sexta-feira, 29 de outubro de 2010

ALÉM DAS MURALHAS DO SONO

POR H.P. LOVECRAFT

TRADUÇÃO: ARTHUR FERREIRA JR.'.

Titulo Original: Beyond the Wall of Sleep




Tenho muitas vezes imaginado se a maioria da humanidade alguma vez chega a refletir sobre a muitas vezes titânica relevância dos sonhos, e sobre o obscuro mundo ao qual eles pertencem. Embora a maior parte de nossas visões noturnas talvez não seja mais que reflexos tênues e fantásticos de nossas experiências despertas – Freud fazendo a ênfase com seu simbolismo pueril – existe ainda uma certa lembrança cujo caráter não-mundano e etéreo não permite uma interpretação normal, e cujo efeito vagamente excitante e inquietante sugere possíveis vislumbres temporários de uma esfera da existência mental não menos importante que a vida física, embora separada desta última vida por uma barreira quase impassável. A partir de minha experiência, não posso duvidar que o homem, quando perdido para a consciência terrestre, está de fato jornadeando até uma outra vida incorpórea, de uma natureza bastante diferente daquela que conhecemos, e da qual somente as mais frágeis e indistintas memórias sobrevivem após o despertar. A partir destas memórias borradas e fragmentárias podemos inferir muito, porém nada provar. Podemos adivinhar que nos sonhos, a vida, a matéria e a vitalidade, como a terra reconhece tais coisas, não são necessariamente constantes; e que o tempo e espaço não existem como nossos egos despertos os compreendem. Às vezes creio que esta vida menos material é nossa vida mais verdadeira, e que nossa presença vã no globo terráqueo é em si um fenômeno secundário, ou apenas virtual.




Foi de uma epifania juvenil cheia de especulações deste tipo que emergi uma tarde no inverno de 1900-1901, quando foi trazido para a instituição psiquiátrica estatal na qual eu servia como interno um homem cujo caso até então tem me assombrado sem cessar. Seu nome, conforme dizem os registros, era Joe Slater, ou Slaader, e sua aparência era a de um habitante típico da região das Montanhas Catskill; um dos herdeiros repelentes e estranhos de um extrato camponês colonial e primitivo, cujo isolamento os fez cair num tipo de degeneração barbárica, ao invés de avançar junto a seus parentes mais afortunadamente posicionados dos distritos enxameados. Entre este povo estranho, que correspondia exatamente ao elemento decadente do “lixo branco” no Sul, a lei e a moral eram não-existentes; e seu estado mental geral está provavelmente abaixo de qualquer outra seção do povo nativo-americano.




Joe Slater, que veio à instituição sob a custódia vigilante de quatro policiais estaduais, e que foi descrito como uma figura bastante perigosa, certamente não apresentava evidência alguma de dita disposição quando o observei pela primeira vez. Embora muito acima da estatura média, e de composição um tanto grosseira, ele passava uma impressão absurda de estupidez inofensiva, através do azul sonolento e pálido de seus olhos pequenos e molhados, o desleixo de sua barba amarelada, negligenciada e nunca aparada, e derrubar apático de seu lábio inferior. Sua idade era desconhecida, já que entre o seus, não haviam registros familiares, nem laços familiares permanentes; mas baseado na calvície da frente de sua cabeça, e da condição decaída de seus dentes, o cirurgião cerebral escreveu que tratava-se de um homem de mais ou menos quarenta anos.










A partir dos documentos médicos e legais, aprendemos tudo que podia ser coletado quanto a seu caso: este homem, um vagabundo, caçador de carnes e peles, sempre foi um estranho aos olhos de seus primitivos associados. Ele tinha hábito de dormir à noite por muito além do tempo normal, e ao acordar falava de coisas desconhecidas, de um modo tão bizarro que inspirava medo nos corações do populacho sem imaginação. Não que sua forma de linguagem fosse de fato incomum, pois ele nunca falava em outra língua que não o patuá degenerado de seu ambiente; mas o tom e teor de seus pronunciamentos eram de tal selvageria misteriosa, que ninguém conseguia ouvir sem apreensão. Ele próprio geralmente ficava tão aterrorizado e confuso quanto seus ouvintes, e depois de uma hora após o despertar, esquecia tudo que havia dito, ou pelo menos tudo que o havia feito dizer o que havia dito; voltando a uma normalidade bovina e quase amistosa como a de outros moradores das colinas.




Conforme Slater envelhecia, parecia que suas aberrações matutinas gradualmente aumentavam em frequência e agressividade; até que mais ou menos um mês antes de sua chegada na instituição, ocorreu a chocante tragédia que causou sua prisão pelas autoridades. Uma ocasião, perto do meio-dia, depois de um profundo sono começado numa farra de uísque mais ou menos às cinco horas da tarde anterior, o homem despertou muito subitamente, com ululações tão terríveis e alienígenas, que vários vizinhos vieram à sua cabina – uma pocilga nojenta onde ele vivia com uma família tão indescritível quanto ele mesmo. Investindo pela neve, ele abria os braços e começava uma série de saltos diretamente para cima, no ar; enquanto gritava sua determinação em alcançar alguma “grande, enorme cabine com a claridade no telhado e paredes e chão e a estranha e alta música lá longe”. Assim que dois homens de tamanho moderado buscaram contê-lo, ele lutou com força e fúria maníaca, gritando de seu desejo e necessidade de encontrar e matar uma certa “coisa que brilha e tremula e ri”. Após ter temporariamente derrubado um de seus captores com um golpe repentino, jogou-se sobre o outro num êxtase demoníaco de sede de sangue, berrando de modo atroz, que ele “pularia alto no ar e queimaria sua trilha através de qualquer um que o tentasse parar”.










Família e vizinhos agora fugiam em pânico, e quando o mais corajoso deles retornou, Slater havia sumido, deixando para trás uma mingau irreconhecível que antes havia sido um homem vivo, um hora antes. Nenhum dos montanhistas ousou perseguí-lo, e é provável que eles receberiam bem sua morte por hipotermia; mas quando várias manhãs depois, ouviram seus gritos vindos de uma distante ravina, perceberam que ele de alguma forma conseguira sobreviver, e que sua remoção, de um modo ou de outro, seria necessária. Então foi formada um grupo de busca armado, cujo propósito (qualquer que tenha sido a princípio) tornou-se o mesmo de uma equipe do xerife, após um dos pouco populares policiais militares estaduais ter, por acidente, observado e então questionado, e finalmente se juntado aos perseguidores.


No terceiro dia, Slater foi encontrado inconsciente no oco de uma árvore, e levado à cadeia mais próxima, onde os alienistas de Albany o examinaram tão logo da volta de seus sentidos. Para eles, Slater contou uma história simples. Ele havia, disse, ido dormir numa tarde, por volta do pôr do sol, após beber muito. Ele despertou, achando-se de pé, com as mãos sangrentas, na neve atrás de sua cabina, tendo o cadáver mutilado de seu vizinho Peter aos seus pés. Horrorizado, adentrou os bosques, num vago esforço de escapar da cena daquilo que deveria ter sido seu crime. Além destas coisas, ele não parecia saber mais nada, nem o questionamento perito de seus interrogadores trouxe mais um único fato sequer.




Naquela noite, Slater dormiu quieto, e na manhã seguinte, acordou sem anormalidades, salvo uma certa alteração da expressão. O doutor Barnard, que havia observado o paciente, pensou que notara nos olhos azul-pálido um certo brilho de qualidade peculiar, e nos lábios flácidos, um endurecimento quase imperceptível, como se numa determinação inteligente. Porém quando questionado, Slater caiu na vaguidade habitual de montanhista, e somente reiterou o que disse no dia anterior.




Na terceira manhã, ocorreu o primeiro dos ataques mentais do homem. Após alguma mostra de inquietude durante o sono, ele explodiu num frenesi tão poderoso que os esforços combinados de quatro homens foram necessários para prendê-lo a uma camisa-de-força. Os alienistas escutaram com atenção fervorosa suas palavras, já que sua curiosidade havia sido levada a um alto grau, pelas histórias sugestivas, embora bastante conflitantes, de sua família e vizinhos. Slater algaraviou por mais de quinze minutos, balbuciando em seu dialeto florestal, falando de edifícios verdes de luz, oceanos de espaço, música estranha, e montanhas e vales sombrios. Porém na maior parte do tempo, ele se detinha em alguma entidade misteriosa e flamejante que tremulava e ria e zombava dele. Esta personalidade vasta e vaga parecia ter feito a ele um terrível mal, e matá-la numa vingança triunfante era seu desejo principal. Para alcançá-la, dizia Slater, ele voaria pelos abismos do vazio, queimando cada obstáculo em seu caminho. Assim correu seu discurso, até que com grande súbito, parou. O fogo da loucura morreu em seus olhos, e em fascínio embrutecido, ele perguntou a seus questionadores por que estava preso. O dr. Barnard desfez as presilhas de couro e não as restaurou até a noite, quando conseguiu persuadir Slater a vesti-las por vontade própria, para seu próprio bem. O homem agora já admitia que às vezes falava estranho, embora não soubesse o porquê.



Dentro de uma semana, mais dois ataques se sucederam, mas deles, os médicos pouco aprenderam. Quanto à fonte das visões de Slater, muito foi especulado, já que ele não podia nem ler nem escrever, e aparentemente jamais ouvira uma única lenda ou conto de fadas, fazendo com que sua imagética extravagante fosse muito pouco explicável. O fato de que não vinha de qualquer mito ou romance conhecido, tornava-se demasiado claro pelo fato do infeliz lunático expressar-se apenas de sua própria maneira simples. Ele algaraviava sobre coisas que não compreendia e nem podia interpretar; coisas que ele clamava ter experimentado, mas que ele não poderia ter aprendido através de nenhuma narração normal ou conexa. Os alienistas logo concordaram que sonhos anormais eram a fundação do problema: sonhos cuja vividez poderia por um tempo dominar de todo a mente desperta deste homem basicamente inferior. Com a devida formalidade, Slater foi julgado por assassinato, inocentado pela alegação de insanidade, e enviado à instituição onde eu mantinha um posto bastante humilde.

Já disse que sou um especulador constante quanto à vida onírica, e a partir disto, vocês podem julgar a avidez com que eu me aplicava ao estudo do novo paciente, tão logo avaliara de todo os fatos de seu caso. Ele parecia sentir uma certa amizade em mim, nascida sem dúvida do interesse que eu não conseguia ocultar, e da maneira gentil com que eu o questionava. Não que ele jamais me reconhecesse durante seus ataques, quando eu ficava sem fôlego com seus retratos verbais cósmicos tão caóticos; mas ele me reconhecia em suas horas quietas, quando ele sentava ao lado de sua janela com grades, fiando cestos de palha e salgueiro, e talvez com nostalgia da liberdade montanhista que jamais poderia de novo desfrutar. Sua família jamais buscou vê-lo; provavelmente ela descobriu outro chefe de família temporário, à maneira do povo decadente das montanhas.

Com o passar do tempo, comecei a sentir um enorme fascínio pelas concepções loucas e fantásticas de Joe Slater. O próprio homem era piedosamente inferior, tanto em mentalidade quanto em linguagem; mas suas visões brilhantes e titânicas, embora descritas num jargão bárbaro e desconexo, certamente falavam de coisas que somente um cérebro superior, ou mesmo excepcional, poderia descrever. Como poderia, muitas vezes me perguntava, a imaginação imperturbável de um degenerado das Catskill conjurar tais vislumbres cuja própria posse demonstrava uma centelha de gênio à espreita? Como algum estúpido da floresta poderia ter conseguido alguma ideia assim dos reinos brilhantes de radiância e espaço supernos dos quais algaraviava Slater em seu delírio furioso? Cada vez mais, inclinava-me à crença de que sob a lamentável personalidade que se encolhia perante mim, estava o núcleo desordenado de alguém além da minha compreensão; algo infinitamente além da compreensão dos meus colegas médicos e científicos mais experientes, embora menos imaginativos.

E ainda assim, não conseguira extrair nada definitivo do homem. A soma de toda a minha investigação foi de que, num tipo de vida onírica semi-corpórea, Slater vagava ou flutuava por vales, prados, jardins, cidades e palácios de luz resplandecentes e prodigiosos, numa região sem limites, desconhecida do homem; que ele não era nenhum camponês ou degenerado, mas uma criatura de importância e vividez, movendo-se orgulhosa e dominantemente, detida apenas por um certo inimigo mortal, que parecia um ser de estrutura visível, embora etérea, e que não parecia ter forma humana, já que Slater jamais referia-se a ele como um homem, mas como uma coisa. Esta coisa fizera a Slater algum mal sem nome, que o maníaco (se é que era um maníaco) buscava vingar.

Pela maneira com que Slater aludia a estes encontros, julguei que ele e a coisa luminosa encontravam-se em termos iguais; que em sua existência onírica, o homem era ele mesmo uma coisa luminosa da mesma raça de seu inimigo. Esta impressão foi sustentada por suas frequentes referências a voar pelo espaço e queimar tudo que impedia seu progresso. Ainda assim, estas concepções eram formuladas em palavras rústicas, totalmente inadequadas à sua transmissão, uma circunstância que me levou à conclusão de que se de fato existia um mundo onírico, a linguagem oral não era o seu meio de transmissão de pensamento. Podia ser que a alma onírica que habitava este corpo inferior estava desesperadamente lutando para falar coisas que a língua simples e restrita da estupidez não conseguia pronunciar? Podia ser o caso que eu estaria para encontrar emanações intelectuais que explicariam o mistério, se apenas pudesse conseguir como descobri-las e lê-las? Não contei aos médicos mais velhos sobre estas coisas, já que a meia-idade é cínica, cética e sem inclinações a aceitar novas ideias. Além disso, o chefe da instituição havia há pouco me advertido, à sua maneira paternal, que eu estava trabalhando demais; que minha mente precisava de um descanso.






Há muito tempo, creio que o pensamento humano consiste basicamente de movimento atômico ou molecular, convertível em ondas ou energia radiante, como o calor, a luz e a eletricidade. Esta crença desde já me havia levado a contemplar a possibilidade da telepatia ou da comunicação mental, através de um aparato adequado, e em meus dias de faculdade preparei um conjunto de instrumentos de transmissão e recepção de certo modo similares aos aparelhos complicados empregados na telegrafia sem fio, naquele período rudimentar anterior ao rádio. Testei aqueles aparelhos com um colega estudante, mas sem alcançar resultado algum, logo os empacotei junto com outros obstáculos e finalidades científicas para possível uso futuro.



Agora, em meu intenso desejo de sondar a vida onírica de Joe Slater, busquei mais uma vez esses instrumentos, e passei vários dias reparando-os para a ação. Quando estiveram mais uma vez completos, não perdi a oportunidade de testes. A cada surto de violência de Slater, ajustaria o transmissor à sua testa e o receptor à minha, constantemente fazendo arranjos para vários comprimentos de onda hipotéticos de energia intelectual. Tinha uma noção mínima de como as impressões de pensamento, caso transmitidas com sucesso, despertariam uma reação inteligente em meu cérebro, mas tinha certeza de que poderia as detectar e interpretar. Portanto, continuei meus experimentos, embora sem informar a ninguém sobre sua natureza.

Foi no dia 21 de fevereiro de 1901 que a coisa aconteceu. Quando olho para trás, com o passar dos anos, percebo o quão irreal a coisa parece, e às vezes imagino se o velho doutor Fenton não estava certo quando creditou tudo à minha imaginação empolgada. Lembro que ele ouviu com grande gentileza e paciência ao que eu lhe dizia, mas depois me receitou uma medicação para os nervos e fez os preparativos para férias de um semestre, para as quais partir na semana seguinte.

Naquela noite fatídica, eu estava altamente agitado e perturbado, porque apesar do excelente cuidado que recebia, Joe Slater sem dúvida estava morrendo. Talvez porque tinha saudade de sua liberdade de montanhista, ou talvez o tumulto em seu cérebro houvesse chegado a um ponto prejudicial em seu físico um tanto inerte; mas em todo caso, a chama da vitalidade começava a diminuir naquela corpo decadente. Ele sentia-se sonolento perto do fim, e conforme a escuridão caía, ele entrava num sono conturbado.

Eu não afixei a camisa-de-força, como era costume quando ele dormia, já que via que o paciente estava muito frágil para ser perigoso, mesmo que acordasse em desordem mental mais uma vez, antes de falecer. Porém pus em sua cabeça e na minha as duas extremidades de meu “rádio” cósmico, esperando, contra todas as probabilidades, que a primeira e última mensagem do mundo onírico viesse, no breve tempo que restava. Conosco na cela estava uma enfermeira, companheira medíocre que não compreendia o propósito do aparato, ou sequer pensava em perguntar do que se tratava. Conforme as horas escoavam, eu via sua cabeça escorregar pateticamente no sono, mas não o perturbei. Eu mesmo, embalado pela respiração rítmica do homem saudável embora moribundo, devo ter cabeceado um pouco depois.








Foi o som da bizarra melodia lírica que me despertou. Coros, vibrações e êxtases harmônicos ecoavam passionais, a todo momento, enquanto em minha visão fascinada explodia o estupendo espetáculo da beleza definitiva. Muralhas, colunas, e arquitraves de fogo vivo ardiam refulgentes ao redor do ponto onde eu parecia flutuar no ar, estendendo-se para cima até um domo abobadado infinitamente alto, de esplendor indescritível. Misturando-se a esta demonstração de magnificência palaciana, ou na verdade às vezes suplantando-o na rotação caleidoscópica, mostravam-se vislumbres de planícies amplas e vales graciosos, montanhas altas e grutas convidativos, cobertas de cada atributo amável do cenário que meus olhos deslumbrados poderiam conceber, embora formados totalmente de alguma entidade plástica, etérea e brilhante, que compartilhava da consistência tanto do espírito quanto da matéria. Conforme eu me transfixava, percebia que meu próprio cérebro tinha a chave para estas metamorfoses encantadoras; pois que cada visão que aparecia perante mim era aquela que minha mente mutável mais queria contemplar. Em meio a este reino elísio, eu não vagava como estranho, pois cada visão e som eram a mim familiares; da mesma forma que havia sido por incontáveis éons de eternidade antes, haveria de ser pelas eternidades por vir.

Então a aura resplandecente de meu irmão de luz se aproximou e começou o colóquio comigo, de alma para alma, num intercâmbio silencioso e perfeito de pensamentos. Era a hora do triunfo se aproximando, pois meu ser companheiro não estava escapando por fim de uma prisão periódica; estava escapando para sempre, e preparando-se para seguir o opressor amaldiçoado até os mais longínquos campos de éter, onde sobre ele seria imposta uma vingança cósmica flamejante, capaz de estremecer as esferas? Flutuamos assim por pouco tempo, quando percebi uma leve distorção e desvanecimento dos objetos ao nosso redor, como se alguma força me estivesse chamando da terra – onde eu menos desejava ir. A forma próximo de mim pareceu também sentir uma mudança, e ela mesmo preparou-se para encerrar a cena, sumindo de meu campo de visão numa rapidez um tanto maior que a dos outros objetos. Conforme mais uns poucos pensamentos foram trocados, soube que o ser luminoso e eu estávamos sendo chamados à prisão, embora para meu irmão de luz fosse a última vez. A lamentável casca planetária seria em breve desgastada de vez, e em menos de uma hora meu companheiro estaria livre para perseguir seu opressor pela Via Láctea e além das mais distantes estrelas, até os últimos confins do infinito.




Um choque bem-definido separa minha impressão final da cena de luz fugaz de meu súbito e um tanto envergonhado despertar, e me ajeitei na cadeira quando vi que a figura moribunda no sofá movia-se com hesitação. Joe Slater estava de fato despertando, embora provavelmente pela última vez. Conforme o observava mais de perto, enxerguei em seu rosto macilento o brilho de pontos de cor que jamais havia estado presentes anteriormente. Os lábios, também, pareciam incomuns, comprimidos com força, como se por força de um caráter mais forte do que o normal de Slater. Toda a face finalmente começava a ficar tensa, e a cabeça virava-se inquieta, com os olhos fechados.

Não acordei a enfermeira adormecida, mas reajustei a faixa um tanto desarranjada de meu “rádio” telepático, tentando capturar qualquer mensagem de adeus que o sonhador estava querendo transmitir. E de súbito a cabeça voltou-se direto para mim e os olhos se abriram, fazendo-me fitar em fascínio vazio ao que presenciava. O homem que havia sido Joe Slater, o decadente das Catskill, estava me observava com um par de olhos luminosos e expandidos, cujo azul parecia ter se aprofundado sutilmente. Nem a mania, nem a degeneração eram visíveis neste olhar, e senti, além de toda dúvida, que estava contemplando um rosto sob o qual estava uma mente ativa da mais alta ordem.

Nesta junção, meu cérebro ficou ciente de uma influência externa operando sobre ele. Fechei meus olhos para concentrar meus pensamentos com mais profundidade, e fui recompensado com o conhecimento positivo de que minha mensagem mental, há muito buscada, finalmente havia chegado. Cada ideia transmitida era formada com rapidez na mente, e embora nenhuma linguagem atual fosse empregada, minha associação habitual de concepção e hábito era tão grande que parecia receber a mensagem em inglês normal.








Joe Slater está morto,” veio a voz, capaz de petrificar a alma, de alguém além das muralhas do sono. Meus olhos abertos buscaram o tom da dor, em curioso horror, porém os olhos azuis ainda estavam observando com calma, o semblante ainda estava animado por inteligência. “É melhor que ele esteja morto, pois não era adequado para suportar o intelecto ativo da entidade cósmica. Seu corpo grosseiro não podia aguentar os ajustes necessários entre a vida etérea e a vida planetária. Ele era demasiado animal, e pouco homem; ainda assim, através da deficiência dele, você veio a me descobrir, pois as almas cósmicas e planetárias na verdade jamais deveriam se encontrar. Ele foi meu tormento e prisão diurna por quarenta e dois de seus anos terrestres.

Eu sou uma entidade como aquela que você mesmo se torna na liberdade do sono sem sonhos. Sou seu irmão de luz, e já flutuei contigo em vales refulgentes. Não me é permitido falar a seu eu desperto da terra sobre seu eu real, mas somos todos errantes dos vastos espaços e viajantes em muitas eras. No ano seguinte, posso estar habitando o Egito que você chama antigo, ou no império cruel de Tsan Chan, que deverá vir daqui a três mil anos. Você e eu já vagamos pelos muindos que rolam ao redor da Arcturus vermelha, e habitamos os corpos de insetos-filósofos que rastejam orgulhosos sobre a quarta lua de Júpiter. Quão pouco este eu terráqueo conhece a vida e sua extensão! Quão pouco, de fato, embora seja para sua própria tranquilidade!

Quanto ao opressor, não posso dizer nada. Vocês na terra, com certeza, já sentiram sua presença distante – vocês que, sem saber, deram merecidamente ao facho pulsante o nome de Algol, a Estrela-Demônio. É para encontrar e conquistar o opressor que tenho lutado em vão por éons, aprisionado pelos fardos corpóreos. Hoje, irei como nêmesis, impondo a justa, ardente e cataclísmica vingança. Observe-me no céu próximo à Estrela-Demônio.

Não posso mais falar, pois o corpo de Joe Slater fica cada vez mais frio e rígido, e o cérebro rude cessa de vibrar como eu desejaria. Você foi meu único amigo neste planeta – a única alma que pôde sentir e buscar por mim dentro da forma repelente que jaz neste sofá. Nos encontraremos novamente – talvez nas brumas brilhantes da Espada de Orion, talvez num platô macabro da Ásia pré-histórica, talvez em sonhos desta noite que você não conseguirá lembrar, talvez em outra forma daqui a um éon, quando o sistema solar já haverá sido varrido para longe.”









Neste ponto as ondas de pensamento cessaram abruptamente, os olhos pálidos do sonhador – ou devo dizer do cadáver? – começaram a ficar vítreos, aquosos. Em meio a um quase estupor, fui até o sofá e avaliei o pulso, mas o achei frio, rígido, sem ritmo. O rosto macilento ficava mais pálido, e os lábios grossos caíam abertos, mostrando as presas repulsivamente podres do degenerado Joe Slater. Senti um calafrio, puxei um cobertor sobre a face horrenda, e acordei a enfermeira. Então deixei a cela e fui em silêncio até minha sala. Senti um ímpeto instantâneo e inexplicável de dormir, num sono cujos sonhos não conseguiria lembrar.

O clímax? Que história plana da ciência pode exibir tal efeito retórico? Eu apenas registrei certas coisas que me pareceram fatos, permitindo a vocês construí-los como desejar. Como já admiti, meu superior, o velho doutor Fenton, nega a realidade de tudo que relatei. Ele jura que eu fui alquebrado pelo estresse nervoso, e que estava muito necessitado de férias longas, totalmente remuneradas, que ele, generoso, me concedeu. Ele me assegura, por sua honra profissional, que Joe Slater não passava de um paranoico de baixo grau, cujas noções fantásticas deviam provir de histórias folclóricas rudimentares e hereditárias, circulando até nas mais decadentes das comunidades. Tudo isto ele me disse – embora eu não possa esquecer o que vi na noite depois da morte de Slater. Antes que pensem que sou uma testemunha tendenciosa, outra caneta deve terminar este testemunho final, que talvez possa proporcionar o clímax que esperam. Citarei o seguinte registro da estrela Nova Persei, exatamente como está nas páginas daquela eminente autoridade astronômica, o professor Garrett P. Serviss:

Em 22 de fevereiro de 1901, uma nova e maravilhosa estrela foi descoberta pelo doutor Anderson, de Edinburgo, não muito longe de Algol. Nenhuma estrela era visível ali, até aquele dia. Dentro de vinte e quatro horas, a estrela estranha brilhou tão forte que superou Capela. Numa semana ou duas, havia visivelmente diminuído, e no decorrer de uns poucos meses era pouco discernível pelo olho nu.”






quinta-feira, 28 de outubro de 2010

Noite Clara: UM BLOCO DE PEDRA


 Capítulo IV



UM BLOCO DE PEDRA desprotegido ante a erosão do tempo.

Era assim que me sentia naquela noite chuvosa: as dúvidas corroíam meus pensamentos, e dentre estas, a mais dolorosa era a dúvida de como fazer meu relatório para a chefe. Tâmara Diegues era uma mulher exigente, meticulosa, perfeccionista, muitas vezes ríspida. Acima de tudo era a rispidez que me causava o medo, medo da humilhação frente a meus colegas patrulheiros.
Era quase possível vislumbrar a pele bronzeada, vívida, da Coronel Diegues contrastando com as luzes indiferentes e profissionais da Base 17; postura levemente curvada para frente, dedo estendido na minha direção, olhos franzidos num cenho de desaprovação, as pupilas negras brilhando de raiva. Suponho que era mais humilhante receber um sermão gritado, em público, dela, do que de todos os velha-guarda do antigo Exército. Ela era uma mulher, afinal de contas – as coisas não haviam mudado tanto assim, pelo menos no íntimo das pessoas. Em seu verdadeiro centro, elas ainda eram preconceituosas; e assim eram meus colegas.

É claro que o tal preconceito contra mulheres em cargos de alta patente militar não teria mais como se aplicar de verdade ... se havia uma palavra para definir as novas políticas, essa palavra era o pragmatismo. Haviam poucos velha-guarda deixados vivos, simplesmente porque velha-guardas tendem a ser mais velhos que recrutas, e os mais velhos, por mais durões que fossem, tinham menos resistência física e poucos sobreviveram ao choque e impacto da Noite Clara.

A Noite Clara ... não só esta data marcou o mundo, treze anos atrás, como era de fato a razão tanto para eu encarar a Coronel Diegues, quanto para a pobreza do relatório que eu teria que apresentar a ela. Treze anos atrás, 17 de agosto de 2012, marquem bem esta data, quem quer que esteja lendo este diário interno (quem sabe o diário registra a outro cataclisma como aquele e esta seja a primeira referência sobre a Noite Clara que você esteja lendo!). Além da fonte de meus deveres, meus problemas e meus ... poderes, a Noite Clara também é a razão pela qual nossa atual população mundial é de 23 milhões de pessoas.

Sim, muito pouco comparado aos bilhões que antes havia. Nada de ruas abarrotadas, nem de engarrafamentos, nem mesmo falta de moradia ... nada destes incômodos que eu bem sofria quando era adolescente. Eu tinha 14 anos e talvez seja o único de minha grande e (certo, sentimento de culpa básico ao dizer isso) chata família que sobreviveu. Um mundo numa perpétua crise, um estado de tensões que foi quebrado por um clarão, um flash no escuro da noite de 17 de agosto.

Meu relatório, embora necessariamente pobre, já está pronto (inclusive para ser chamado de prova de incompetência, apesar de eu saber bem a causa das minhas omissões) e só devo ir à Base daqui a cerca de duas horas e meia. Sendo assim, umas poucas lembranças devem me distrair da ansiedade. De fato, é para isso que serve o diário interno: um dos programas mais amigáveis dos nano-computadores em meu organismo serve para registrar meus pensamentos e permitir uma análise posterior, mas recitar mentalmente uma narrativa com certeza serve para me aliviar de angústias quando penso no futuro ... por mais doloroso que tenha sido o passado.

Bem, pelo menos é uma dor já conhecida. Vamos relembrá-la, então … a Noite Clara.



Eu estava correndo pelo quarteirão, dando a terceira volta. Eram cerca de oito e meia da noite, e o quarteirão que eu circulava ficava dentro do condomínio de minha família. De todas as características marcantes desse condomínio, a segurança era a mais agradável … pelo menos para quem estava dentro. Para quem estava fora, e queria entrar por alguma razão, normalmente encarada como criminosa, o choque nos muros eletrificados ou o espancamento nas mãos dos guardas de segurança eram uma punição adequada, embora não seja esta ameaça de punição o que tornava meu condomínio mais eficiente em termos de segurança: era sua vigilância – vigilância interna, inclusive: eu sabia que, ao dobrar aquela esquina, pelo menos dez câmeras pequenas e camufladas estariam filmando meu desempenho esportivo.

Ninguém estaria apreciando meus recordes pessoais de velocidade, é claro. A preocupação era outra. Não com ele, morador registrado, filho de proprietária, mas com prováveis intrusos. O sentimento de paranoia era, ali, algo institucional, e portanto, algo tolerado, tido como necessário e facilmente subestimado … absorvido.

Pouco antes que eu começasse a sentir um frêmito estranho em meus músculos, e imaginasse que era o cansaço prematuro (eu era considerado um futuro atleta), com certeza os eventuais vigias que observavam das câmaras estavam sendo absorvidos por sua paranoia interna. Depois de um tempo soube que nenhum deles sobreviveu à Noite. Um esplendor na mente, o juízo queimado por esse clarão, a razão toldada e maculada de forma tão lancinante e total que não era possível nem se mexer, para expressar a loucura que a Noite trouxe. Morte cerebral instantânea.

Muitos, muitos morreram. Alguns conseguiram de alguma forma não ter sua mobilidade roubada e saíram num louco frenesi destruindo tudo como se estivessem possuídos, numa insana fúria contra a substância do mundo material, que só terminou com uma horrenda morte por puro esgotamento do sistema nervoso. Ainda outros penetraram num longo sono até hoje não terminado, e uns poucos que foram atendidos mais tarde e a tempo estão em hospitais especiais com o diagnóstico de coma sobre seus leitos. E uma quantidade ainda menor do que os que caíram em coma naquela Noite abriu os olhos com a mente tomada em chamas e percebeu que nenhum deles era mais como era antes.

O Dom da Noite Clara havia sido forçado sobre esses sobreviventes.






Eu fui um desses sobreviventes, e dentro dessa nata faço parte de outra elite – aqueles cujo Dom é forte, mas não tão forte a ponto de enlouquecer … muito. Eu mesmo tenho sonhos perturbadores, e uma fortíssima sensação de desassociação muitas vezes toma conta de mim, como se eu fosse um bonequinho controlado a distância pelo meu verdadeiro eu. Em compensação, consigo ler mentes e objetos. Me dê tempo para concentração suficiente, concentração firme como um bloco de pedra, e eu posso ler – sim, ler, não consigo ouvir pensamentos – o que acontece dentro da sua cabeça. Leio a história de objetos e locais como se fossem linhas de dados criptografados.

Todos os sobreviventes são assim: a diferença está no grau do poder e no grau de loucura: e esse grau é sempre o mesmo. A mesma proporção irônica. É como se um mordaz senso de equilíbrio sugerisse: o poder corrompe, e o poder absoluto corrompe absolutamente. Esta frase é muito mais verdadeira quando se observa aqueles que meu dever militar impõe como alvos: as abominações de poder e loucura extremos. Como Nicholas Frost, famoso americano capaz de incendiar uma cidade pequena quando fica enraivecido; ou a Cipoal, alcunha de uma mulher que estende tentáculos telepáticos de insanidade pelos sonhos de um centésimo da população.

A população … a grande maioria da população não é nem como eles, nem como eu e meus colegas. A capacidade antes extraordinária de torcer o metal de uma colher, acompanhada de tiques nervosos quase constantes – este é um exemplo do Dom da Noite Clara agindo sobre uma pessoa comum, um daqueles que as patrulhas protegem.

Eu posso ter meus problemas ocasionais – um dia a desassociação foi tão forte que fiquei catatônico por seis horas – mas sou considerado confiável – e útil – o suficiente para ser recrutado pelo governo. E não há muita escolha para nós de poder intermediário. Ser classificado como um patrulheiro em potencial, e recusar, ou ser considerado inútil por razões de confiança (alguns chamariam de razões de moralidade, mas não sou tão otimista: que moralidade convencional imporia assassinato?), significa quase sempre preso por alguma razão pretextuosa. Quase sempre.

E aí está, acabei voltando para a razão da minha ansiedade quanto ao maldito relatório. O diário que serviria para relaxar acaba me deixando mais nervoso. Quando um recruta em potencial se recusa, e foge do treinamento pela patrulha, alguém deve apresentar um relatório sobre o caso. Esse alguém era eu. As omissões no relatório eram deliberadas, visando proteger a futura recruta. E eu sei que a Coronel Diegues desconfiaria. Era inevitável. Mas por enquanto não poderia provar nada, só me pressionar. E ela teria seus meios de reforçar a pressão ...



Mudança no Ar?


IMAGEM MERAMENTE ILUSTRATIVA?
Pelo que estou lendo, algumas cenas de http://insanemission.blogspot.com/2010/10/misterios-do-horizonte.html vão ser com esta música tocando na própria cena.





http://www.youtube.com/watch?v=WPpDyIJdasg&feature=share

terça-feira, 26 de outubro de 2010

MISTÉRIOS DO HORIZONTE

Por The Grey Knight e Neith War

Houve um momento em que o desejo superou o medo, mas esse momento foi embora. E ali, paralisado no meio da auto-estrada, Dionísio se perguntava o que fazer.



...


E eu também me perguntei o que fazer !
Quando este conto for terminado por Neith e eu, ele será postado neste mesmo bat-canal.


sábado, 23 de outubro de 2010

Ode Pseudo-Emo a Azathoth


Um som de flautas a emanar da câmara oculta
Sombras dançam suavemente a seguir o ritmo hipnótico
Uma opressiva consciência guia os passos dessa procissão.


Um paradoxo reinante sobre a estrutura do universo,
A leveza e a elegância de um fluxo de energia livre
Entrelaçadas ao peso esmagador desta consciência opressiva.


O presságio do futuro inevitável
O desespero de quem antevê a própria morte
É este o fado da matéria, esmagada contra si mesma.
A consciência opressiva bloqueia a tudo e a todos e a si mesma.


Uma insensibilidade cinzenta toma conta da mente cósmica.
Uma zona de possibilidades estranhas antes remotas
Lentamente se instala sobre a prisão da carne onde vivemos.
Uma opressiva consciência finalmente nos enreda e imobiliza.


Oh, extremo anseio de liberdade!
Oh, extremo desejo de um dia esta presença sufocante desfazer-se!
Quem sou, quem é você, estamos todos esmagados na existência!
Todos juntos num mesmo barco a viajar num mar de sombras,
Sombras da nossa própria cegueira que impele um tumulto insano:
Um turbilhão de violências desferidas contra nós mesmos.
Os sobreviventes terão perguntado se terá valido a pena sobreviver.


E mesmo após todo um éon que se desenrolou nesta luta medonha
Um macabro amanhecer se desenha em nossas mentes a cada dia
A esperança da fuga, a fé num sangue derramado que nos redimirá
Das atrocidades que contra nós mesmos cometemos.
Nosso crime será nossa própria salvação, devoramos nossa própria carne,
Bebemos nosso próprio sangue, como uroboros o tempo é infinito para nós.
Será que perceberemos um dia que o ciclo deve ser quebrado?


Vida, existência, opressiva consciência!

A Luz Escarlate


poema em honra de uma amiga desaparecida

Um flash, um insight
Uma sombra, uma incerteza, uma radiância sutil
Um vislumbre do que é e do que jamais será
Uma face encoberta pelo que há de mais ilusório: a sinceridade.

Será essa máscara o real rosto da menina
Que se esconde sob a luz escarlate?
Será o redemoinho ao seu redor
A sua vida, carnal – ah, tão carnal como pode ser um coração vermelho
A sua vida exposta em tão curto e complicado painel?

Os raios escarlates da luz avassaladora, porém sutil
Lentos, se espalham por todo o corpo da menina.
Cruel e gentilmente,
Revelam os detalhes e as formas do seu corpo
Um corpo que é, há um só tempo, miragem intangível e solidez erótica
Nas mentes, nos corações e nos sexos daqueles que a contemplam.

Os seios, descobertos, merecem mais do que a admiração
O ventre, nu, merece mais do que só a imaginação
Os quadris, à mostra, merecem mais do que uma só mão
A acariciá-los – mesmo que as mãos passem para
O destino final de todos os adoradores dessa deusa,
Mesmo que à distância - que é o refúgio secreto entre suas pernas,
A prisão que bane todos os desejos e segredos para um mar de esquecimento divino!

desabafo





sobre os abortos sincrônicos da sensibilidade plástica,
de Domenico


Às vezes sinto como se estivesse dentro da curva entre o que mergulha
E o que não consegue emergir
e os instintos naufragassem ao menor grito de alarma
tempestades chorando por não serem derramadas
relâmpagos inutilmente esperando por serem consumidos


Às vezes sinto como se estivesse fora do ninho
e os sorrisos fugissem ao menor sinal meu
ventos correndo em direção oposta ao tempo
entrepostos vigiando cada passo que dou


Às vezes sinto como se estivesse vertendo espinhos
e a malícia, tantas vezes experimentada,
escorregasse em pânico ante os mais tolos desejos reprimidos


Às vezes sinto como se estivesse resistindo demais
e a massa crítica, pronta para explodir,
submergisse num sub-reino de idéias que não foram realizadas


Atormenta mais, Ereshkigal, necrófaga insaciável de sensações descartadas!
Dilacera mais, Inanna, voraz incitadora dos prazeres humanos e desumanos!
Porque eis, não mais me importo
E contra as irmãs, praga ou maldição não lançarei,
Posto contra deusas inutilidade seria,
Mas contudo fiquem amordaçadas no esquecimento,
Enquanto ejaculo o mais sagrado desprezo na face de vós duas.













ps. como eram uma merda esses poemas da década passada!!!

Estaca de Amor



por Desdêmona


O Amor é uma estaca da madeira da Árvore do Conhecimento
Do Bem e do Mal, que me empala o coração de maçã,
Abrindo-me os olhos para as ilusões do desejo.
Faz-me sangrar de dor e prazer, faz-me chorar de ciúme e saudade,
Com o coração a chorar e os olhos a sangrar.


Retirar a fatídica estaca do coração aflito somente
O faz ficar vazio, sequioso da plenitude que apenas
O Amor pode oferecer. Valeria mesmo a pena rechear
A ferida com o fluido empestado do Ódio,
Que me invariavelmente domina após a partida do Amor?


Assaz imperiosa a transposição das barreiras entre o Amor
E o Ódio; assaz necessária a alquímica fusão dos opostos.
A gangrena hedionda do ódio me infecciona o peito,
Escandalizando-me; como o Cristo assim recomendou,
Corto-o fora! E no monte de esterco ficará o coração abandonado.

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Senhora da Dor e do Prazer - 2a. Estrofe

Um mantra secreto de dor, prazer e blasfêmias transformadas em bênçãos inesperadas ...
O corpo dela brilha ao luar escarlate
Uma sombra acaricia as curvas insanas do corpo desta mulher misteriosa
É a Senhora da Dor e do Prazer
Que faz a própria escuridão se curvar e lamber-lhe os pés altivos.
Eu estou dentro das sombras, eu sou a sombra!
Eu sou Pai Escuridão e Cavaleiro Cinzento, zombando da aurora que teima surgir.
E nos últimos momentos da madrugada febril
Eu sinto o cheiro embriagador da minha Senhora ... ela me chama e já estou em seu corpo.
A dor e o prazer percorrem nossos corpos sedentos:
Os frêmitos da alucinação nos dominam, e o corpo da Senhora me cavalga,
Revelando a visão de sua carne de ninfa da floresta infestada de demônios.
Uivo ao sentir seu escorrer sobre meu corpo,
Sou dilacerado, mas sendo sombra,
Sempre volto a existir dentro dela -- sentindo a dor e o prazer eternos
Que são essa carne e alma num só turbilhão de seios, curvas, esse eclipse eterno!