onde sobre ele seria imposta uma vingança cósmica flamejante, capaz de estremecer as esferas? Flutuamos assim por pouco tempo, quando percebi uma leve distorção e desvanecimento dos objetos ao nosso redor, como se alguma força me estivesse chamando da terra – onde eu menos desejava ir. A forma próximo de mim pareceu também sentir uma mudança, e ela mesmo preparou-se para encerrar a cena, sumindo de meu campo de visão numa rapidez um tanto maior que a dos outros objetos. Conforme mais uns poucos pensamentos foram trocados, soube que o ser luminoso e eu estávamos sendo chamados à prisão, embora para meu irmão de luz fosse a última vez. A lamentável casca planetária seria em breve desgastada de vez, e em menos de uma hora meu companheiro estaria livre para perseguir seu opressor pela Via Láctea e além das mais distantes estrelas, até os últimos confins do infinito.
Um choque bem-definido separa minha impressão final da cena de luz fugaz de meu súbito e um tanto envergonhado despertar, e me ajeitei na cadeira quando vi que a figura moribunda no sofá movia-se com hesitação. Joe Slater estava de fato despertando, embora provavelmente pela última vez. Conforme o observava mais de perto, enxerguei em seu rosto macilento o brilho de pontos de cor que jamais havia estado presentes anteriormente. Os lábios, também, pareciam incomuns, comprimidos com força, como se por força de um caráter mais forte do que o normal de Slater. Toda a face finalmente começava a ficar tensa, e a cabeça virava-se inquieta, com os olhos fechados.
Não acordei a enfermeira adormecida, mas reajustei a faixa um tanto desarranjada de meu “rádio” telepático, tentando capturar qualquer mensagem de adeus que o sonhador estava querendo transmitir. E de súbito a cabeça voltou-se direto para mim e os olhos se abriram, fazendo-me fitar em fascínio vazio ao que presenciava. O homem que havia sido Joe Slater, o decadente das Catskill, estava me observava com um par de olhos luminosos e expandidos, cujo azul parecia ter se aprofundado sutilmente. Nem a mania, nem a degeneração eram visíveis neste olhar, e senti, além de toda dúvida, que estava contemplando um rosto sob o qual estava uma mente ativa da mais alta ordem.
Nesta junção, meu cérebro ficou ciente de uma influência externa operando sobre ele. Fechei meus olhos para concentrar meus pensamentos com mais profundidade, e fui recompensado com o conhecimento positivo de que minha mensagem mental, há muito buscada, finalmente havia chegado. Cada ideia transmitida era formada com rapidez na mente, e embora nenhuma linguagem atual fosse empregada, minha associação habitual de concepção e hábito era tão grande que parecia receber a mensagem em inglês normal.
“Joe Slater está morto,” veio a voz, capaz de petrificar a alma, de alguém além das muralhas do sono. Meus olhos abertos buscaram o tom da dor, em curioso horror, porém os olhos azuis ainda estavam observando com calma, o semblante ainda estava animado por inteligência. “É melhor que ele esteja morto, pois não era adequado para suportar o intelecto ativo da entidade cósmica. Seu corpo grosseiro não podia aguentar os ajustes necessários entre a vida etérea e a vida planetária. Ele era demasiado animal, e pouco homem; ainda assim, através da deficiência dele, você veio a me descobrir, pois as almas cósmicas e planetárias na verdade jamais deveriam se encontrar. Ele foi meu tormento e prisão diurna por quarenta e dois de seus anos terrestres.
“Eu sou uma entidade como aquela que você mesmo se torna na liberdade do sono sem sonhos. Sou seu irmão de luz, e já flutuei contigo em vales refulgentes. Não me é permitido falar a seu eu desperto da terra sobre seu eu real, mas somos todos errantes dos vastos espaços e viajantes em muitas eras. No ano seguinte, posso estar habitando o Egito que você chama antigo, ou no império cruel de Tsan Chan, que deverá vir daqui a três mil anos. Você e eu já vagamos pelos muindos que rolam ao redor da Arcturus vermelha, e habitamos os corpos de insetos-filósofos que rastejam orgulhosos sobre a quarta lua de Júpiter. Quão pouco este eu terráqueo conhece a vida e sua extensão! Quão pouco, de fato, embora seja para sua própria tranquilidade!
“Quanto ao opressor, não posso dizer nada. Vocês na terra, com certeza, já sentiram sua presença distante – vocês que, sem saber, deram merecidamente ao facho pulsante o nome de Algol, a Estrela-Demônio. É para encontrar e conquistar o opressor que tenho lutado em vão por éons, aprisionado pelos fardos corpóreos. Hoje, irei como nêmesis, impondo a justa, ardente e cataclísmica vingança. Observe-me no céu próximo à Estrela-Demônio.
“Não posso mais falar, pois o corpo de Joe Slater fica cada vez mais frio e rígido, e o cérebro rude cessa de vibrar como eu desejaria. Você foi meu único amigo neste planeta – a única alma que pôde sentir e buscar por mim dentro da forma repelente que jaz neste sofá. Nos encontraremos novamente – talvez nas brumas brilhantes da Espada de Orion, talvez num platô macabro da Ásia pré-histórica, talvez em sonhos desta noite que você não conseguirá lembrar, talvez em outra forma daqui a um éon, quando o sistema solar já haverá sido varrido para longe.”
Neste ponto as ondas de pensamento cessaram abruptamente, os olhos pálidos do sonhador – ou devo dizer do cadáver? – começaram a ficar vítreos, aquosos. Em meio a um quase estupor, fui até o sofá e avaliei o pulso, mas o achei frio, rígido, sem ritmo. O rosto macilento ficava mais pálido, e os lábios grossos caíam abertos, mostrando as presas repulsivamente podres do degenerado Joe Slater. Senti um calafrio, puxei um cobertor sobre a face horrenda, e acordei a enfermeira. Então deixei a cela e fui em silêncio até minha sala. Senti um ímpeto instantâneo e inexplicável de dormir, num sono cujos sonhos não conseguiria lembrar.
O clímax? Que história plana da ciência pode exibir tal efeito retórico? Eu apenas registrei certas coisas que me pareceram fatos, permitindo a vocês construí-los como desejar. Como já admiti, meu superior, o velho doutor Fenton, nega a realidade de tudo que relatei. Ele jura que eu fui alquebrado pelo estresse nervoso, e que estava muito necessitado de férias longas, totalmente remuneradas, que ele, generoso, me concedeu. Ele me assegura, por sua honra profissional, que Joe Slater não passava de um paranoico de baixo grau, cujas noções fantásticas deviam provir de histórias folclóricas rudimentares e hereditárias, circulando até nas mais decadentes das comunidades. Tudo isto ele me disse – embora eu não possa esquecer o que vi na noite depois da morte de Slater. Antes que pensem que sou uma testemunha tendenciosa, outra caneta deve terminar este testemunho final, que talvez possa proporcionar o clímax que esperam. Citarei o seguinte registro da estrela Nova Persei, exatamente como está nas páginas daquela eminente autoridade astronômica, o professor Garrett P. Serviss:
“Em 22 de fevereiro de 1901, uma nova e maravilhosa estrela foi descoberta pelo doutor Anderson, de Edinburgo, não muito longe de Algol. Nenhuma estrela era visível ali, até aquele dia. Dentro de vinte e quatro horas, a estrela estranha brilhou tão forte que superou Capela. Numa semana ou duas, havia visivelmente diminuído, e no decorrer de uns poucos meses era pouco discernível pelo olho nu.”
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluir...advertência e comentário do tradutor
ResponderExcluirEste conto, bem como A Verdade Sobre Arthur Jermyn e Sua Família (que você encontra aqui: http://insanemission.blogspot.com/2010/09/os-fatos-quanto-ao-falecido-arthur.html ), contém um certo grau de preconceito étnico. No caso de Arthur Jermyn, a coisa é mais sutil, mas em Além das Muralhas do Sono, isso fica óbvio, embora não seja relevante ao conto.
O que precisa ser compreendido é o contexto da época em que o escritor viveu, antes da Segunda Guerra, em que o totalitarismo era cogitado como uma opção viável, e o normal era ser racista. Em geral, seus tons racistas não se fazem presentes de maneira óbvia, mas são mais desagradáveis em contos como O Horror em Red Hook (derivado da estadia do escritor em Nova York) e Medusa's Coils, este um conto que, pelo que sei, não há versão em português, mas que eu provavelmente jamais traduzirei.
Isto deixado claro, desfrutemos da perspectiva de horror cósmico e existencial que nos oferece o estranho cavalheiro de Providence, H. P. Lovecraft.
Fantástico esse seu espaço! O pouco que li foi uma viagem sensacional...Pretendo vir com mais tempo para ler tudo na íntegra...Um forte abraço e um lindíssimo final de semana...
ResponderExcluirObrigado por ter viajado aqui, hehe.
ResponderExcluirQuando vc voltar, provavelmente estará mais fácil de ler contos -- sempre se se pode copiar e colar, mas quem gosta de ler diretamente na página às vezes "se sente perdido" pelo fato do blogger espremer o texto muito menos que o faz uma página de texto normal ... daí eu vou editar todas as postagens de contos até segunda-feira, pondo imagens significativas nas "pausas de fôlego do texto"; assim é mais fácil parar e voltar pra ler, identificando onde se parou pela ilustração.
Acredito ser mais elegante que dividir em várias postagens -- isto só funciona em histórias serializadas.
Isto vai ser graças ao feedback de um dos leitores ... sinta-se à vontade!
Imagens e Ilustrações, Autores e Fontes
ResponderExcluir1
Fotografia de Alejandro Cartagena, de sua série "Sueños"
http://alejandrocartagena.com/
3
Evil Karateka, de Rodolfo Troll
http://tocadotroll.blogspot.com/
4
Da série fotográfica Aqueous II, de Mark Mawson
http://www.markmawson.com/
7
Da série fotográfica Library of Dust, de David Maisel
http://davidmaisel.com/
8
Planeta 2, de Rodolfo Troll
http://tocadotroll.blogspot.com/
9
Forbidden Barrier, de Clark Ashton Smith
10
Nikon International Small World Photomicrography
http://www.zupi.com.br/index.php/site_zupi/view/pequenos_mundos_grandes_imagens/
As outras (2, 5 e 6) foram encontradas por mim, há bem mais tempo, no Google Imagens. A segunda imagem inclui um retrato de Lovecraft; a quinta e a sexta são representações da entidade lovecraftiana Azathoth.
Só posso dizer, com todo o perdão da palavra, e porque duvido muito que possa me expressar bem de outra forma: PUTA QUE O PARIU!
ResponderExcluirhttp://dominiopublicano.blogspot.com/2011/09/alem-das-muralhas-do-sono.html
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