Versão em português de Chew Me, Crush Me
Desejos não passavam de caprichos, sentimentos separados das necessidades.
Era o que ela pensava, até que veio o Noite de Ano Novo, mudando tudo.
Era uma festa badalada, e a garota imaginava o que poderia acontecer. Sensações de perigo passaram por sua cabeça, mas seu coração aceitou o desafio. Três doses da GARRA, a nova droga no pedaço, por um bom preço, e sem risco de overdose. Garantia de David. David era o melhor amigo do irmão da moça – o detalhe de que ele havia se tornado um traficante não atrapalhara a confiança entre eles.
Você pode imaginar a música que tocava na festa como qualquer uma que te excite. Não faz diferença nenhuma, porque não mais de dez minutos depois que Monique engoliu as pílulas de Garra, os sons tornaram-se apenas os de sua própria mente.
Sons da floresta e da selva. Água pingando. Pássaros cantando, insetos zumbindo. O uivo de um lobo, à distância. Tudo entre as paredes de uma festa de Ano Novo.
Monique pensou estar ficando louca, mas não ousou comentar nada com ninguém. Logo, os sons em seus ouvidos se juntaram aos odores de todos que dançavam ali. Ela podia sentir o gosto do suor de um casal que se agarrava, no lado oposto da boate. O som e o odor e o gosto juntaram-se a visão, com suas novas perspectivas, e ela pôde enxergar as linhas do tempo, enroscando-se ao redor dos dançarinos, sugerindo pontos de pressão vinda do além, e pontos fracos onde ela poderia atacá-los.
Sim, ela poderia atacá-los, ela precisava atacar, morder, mastigar, transformar-se.
Ela não sabia que 0,01%, ou talvez menos ainda, dos usuários da Garra tinha reações como aquela, e ela fazia parte daquele grupo, empurrada a ele pela quase-overdose. Nenhum desses fatos a preocuparia: a partir daquele exato momento, em que o relógio mostrava 23:59, nenhuma preocupação, nenhuma responsabilidade, nenhum limite eram de interesse de Monique. Ela era verdadeiramente livre.
Pelo menos, ela sentia-se tão livre, tão faminta e selvagem, que agarrar aquele estranho, que a estava atiçando a noite toda, e levá-lo ao dark room, parecia algo tão óbvio. Ela podia ter feito isso antes. Ele era sua presa, implorando que ela o encurralasse e o devorasse.
Ela o abraçou, e eles se beijaram tão profundamente que o rapaz perdeu o fôlego, enquanto eles se arrastavam até a área do dark room. “Preciso te mastigar,” disse Monique, numa voz frenética. “Você quis dizer que precisa demais me dar, né?” brincou o rapaz. Não teve resposta.
Garras afiadas rasgaram seu corpo, num banho de sangue. Uma boca, antes delicada e leve, agora uma mandíbula exagerada, mastigava a carne do estranho já morto. Logo, a garota lobisomem esmagou seus ossos, e chupou o tutano neles. “Eu realmente precisava disso,” ela pensou. E ela precisava de mais.
Os gritos de alegria e comemoração da festa transformaram-se em gritos de medo e dor, implorando o socorro que nunca veio. E então Monique estava livre para o Ano Novo ...
sexta-feira, 31 de dezembro de 2010
quarta-feira, 29 de dezembro de 2010
CHEW ME, CRUSH ME
Publicado para o New Year Contest em http://figment.com/books/18097-Chew-Me-Crush-Me
Desire was nothing more than fancy, a feeling apart from need.
That's what she thought, until New Year's Eve came, and everything changed.
That was a hell of a party, and the girl wondered what could result of it. Feelings of danger passed through her head, but her heart accepted the challenge. Three doses of TALON, the new drug on the block, at a good price and no overdose risk. David guaranteed that. David was her brother's best friend – the fact that he turned into a pusher didn't messed the trust between them.
You can picture the music running at the party as whatever music excites you. That wouldn't make any difference, because after Monique swallowed the Talon pills, no more than ten minutes passed, and the sounds turned to ones that existed only in her mind.
Sounds of the forest and the jungle. Dripping water. Birds singing, insects buzzing. The howl of a distant wolf. All in the confines of a New Year's Eve party.
Monique thought she was mad, but dared not to tell this to anyone. Soon the sounds in her ears were joined by the smells of everybody in the dancing floor. She could taste the sweat of a couple making out, at the opposite side of the club. To sound and smell and taste, the vision added new perspectives, she could see the lines of time, tangling around the dancing people, suggesting points of pressure from beyond and points of weakness where she could attack them.
Yes, she could attack them, she needed to attack, to bite, to chew, to transform.
She didn't know that 0,01% of Talon users had reactions like that, and that she was one of that group, pulled by a near-overdose. None of these facts concerned her: from that moment – when the clock showed 23:59 PM – no preoccupations, no responsibilities, no limits concerned her. She was truly free.
At least, she felt so free, so hungry and wild, that taking this stranger, who teased her all night, to the dark room, seemed so obvious. She could have done it earlier. He was her prey, calling her to corner him and devour.
She hugged him, and they kissed so deeply the guy lost his breath, while they moved to the dark room area. “I need to crush you,” said Monique in a frantic voice. “You mean you have a crush on me, didn't you?” answered the man. He didn't have a reply.
Talons ripped his body in a shower of blood. A mouth, once delicate and soft, was now an oversized mandible, chewing the flesh of the now-dead stranger. Soon the werewolf girl crushed his bones, and chewed the marrow of them. “I totally need this”, she thought. And she needed more.
The screams of joy and celebration at that party then turned to pained and fearful screams, crying for a help that never came. And then she was free to the New Year ...
Desire was nothing more than fancy, a feeling apart from need.
That's what she thought, until New Year's Eve came, and everything changed.
That was a hell of a party, and the girl wondered what could result of it. Feelings of danger passed through her head, but her heart accepted the challenge. Three doses of TALON, the new drug on the block, at a good price and no overdose risk. David guaranteed that. David was her brother's best friend – the fact that he turned into a pusher didn't messed the trust between them.
You can picture the music running at the party as whatever music excites you. That wouldn't make any difference, because after Monique swallowed the Talon pills, no more than ten minutes passed, and the sounds turned to ones that existed only in her mind.
Sounds of the forest and the jungle. Dripping water. Birds singing, insects buzzing. The howl of a distant wolf. All in the confines of a New Year's Eve party.
Monique thought she was mad, but dared not to tell this to anyone. Soon the sounds in her ears were joined by the smells of everybody in the dancing floor. She could taste the sweat of a couple making out, at the opposite side of the club. To sound and smell and taste, the vision added new perspectives, she could see the lines of time, tangling around the dancing people, suggesting points of pressure from beyond and points of weakness where she could attack them.
Yes, she could attack them, she needed to attack, to bite, to chew, to transform.
She didn't know that 0,01% of Talon users had reactions like that, and that she was one of that group, pulled by a near-overdose. None of these facts concerned her: from that moment – when the clock showed 23:59 PM – no preoccupations, no responsibilities, no limits concerned her. She was truly free.
At least, she felt so free, so hungry and wild, that taking this stranger, who teased her all night, to the dark room, seemed so obvious. She could have done it earlier. He was her prey, calling her to corner him and devour.
She hugged him, and they kissed so deeply the guy lost his breath, while they moved to the dark room area. “I need to crush you,” said Monique in a frantic voice. “You mean you have a crush on me, didn't you?” answered the man. He didn't have a reply.
Talons ripped his body in a shower of blood. A mouth, once delicate and soft, was now an oversized mandible, chewing the flesh of the now-dead stranger. Soon the werewolf girl crushed his bones, and chewed the marrow of them. “I totally need this”, she thought. And she needed more.
The screams of joy and celebration at that party then turned to pained and fearful screams, crying for a help that never came. And then she was free to the New Year ...
domingo, 26 de dezembro de 2010
A ESPIRAL SEM LIMITES
Suspensa
Em fluxo
Horizonte de eventos
Mistério vivo para além de toda perspectiva
Ponto de fuga no centro do mundo
Eu sou a Espiral sem Limites.
Mancha se espalhando
O vibrar do flagelo
O ressoar das supercordas
No centro dos centros, a Fortaleza do Firmamento
A Prisão de Tempo que pressiona contra o espaço
Borbulha nas veias do mundo.
Vultos caminham
Impulsos vagam
Sigilos tecem uma teia em Espiral sem Limites
Passado e futuro adquirem seus sentidos
Despertam para a vida dos homens
E veneram o caminho que rodopia dentro deles.
Simetria macabra
Desdobrando-se irracional
Uma superconsciência de fragmentos em órbita
Uma zona de sub-reinos impossíveis
Eu sou a Espiral sem Limites
Território de sua própria mente.
sábado, 25 de dezembro de 2010
Noite Clara: O HOMEM DE CINZA
Agradecimentos a Vagner Campos, que avaliou o cenário da Noite Clara, e a Robert W. Chambers, pela dádiva do Sígno Amarelo.
DE REPENTE, TUDO FICOU ESCURO. NÃO HAVIA NADA LÁ, na mente daquele homem que passava pela rua. Um homem de aparência comum, usando roupas comuns, pouco notáveis, enfatizando suas feições ainda menos notáveis. Ele parecia ser um zé-ninguém que se confundia na multidão … mas isso era impossível. Se eu não sentia nada em sua mente, isso já o tornava perigoso.
Quando a Noite Clara caiu sobre nós, décadas atrás, bilhões de pessoas não aguentaram o choque de seus próprios poderes latentes, estourando suas mentes e cérebros. Outras pessoas entraram num frenesi de loucura e nisso, muitos foram mortos, muito foi perdido. Outras ainda, uma pequena minoria, da qual faço parte, sobreviveu e desenvolveu terríveis poderes psíquicos … e agora toda a população da Terra é composta de paranormais, todos demonstrando vários poderes mentais diferentes, todos … exceto os outros sobreviventes.
A mente daquele homem que caminhava em meio à multidão era igual à de um desses outros sobreviventes. O problema é que todos esses outros estão em coma. Mantidos em animação suspensa, alimentados por máquinas, com pouquíssima esperança de acordarem de um sono sem volta. E o homem sem mente continuava andando.
Eu o segui por alguns quarteirões … precisava falar com ele. Quando fui chegando mais perto, e a multidão ali – numa das poucas metrópoles que restaram no mundo – foi se dissipando, a vontade de falar com o homem foi diminuindo. Ele continuou andando pelas vielas mais podres da cidade, e eu o seguia, sem coragem de abordá-lo.
Logo estávamos os dois perdidos em ruas cada vez mais estranhas, ou pelo menos eu estava muito confuso. Não sabia para onde o homem estava indo. Começamos a entrar numa das partes mais violentas da cidade, sujeitos mal-encarados me observavam a todo momento, vendedores de peças usadas e comida exótica me olhavam furtivamente … e o homem sem mente continuava andando, ninguém parecia notar sua presença, mesmo que ali, seu terno cinzento já estivesse destoando do cenário.
Comecei a me sentir extremamente paranoico. Que queriam aquelas mulheres que cochichavam nas janelas das casas quase em ruínas? O que eram aquelas bandeiras vermelhas esfrangalhadas, penduradas num poste quase derrubado? Que fazia o símbolo amarelo, o logo da multinacional Carcosa, entalhado no capacho de um dos casebres?
Logo, o homem sem mente virou por esquinas mais desabitadas, e entrávamos num setor de prédios arruinados, uma lembrança dos tumultos, loucuras e destruição da Noite Clara. Num certo ponto, senti um cheiro de almíscar, vindo de um janela quebrada; era bem forte. Ao olhar para a janela, vi o símbolo amarelo de novo. Pichado no que restava do vidro daquela janela. Amarelo forte, quase fluorescente.
Respirei fundo, o logo da Carcosa nunca havia me dado calafrios, mas aquilo na janela me fez parar o ritmo da caminhada. Meu coração acelerado, um pouco de taquicardia, quando fui olhar de novo o homem que seguia, ele havia sumido …
E não houve como encontrá-lo. Era inútil. Me veio a ideia insana de berrar seu nome naquele lugar desolado, mas eu não sabia o nome do homem sem mente. Se não tinha mente, desafiava a compreensão da minha telepatia, não devia ter nome … vaguei, quase em desespero, pelo setor desabitado, evitando as matilhas de cães que rondavam a área. Já ia anoitecendo. E eu precisava denunciar a existência daquela anomalia – daquela aberração, devia ser uma daquelas aberrações poderosíssimas, caçada pelo governo, por patrulhas especiais poderosas, mas não tão insanas quanto as aberrações. Tinha que me reportar a uma dessas patrulhas. Mas eu já havia sido alvo do recrutamento deles, minha telepatia era forte demais, meu lugar só podia ser dentro de uma patrulha de caçadores de aberrações. Qualquer outro lugar despertaria desconfiança demais, e eu seria considerado um inconveniente ou um inimigo. Felizmente, um oficial de patrulha amigo conseguiu me acobertar. Fiquei perdido nas memórias daquela época, enquanto vagava perdido nas ruas sem uma viva alma.
No dia seguinte, alvorecia, e eu consegui chegar a uma parte habitada da cidade. Ninguém estava mais prestando aquela atenção que eu percebi quando seguia o homem de cinza … sim, era um homem vestindo um terno cinza. E eu precisava … precisava falar com aquele homem … mas por quê? Algo sobre uma denúncia … não sei mais. Acho que o homem tinha uma denúncia a me fazer, algo a ser publicado pelo jornal onde trabalho … aquele homem de cinza chegou a falar comigo?
Por que não consigo lembrar? Ele me disse alguma coisa importante? O que eu estava fazendo naquela periferia labiríntica? A tal denúncia tinha algo a ver com a violência nos bairros mais pobres. Só podia ter a ver com os contrabandistas de óleo. Me sentei numa soleira de porta, pensativo, tentando lembrar. O que era mesmo que eu estava fazendo ali?
As pessoas passavam pela rua, eu coçava a cabeça, roía unhas, e ninguém me notava, minha telepatia me dava certeza disso. Não é para se admirar, porque, afinal de contas, quem era eu?
Já não sabia mais.
E quando uma esmola caiu no meu colo, não estranhei … agradeci, estava com tanta fome! Aquela moeda de periferia podia me render o almoço, se eu fosse insistente com os passantes, poderia ter meu jantar garantido, e aquela soleira de porta era confortável, o capacho macio, já poderia dormir ali sem problemas, ninguém diria nada, aliás, por que diriam? Todos me conheciam, eu e minha roupa cinza esfarrapada.
Eu dormia ali todos os dias, há muitos anos, não era mesmo?
sexta-feira, 24 de dezembro de 2010
SOBE A MARÉ
Para Nikki
Sobe a maré
Sereias espreguiçam tudo na areia
Caranguejos arranham os corpos dourados
Escamas pouco a pouco arrancadas.
Lua roda no céu
Peço que rode no céu para sempre
Surge o monstro e morde um pedaço da lua
Salpica o sangue adocicado da lua sobre mim.
Essa lua insana
Essa lua que eriça os pêlos de tua nuca
As sombras batem no teu corpo e a paz engana
É que esse corpo quieto, por dentro se contorce.
Sobe a maré
Ela nunca mais pára de descer:
O oceano ferve e o sangue da tuas veias ferve
As sereias se desfazem em mulheres que andam pelas ruas
E correm pelas ruas, sedentas
Sobe a maré e com elas ondula como a lua que gira.
Para sempre, não sei se é,
Mas a maré, rainha de si,
Acha que subirá para todo o sempre, e assim será!
Sobe a maré
Sereias espreguiçam tudo na areia
Caranguejos arranham os corpos dourados
Escamas pouco a pouco arrancadas.
Lua roda no céu
Peço que rode no céu para sempre
Surge o monstro e morde um pedaço da lua
Salpica o sangue adocicado da lua sobre mim.
Essa lua insana
Essa lua que eriça os pêlos de tua nuca
As sombras batem no teu corpo e a paz engana
É que esse corpo quieto, por dentro se contorce.
Sobe a maré
Ela nunca mais pára de descer:
O oceano ferve e o sangue da tuas veias ferve
As sereias se desfazem em mulheres que andam pelas ruas
E correm pelas ruas, sedentas
Sobe a maré e com elas ondula como a lua que gira.
Para sempre, não sei se é,
Mas a maré, rainha de si,
Acha que subirá para todo o sempre, e assim será!
domingo, 5 de dezembro de 2010
ESSA CIDADE É DE EXU
Homenagem à Salvador de 2011 ... Laroyê!
Agradecimentos a um sujeito que assume suas falácias, M. Jambeiro
Nessa cidade todo mundo é de Exu
Come menino, menina e traveco
Toda essa gente desvia a magia
Presente na água podre
Presente na água cortada
E toda a cidade pira
Presente na água podre
Presente na água cortada
E toda a cidade pira
Se traficante ou filho de senador
Ou um imponente e parado metrô
Se pôr despacho é tudo uma coisa só
A força que torce as ruas
Não faz distinção de cor
E toda a cidade é de Exu
A força que torce as ruas
Não faz distinção de cor
E toda a cidade é de Exu
É de Exu, é de Exu
É de Exu
Eu vou engarrafar
Eu vou engarrafar as ruas de lá
Eu vou engarrafar
Eu vou engarrafar
Eu vou engarrafar as ruas de lá
Eu vou engarrafar
...
Vá cantando errado enquanto ouve
http://www.youtube.com/watch?v=COy2ecix-dg
Agradecimentos a um sujeito que assume suas falácias, M. Jambeiro
Nessa cidade todo mundo é de Exu
Come menino, menina e traveco
Toda essa gente desvia a magia
Presente na água podre
Presente na água cortada
E toda a cidade pira
Presente na água podre
Presente na água cortada
E toda a cidade pira
Se traficante ou filho de senador
Ou um imponente e parado metrô
Se pôr despacho é tudo uma coisa só
A força que torce as ruas
Não faz distinção de cor
E toda a cidade é de Exu
A força que torce as ruas
Não faz distinção de cor
E toda a cidade é de Exu
É de Exu, é de Exu
É de Exu
Eu vou engarrafar
Eu vou engarrafar as ruas de lá
Eu vou engarrafar
Eu vou engarrafar
Eu vou engarrafar as ruas de lá
Eu vou engarrafar
...
Vá cantando errado enquanto ouve
http://www.youtube.com/watch?v=COy2ecix-dg
sexta-feira, 3 de dezembro de 2010
ELA SÓ QUERIA DANÇAR
Por Lady Mizune e Arthur Ferreira Jr.'.
"NÃO É POSSÍVEL. EU DEVO TAR CHAPADA, mas não tomei nada hoje ..."
"NÃO É POSSÍVEL. EU DEVO TAR CHAPADA, mas não tomei nada hoje ..."
Os cheiros à volta de Aline se avivaram como chama que recebe combustível novo. Era como uma sinfonia de odores, alguns agradáveis e sedutores, outros terríveis e intoxicantes. A moça já havia experimentado esses sintomas antes, pelo menos duas vezes: era um dos efeitos colaterais daquela droga, uma pílula minúscula, nova no mercado, a chamada Belknap-14. A maioria dos usuários não se referia a ela por esse nome, como aliás acontece com várias drogas por aí: o apelido da nova sensação do momento era a GARRA.
Havia uma boa razão para esse nome, uma garra parecia arranhar a pele do viciado, traçando desenhos invisíveis, às vezes causando prazer, às vezes provocando uma dor excruciante ... às vezes ambos. Outros dos efeitos era esse aumento nos sentidos, essa avalanche de informação sensorial que Aline agora sentia, sozinha no beco, a uns três quarteirões da boate.
O suor começou a descer, frio e quente ao mesmo tempo, pela testa e pelo busto de Aline. O que ela não sabia, porque ainda não lhe haviam dito, era que umas poucas pessoas ... incluindo ela própria ... não ficavam só naquelas alucinações moderadas, naquela larica incrível, naquela sensação de poder, volúpia e glória, viajando em memórias às vezes falsas. Ela iria descobrir isso muito em breve, mas quem iria sofrer com isso não seria ela.
Muito em breve, todas as preocupações de sua vidinha não passariam de merda pisada. E quem pisaria nesse passado, em todas as coisas que um dia lhe foram importantes, seria ela mesma.
Essas ideias subiram da mente inconsciente como um dos cheiros avassaladores que Aline sentia, mas ela ainda não tinha condições de entender nada. Uma pessoa vagava na frente da entrada do beco onde a menina se escondia das colegas. Uma onda de pânico ameaçou surgir, mas não era uma de suas amigas falsas ... um desconhecido parecia estar perdido.
A pele de Aline começou a coçar, mas não era algo irritante. Sua boca começou a ficar cheia d'água. Os cheiros do turista perdido ... eram ... ela tinha que fazer alguma coisa.
Mas ainda assim não se moveu. Alguma coisa a fazia esperar. A coceira continuava, como se os pelos do seu corpo produzissem uma leve eletricidade...
O turista continuava a caminhar. Seu cheiro se dissipava ... ela não podia perdê-lo. Não. Decidiu segui-lo. Sombras moviam-se na penumbra ao seu redor. Estava tudo distorcido, Aline caminhava como se estivesse em um filme em stop motion, mas já havia sentido isso antes, iria passar. Ouvia risadas curtas, falas ininteligíveis ...
Estava completamente molhada ... Havia chovido? As risadas pararam. Sentia como se algo corroesse suas veias, movesse por debaixo da sua pele. Um arrepio, apesar da confusão de cheiros e cores que não a agradava. Precisava sair dali... Precisava daquele aroma...
Tentou correr da maneira que pôde. mas caiu na calçada. Olhou pra baixo e viu que seu vestido havia mudado de cor. Uma sombra vinha em sua direção. Aline sorria...
… e aquele sorriso de olhos fechados era tão sublime, que o homem na entrada da viela estacou, paralisado, e esqueceu o amigo que ia marchando mais à frente, pela rua principal.
Fernando era um turista de outro continente, que havia sido seduzido pelas histórias daquela cidade labiríntica, mas que agora parecia esquecer todas as minúcias dos alertas de cautela que ouvira, de tão seduzido pela beleza e estranhamento daquela situação: uma menina trêmula, que não devia ter mais de dezoito anos, toda sua pele morena porejando de suor, cabelos levemente encaracolados, um vestido preto apertado, deixando o ombro da moça à mostra; e ela estava tropeçando pelo chão, ao mesmo tempo parecia desesperada e aliviada, seu rosto se voltou na direção de Fernando e aquele sorriso se desenhou, atraente e perturbador.
O turista nem se preocupou em avisar o amigo, que devia estar sumindo numa esquina qualquer, naquele exato momento. Sua sombra se desenhou por sobre o rosto de Aline, Fernando queria de todo coração ajudar, a moça tremia com tanta força que poderia estar passando mal a sério, e quem sabe depois o que ele poderia ganhar em troca? A natureza humana é assim, generosidade e ambição mescladas num só ato imprudente.
Infelizmente para Fernando, aquela moça não estava passando mal, apenas indo além de sua natureza humana, sem que nenhum dos dois se desse conta disso, naquele instante em que ela abriu os olhos e o moço enxergou duas pupilas de um castanho claro lindo. O instante durou pouco.
Os instantes sempre duram pouco, mas aquela cena nunca sairia da memória de Fernando, e pareceu ter durado uma eternidade: os olhos gentis se arregalaram, uma fenda negra vertical se abriu nas pupilas agora avermelhadas da menina. O rosto antes inocente assumiu um semblante bestial, de pelos surgindo dos lados do rosto, como se sempre existissem ali, e o sorriso que era angelical ficou cheio de dentes afiados. A criatura não tremia mais, se lançava sobre ele, e uma mão de garras rubras veio na direção do rosto do turista apavorado, e depois veio a boca, faminta, fatal e violenta.
Aquela mordida no braço. Era demais, a dor de estar sendo devorado vivo, estava tudo entrando num slow motion bizarro, e um torpor analgésico invadiu a alma de Fernando, e enquanto ele sentia seu braço ser roído fora, desmaiou como se forçado a isso por algum veneno misterioso.
Quando alguém o descobriu mais tarde, caído no beco, desacordado, sozinho na madrugada fria, uma laceração sangrenta cortava o rosto do rapaz, e algo muito sádico tinha sido feito a seu antebraço, se é que Fernando podia dizer que tinha mais antebraço. Os moradores daquela parte da cidade ficaram em pânico, e um rumor começou a se espalhar. Quando ele acordasse no hospital, será que conseguiria se lembrar do que aconteceu? Iria contradizer ou confirmar a lenda urbana que nascia e se espalhava como a mancha de sangue que ficou naquele beco?
Que fera seria aquela que havia esmigalhado parte do seu corpo? Mas, mais do que isso, que beleza, qual erva alucinógena, era capaz de ainda levar parte de seu juízo com ela?
***
Aline não sabia como fora parar naquele parque. O que teria acontecido? Lembrava-se do som pesado na boate, de estar envolta em trance. Dos traços invisíveis por sua perna. Da sensação de tudo tentar agarrá-la, os suores, as salivas, e do enjoo que a fez sair dali. Lembrava-se de dois vultos e um tremor repentino. Aquelas loucas …
Serrilhava ainda mais os dentes. Lembrava-se de um rosto... Sua boca encheu-se de água... e de um sabor nunca antes provado. Ela não entendia, e ria. RIA! De como se sentia poderosa mesmo estando deplorável, com sua roupa rasgada e sua pele sangrenta. Não queria voltar pra casa. Queria fugir, mas não precisava! Estava tudo ali, em si, ao seu alcance!
Cansada, deitou-se no asfalto sob um céu levemente nublado, quase sem estrelas. O vento úmido e gélido era como um sopro infantil para sua pele em brasa. Descansou assim, por eras e segundos, até as luzes aparecerem. Cobriu os olhos.
Lanternas ziguezagueavam em sua direção. Dois homens, fardados, a indagaram sobre o que fazia ali a aquela hora da noite. Aline apenas respondeu, serena e lânguida:
O INTERNAUTA PERFEITO
Passou o dia naquela solidão de monstro da lagoa
Ruminou pensamentos, regurgitou ideias e arrobas
Misturou todas e semeou eclipses e apocalipses.
Andando por sua teia, tecia um mundo melhor
Melhor para seu próprio bem, o bem maior egoísta.
Zanzou a noite inteira caçando o que fazer, abriu a CAM
Demorou demais pra descobrir os tons certos de seu violão
A toada rompeu a noite, cigarras choravam lá fora.
Andando por sua mente, maldava uma vida melhor
Melhor para sua própria vida, a vida inútil sem fim.
Exibiu postagens de curiosidades, de merda assumida.
Linkou demônios a anjos e borboletas a calangos
Tuitou horrores, vomitou na tela um amor egoísta.
Refazendo a própria mente, moldava um mundo melhor
Melhor para sua casa absurda, a casa da sobrecarga final.
Banzou a tarde inteirinha, maginando grilos e curiangos virtuais
Não sabia o que postar e postou fotos de um futuro impossível.
Curtiu a vida adoidado e cadastrou seu inferno pessoal.
Refazendo a própria vida, deletava um mundo maior
Maior que aquela negação de gente, o internauta perfeito.
segunda-feira, 29 de novembro de 2010
PELA ESTRADA ADENTRO
Tem mais de uma hora de relógio que eu tou perdido aqui nessas ruas estreitas, de calçamento antigo, paralelepípedos que dão medo de pisar. Ninguém sabe me dar informação direito, e tô já com o cu no ponto de medo que me assaltem... quinze para a meia-noite ...
De repente passa uma menina na rua. Menina, mesmo. Deve ter seus quinze anos, quem sabe. Usa uma capa de chuva de um vermelho desbotado... mas não tá chovendo. É estranho. Parece maluquice. Nem sei porquê tou olhando tanto pra essa menininha.
De repente ela pára o passo, se volta pra mim, estende uma mão magra, mas um pouco bonita (nossa, um esmalte brilhante de tão rubro) e pede:
"Moço, tem um trocado?"
"Não, menina, se eu tivesse algum dinheiro que fosse, já teria tomado um táxi. Você tá com fome, é isso?"
A menina chega mais perto e puxa o capuz vermelho. A rua estava meio escura, mas a lua agora saiu de trás das nuvens ... e agora eu noto ... não eram unhas esmaltadas, eram garras sujas de sangue, naquela mão meio peluda, como uma mulher com excesso de hormônios ...
Ela sorri para mim, uma boca carnuda, dentes afiados, olhos grandes, bem grandes, amarelados, tudo isso emoldurado num rostinho angelical:
"Claro que eu tô com fome!..."
domingo, 28 de novembro de 2010
A BUSCA PELA MORTALIDADE
KRONOS PAROU NA BEIRA DO ACOSTAMENTO e entrou no mato.
Ele era Kronos há tanto tempo que não conseguia lembrar do Mistério que o definia; deixara de ser uma sombra errante há tantas eras, que não lembrava mais o nome da casca mortal que o abrigava. A suprema ironia era a sua prisão.
Na beira da estrada, o carro começou a pingar combustível na pista.
Antes era um ser eterno, porque não era definido, uma entidade que brincava de aninhar-se num corpo humano por alguns anos, no máximo alguns séculos ... dando aí aos mortais a impressão da imortalidade ... não era mais o caso de Kronos.
Outros carros passaram ao lado daquele que vazava, cada vez mais velozes.
De todos eles, Kronos era o que merecia o nome de maldito. Enquanto todos os Vultos Vulpinos agiam como cucos, tomando o que queriam e batendo suas asas escuras para o nada informe quando se entediavam, Kronos estava preso ao seu corpo. Há quanto tempo, era difícil precisar: talvez logo depois da extinção dos Neandertais.
A gasolina misturada com álcool se espalhava pela rodovia mal-iluminada, quase uma infestação rápida.
E agora Kronos precisava desesperadamente dormir. Queria um fim para aquilo, um fim para as perspectivas limitadas, para as olheiras cada vez mais escuras. Ele queria uma luz no fim do túnel, um túnel de luz que o levasse para longe da vida mortal, mesmo que isso significasse a obliteração total, e ele nunca pudesse voltar de verdade ao reino de onde saíra há milênios.
Um carro passou derrapando na estrada.
Depois de ter acendido a centelha do vampirismo em mais uma mulher, em mais uma de suas vítimas, Kronos precisava se enterrar em meio à lama no meio do mato, tentar dormir algum tempo num lugar imundo o ajudava a ter a ilusão de que estava morto.
O motorista, extremamente hábil, conseguiu evitar a colisão com o carro estacionado no acostamento e seguiu viagem.
Não sabia quanto tempo ia passar naquele lodo quase pantanoso, a uns vinte metros da estrada. Uma chuva recente quase alagou o lugar, era tudo que Kronos queria, a companhia da água e dos vermes famintos. Suas roupas de grife afrontavam a rusticidade do local, e seus sapatos caros estavam encharcados; ele os jogou longe.
Um carro veio vindo a baixa velocidade para os padrões de uma auto-estrada, o motorista fumava distraído, com o braço para fora.
"Nemesyn, sua puta!" gritou Kronos enquanto cavava um buraco no lamaçal. "Se não fosse por você, sua louca, eu não estaria preso a esse mundo podre!" Um cervo levantou a cabeça a uns cem metros de distância, assustado com os berros de alguém que parecia humano, mas não era.
Ao passar próximo do carro parado no acostamento, de onde há alguns minutos saíra um homem bem-vestido, que não passava da roupa de um deus-vampiro desesperado, ou antes sua prisão de tempo e carne, o motorista descuidado terminou seu cigarro e jogou a ponta ainda acesa na estrada.
"Esse mundo POOOOOODRE!!!"
Um grito no mato foi abafado pelo ruído brutal de uma explosão, que incendiou o trecho da rodovia e atingiu os matagais próximos, queimando a carne imortal de um vampiro em sua BUSCA PELA MORTALIDADE ...
sábado, 20 de novembro de 2010
Lua Coroada
Raio de luz se enche de poeira
Dançando no ar
Senhora da caça se arrepende, amarga
Das vidas na cidade negra, tortuosa,
Morrendo no ar
Sujeira, nuvem de fumaça sobe da prisão.
Um dia a senhora da caça correrá
Viajando no ar
Fonte da vida em sua mente a guiará.
A lua vai acordar dentro de um raio de luz
Pairando no ar
Faceira, o sorriso nos lábios e no coração.
Dançando no ar
Senhora da caça se arrepende, amarga
Das vidas na cidade negra, tortuosa,
Morrendo no ar
Sujeira, nuvem de fumaça sobe da prisão.
Um dia a senhora da caça correrá
Viajando no ar
Fonte da vida em sua mente a guiará.
A lua vai acordar dentro de um raio de luz
Pairando no ar
Faceira, o sorriso nos lábios e no coração.
sábado, 13 de novembro de 2010
ERA UMA VEZ
De Arthur Ferreira Jr.'.
Com meus agradecimentos devotos a Maria do Carmo Zanini, Stanley Kubrick, Malu Fontes e LADY
ERA UMA TERRA DESOLADA: e elas sentavam-se à beira de uma estrada que ainda não existia.
Uma tinha uma cara de coruja amassada; às vezes, um jacaré enrugado. A outra era, talvez, menos feia, com um sorriso amargo e um nariz comprido, vermelhão quando fazia frio, azulado quando fazia calor.
Mas as duas velhas não sabiam muito bem o que era calor, nem frio. Não sei se estavam acima disso de choques térmicos e outras invenções do dia moderno, mas naquele ermo primal, um sertão ainda não devastado pela seca, mostrando as cicatrizes do degelo, eram como antigas rainhas, basiliscos antropoides pouco afetados pelas vicissitudes do mundo.
Nas cavernas próximas, rabiscos rupestres ilustravam a sabedoria e o perigo representado por aquelas duas velhas. As ancianas haviam subido a encosta com uma dificuldade que não era simulada nem real, e agora, naquele agora de há milênios, sentavam-se perto de uma encruzilhada que ainda não existia.
A gente ruiva, de sobrancelhas largas e bastas e olhar profundo, que vivia ali perto, aprendera a temer as duas figuras. Mas uma criança desse povo conhecedor, que um dia os magos do dia moderno chamarão de Neanderthal, sentia outra coisa que não medo: a curiosidade.
Sua gente estava lentamente sendo dizimada pelas hordas do Povo Invasor, e o menino ruivo subia a encosta em busca das velhas. Seu pai lhe havia advertido contra: a primeira velha era quase um bicho, que assombrava pesadelos e roubava almas das crianças; a segunda talvez fosse um pouco mais amigável, mas cruzava os céus num estranho cilindro de madeira de sândalo, e isso não podia ser natural, quase coisa do Povo Invasor.
Mas o pai, de nome Yahppeto, pouco podia dizer, mesmo tendo se juntado com uma estranha, Clymmen, da tribo que ensinava a gente ruiva a construir veículos que deslizavam sobre a água, para fugir do Povo Invasor. A mãe de Eppimeth, no silêncio da noite, o mandou falar com as velhas que iam se sentar perto da encruzilhada que ainda não existia.
A encruzilhada ainda não existia, mas a criança podia quase enxergar o movimento pelo ar: era uma zona de espíritos que dançam, e as serpentes que zombam da humanidade escorregavam travessas pelo éter. O pôr-do-sol se aproximava, e Eppimeth enxergou as duas bruxas a confabular na beira da estrada que ainda não existia.
Levantou-se Kokka, devoradora de crianças e sonhos, e apontou o dedo magro na direção de Epimeth: "Filho de Clymmen, irmão de Athhal, Mennoe e do Lucifuge, que queres aqui neste lugar bendito?"
Sentada ficou Yagga, mãe dos diabretes e dos coriscos do céu, e continuou calada. Ao longe, um estranho animal pastava, um avestruz gigante de bico cheio de dentes, relíquia das eras ainda mais primevas.
Epimeth por um momento enxergou as duas velhas como se fossem uma grande serpente, daquelas que engolem mamutes vivos, e uma aranha, daquelas que parecem caminhar no ar ao andarilhar teias invisíveis.
"Quero acabar com a guerra," disse o menino. Os olhos da criança traduziam um sofrimento estóico que iam além de seus anos.
"Apois!" murmurou a segunda velha, que ruminava pensamentos incertos. "Menino cego. A guerra é vida. Se não fôsseis enganados pela guerra, seriam enganados pelo mato que cercaria tuas vilas tão pequenas."
"Mas," continuou a primeira velha, "ele foi direto, não tentou nos enganar com ilusões que seu medo e receio podiam suscitar." Virou a cabeça torta na direção da velha sentada, que assentiu, meio contrariada. "É assim mesmo, menino?" inquiriu a velha Yagga, "você quer uma saída para a guerra?"
"Sim," disse a criança ruiva de olhos arregalados.
"Eis tua saída," gritou a velha Kokka, e de repente o menino enxergou uma moça que vinha sozinha pelo caminho que ainda naõ existia. Era uma bela moça, de compleição morena, cabelos negros e ondulados, olhos brilhantes como frutos úmidos, e pertencia ao Povo Invasor; mas ele não conseguiu notar a diferença, naquele instante lhe era ruiva como uma de sua espécie.
Um vislumbre do futuro, a terra castigada por uma raça de abutres e carniceiros vestindo a pele de homens, fumegando de veneno e calor causticante, causando um degelo ainda maior que aquele visto há pouco, quis se meter pelos olhos do rapaz; mas escolheu enxergar depois. Ali, na sua frente, só havia o desejo por Pantadora.
As velhas haviam sumido como se nunca estivessem ali, e era verdade, nunca estiveram ali. Como antes, só haviam duas figuras na beira da estrada a se encontrar: Epimeth e Pantadora, e daquele amor proibido nasceu uma raça que apesar de sua união entre tão diferentes, ainda gera cisão, guerra e morte; e daquele amor sincero e incompreendido por seus próprios filhos, nasceram todos os males do mundo.
As duas velhas que ainda caminham pelas estradas e encruzilhadas que já existem, rindo-se da tolice de seus netos humanos, que ainda hoje, faça sol ou faça chuva, faça guerra ou faça paz, as perseguem em memórias, sonhos e pesadelos.
Com meus agradecimentos devotos a Maria do Carmo Zanini, Stanley Kubrick, Malu Fontes e LADY
ERA UMA TERRA DESOLADA: e elas sentavam-se à beira de uma estrada que ainda não existia.
Uma tinha uma cara de coruja amassada; às vezes, um jacaré enrugado. A outra era, talvez, menos feia, com um sorriso amargo e um nariz comprido, vermelhão quando fazia frio, azulado quando fazia calor.
Mas as duas velhas não sabiam muito bem o que era calor, nem frio. Não sei se estavam acima disso de choques térmicos e outras invenções do dia moderno, mas naquele ermo primal, um sertão ainda não devastado pela seca, mostrando as cicatrizes do degelo, eram como antigas rainhas, basiliscos antropoides pouco afetados pelas vicissitudes do mundo.
Nas cavernas próximas, rabiscos rupestres ilustravam a sabedoria e o perigo representado por aquelas duas velhas. As ancianas haviam subido a encosta com uma dificuldade que não era simulada nem real, e agora, naquele agora de há milênios, sentavam-se perto de uma encruzilhada que ainda não existia.
A gente ruiva, de sobrancelhas largas e bastas e olhar profundo, que vivia ali perto, aprendera a temer as duas figuras. Mas uma criança desse povo conhecedor, que um dia os magos do dia moderno chamarão de Neanderthal, sentia outra coisa que não medo: a curiosidade.
Sua gente estava lentamente sendo dizimada pelas hordas do Povo Invasor, e o menino ruivo subia a encosta em busca das velhas. Seu pai lhe havia advertido contra: a primeira velha era quase um bicho, que assombrava pesadelos e roubava almas das crianças; a segunda talvez fosse um pouco mais amigável, mas cruzava os céus num estranho cilindro de madeira de sândalo, e isso não podia ser natural, quase coisa do Povo Invasor.
Mas o pai, de nome Yahppeto, pouco podia dizer, mesmo tendo se juntado com uma estranha, Clymmen, da tribo que ensinava a gente ruiva a construir veículos que deslizavam sobre a água, para fugir do Povo Invasor. A mãe de Eppimeth, no silêncio da noite, o mandou falar com as velhas que iam se sentar perto da encruzilhada que ainda não existia.
A encruzilhada ainda não existia, mas a criança podia quase enxergar o movimento pelo ar: era uma zona de espíritos que dançam, e as serpentes que zombam da humanidade escorregavam travessas pelo éter. O pôr-do-sol se aproximava, e Eppimeth enxergou as duas bruxas a confabular na beira da estrada que ainda não existia.
Levantou-se Kokka, devoradora de crianças e sonhos, e apontou o dedo magro na direção de Epimeth: "Filho de Clymmen, irmão de Athhal, Mennoe e do Lucifuge, que queres aqui neste lugar bendito?"
Sentada ficou Yagga, mãe dos diabretes e dos coriscos do céu, e continuou calada. Ao longe, um estranho animal pastava, um avestruz gigante de bico cheio de dentes, relíquia das eras ainda mais primevas.
Epimeth por um momento enxergou as duas velhas como se fossem uma grande serpente, daquelas que engolem mamutes vivos, e uma aranha, daquelas que parecem caminhar no ar ao andarilhar teias invisíveis.
"Quero acabar com a guerra," disse o menino. Os olhos da criança traduziam um sofrimento estóico que iam além de seus anos.
"Apois!" murmurou a segunda velha, que ruminava pensamentos incertos. "Menino cego. A guerra é vida. Se não fôsseis enganados pela guerra, seriam enganados pelo mato que cercaria tuas vilas tão pequenas."
"Mas," continuou a primeira velha, "ele foi direto, não tentou nos enganar com ilusões que seu medo e receio podiam suscitar." Virou a cabeça torta na direção da velha sentada, que assentiu, meio contrariada. "É assim mesmo, menino?" inquiriu a velha Yagga, "você quer uma saída para a guerra?"
"Sim," disse a criança ruiva de olhos arregalados.
"Eis tua saída," gritou a velha Kokka, e de repente o menino enxergou uma moça que vinha sozinha pelo caminho que ainda naõ existia. Era uma bela moça, de compleição morena, cabelos negros e ondulados, olhos brilhantes como frutos úmidos, e pertencia ao Povo Invasor; mas ele não conseguiu notar a diferença, naquele instante lhe era ruiva como uma de sua espécie.
Um vislumbre do futuro, a terra castigada por uma raça de abutres e carniceiros vestindo a pele de homens, fumegando de veneno e calor causticante, causando um degelo ainda maior que aquele visto há pouco, quis se meter pelos olhos do rapaz; mas escolheu enxergar depois. Ali, na sua frente, só havia o desejo por Pantadora.
As velhas haviam sumido como se nunca estivessem ali, e era verdade, nunca estiveram ali. Como antes, só haviam duas figuras na beira da estrada a se encontrar: Epimeth e Pantadora, e daquele amor proibido nasceu uma raça que apesar de sua união entre tão diferentes, ainda gera cisão, guerra e morte; e daquele amor sincero e incompreendido por seus próprios filhos, nasceram todos os males do mundo.
As duas velhas que ainda caminham pelas estradas e encruzilhadas que já existem, rindo-se da tolice de seus netos humanos, que ainda hoje, faça sol ou faça chuva, faça guerra ou faça paz, as perseguem em memórias, sonhos e pesadelos.
sexta-feira, 12 de novembro de 2010
CUCO 333
De Arthur Ferreira Jr.'.
Em honra a Neil Gaiman e escárnio e admiração a Wagner de Holanda
A mocinha no topo do viaduto duvidou de si mesma e tentou não olhar para o sol. Cuco. A cabeça quase rodava; a vertigem tentava pôr o pê pela fresta daquela porta oculta em sua mente, mas ela conseguiu trancar a porta a tempo.
Vagões e mais vagões do metrô estavam à sua vista. Parados, quentando sol como lagartos enfileirados, sem uso até que a obra de mais de dez anos se completasse. E ela também esperava que algo se completasse: era um processo lento e quase tão doloroso. Dentro de sua mente, um ninho.
No ninho, uma mente invasora. O invasor reclamava contra o sol. Reclamava contra o perigo. Ele não queria morrer antes de nascer de verdade ... antes de tomar o corpo da garota para si.
O invasor estava enganado: quando o ovo chocasse no ninho, ele e a garota seriam uma coisa só. E aí, seria irreversível. Cuco.
Às vezes o processo era lento, como no caso da garota na beira do viaduto. Às vezes uma paixão ou um ódio muito forte aceleravam tudo: o vampiro, o vulto vulpino não precisava beber seu sangue para pôr seus ovos de cuco dentro dela, desde que houvesse um mínimo da centelha e um nome. Cuco. Um nome que ressoasse forte dentro da cabeça da garota, mesmo que ela não soubesse disso: nomes como Belial. Dionísio. Samyhazah. Amanozako. Elegbara. Nyarlathotep. Laozi. Flamel. Melkor. Saci Sacura. Abraxas-Sabaoth. Malkovich. Tehuti. Loki. Flagg. Sun Wukong. Mantus. Angra Mainyu. Smith. Vucab Caqix. Yurugu.
Não importava a origem do nome, se ele soasse muito forte, o vampiro o retirava e, no lugar, no buraco deixado na mente da garota, ele faria seu ninho e colocaria sua semente. Cuco.
A garota subindo na borda do viaduto tinha mais três dias, e na terceira noite ela seria outra pessoa. Não seria mais uma pessoa, porque uma pessoa tem identidade. Cuco. A palavra pessoa vem de persona, aquela máscara teatral que ri ou chora. Cuco. A partir da terceira noite, chorar ou rir seriam a mesma coisa. Ela se alimentaria de risos, lágrimas, suor e sangue.
A garota que caía do viaduto sentiu estar livre por poucos segundos de queda. Cuco.
Devemos lamentar pelo espetacular nascimento em meio à queda livre? Não, nunca lamentemos uma bela cena, mesmo que trágica. Cuco. Mesmo que hoje uma criatura horrenda, grotesca, com os ossos esfarelados e a pele cheia de cotocos de asas, de penas afiadas, espreite as ruas de um subúrbio da cidade, a filha de Kronos, fugida há três dias do hospital para onde foi levada, antes do necrotério a receber.
Três dias. Cuco.
Em honra a Neil Gaiman e escárnio e admiração a Wagner de Holanda
A mocinha no topo do viaduto duvidou de si mesma e tentou não olhar para o sol. Cuco. A cabeça quase rodava; a vertigem tentava pôr o pê pela fresta daquela porta oculta em sua mente, mas ela conseguiu trancar a porta a tempo.
Vagões e mais vagões do metrô estavam à sua vista. Parados, quentando sol como lagartos enfileirados, sem uso até que a obra de mais de dez anos se completasse. E ela também esperava que algo se completasse: era um processo lento e quase tão doloroso. Dentro de sua mente, um ninho.
No ninho, uma mente invasora. O invasor reclamava contra o sol. Reclamava contra o perigo. Ele não queria morrer antes de nascer de verdade ... antes de tomar o corpo da garota para si.
O invasor estava enganado: quando o ovo chocasse no ninho, ele e a garota seriam uma coisa só. E aí, seria irreversível. Cuco.
Às vezes o processo era lento, como no caso da garota na beira do viaduto. Às vezes uma paixão ou um ódio muito forte aceleravam tudo: o vampiro, o vulto vulpino não precisava beber seu sangue para pôr seus ovos de cuco dentro dela, desde que houvesse um mínimo da centelha e um nome. Cuco. Um nome que ressoasse forte dentro da cabeça da garota, mesmo que ela não soubesse disso: nomes como Belial. Dionísio. Samyhazah. Amanozako. Elegbara. Nyarlathotep. Laozi. Flamel. Melkor. Saci Sacura. Abraxas-Sabaoth. Malkovich. Tehuti. Loki. Flagg. Sun Wukong. Mantus. Angra Mainyu. Smith. Vucab Caqix. Yurugu.
Não importava a origem do nome, se ele soasse muito forte, o vampiro o retirava e, no lugar, no buraco deixado na mente da garota, ele faria seu ninho e colocaria sua semente. Cuco.
A garota subindo na borda do viaduto tinha mais três dias, e na terceira noite ela seria outra pessoa. Não seria mais uma pessoa, porque uma pessoa tem identidade. Cuco. A palavra pessoa vem de persona, aquela máscara teatral que ri ou chora. Cuco. A partir da terceira noite, chorar ou rir seriam a mesma coisa. Ela se alimentaria de risos, lágrimas, suor e sangue.
A garota que caía do viaduto sentiu estar livre por poucos segundos de queda. Cuco.
Devemos lamentar pelo espetacular nascimento em meio à queda livre? Não, nunca lamentemos uma bela cena, mesmo que trágica. Cuco. Mesmo que hoje uma criatura horrenda, grotesca, com os ossos esfarelados e a pele cheia de cotocos de asas, de penas afiadas, espreite as ruas de um subúrbio da cidade, a filha de Kronos, fugida há três dias do hospital para onde foi levada, antes do necrotério a receber.
Três dias. Cuco.
quinta-feira, 11 de novembro de 2010
EXPOSTA
De Arthur Ferreira Jr.'.
Para a voz e a visão de Charlene
Respirava fundo e se sentia exposta.
Entre as duas placas de vidro, transparentes como uma alma que se acha sincera.
Toda uma carga de opostos se dissolvia naquele corredor estreito, onde ela despia suas máscaras e cantava Matanza, bem alto, quase destruindo a fragilidade dos vidro que a separavam das salas onde trabalhava. Aquele lugar era como o afunilado de uma ampulheta: o tempo parava, e ela gritava.
Mesmo que fosse só na mente que se revoltava do seu próprio silêncio numa das salas, e das palavras vazias na outra.
Aquele lugar era um estado de espírito, era como sua cintura, unindo quadris que se acham livres e torso que se acha escondido demais naquele momento.
Mas não adiantava ficar por ali muito tempo, e ela se movia: o corredor era fugaz e o vidro era translúcido.
Um dia aquele prédio será todo como o corredor: e seu canto e grito e gargalhada dominará o ambiente; e seremos todos mais felizes.
Para a voz e a visão de Charlene
Respirava fundo e se sentia exposta.
Entre as duas placas de vidro, transparentes como uma alma que se acha sincera.
Toda uma carga de opostos se dissolvia naquele corredor estreito, onde ela despia suas máscaras e cantava Matanza, bem alto, quase destruindo a fragilidade dos vidro que a separavam das salas onde trabalhava. Aquele lugar era como o afunilado de uma ampulheta: o tempo parava, e ela gritava.
Mesmo que fosse só na mente que se revoltava do seu próprio silêncio numa das salas, e das palavras vazias na outra.
Aquele lugar era um estado de espírito, era como sua cintura, unindo quadris que se acham livres e torso que se acha escondido demais naquele momento.
Mas não adiantava ficar por ali muito tempo, e ela se movia: o corredor era fugaz e o vidro era translúcido.
Um dia aquele prédio será todo como o corredor: e seu canto e grito e gargalhada dominará o ambiente; e seremos todos mais felizes.
Eu Era o Trauma
De Arthur Ferreira Jr.'.
Dedicado ao Caian Nevoeiro de 2025
Agradecimentos Especiais a Robert W. Chambers, Ambrose Bierce, August Derleth e H. P. Lovecraft
QUANDO EU TINHA 7 ANOS, me disseram que criança é mais vulnerável a traumas.
Eu nunca tinha ouvido falar de trauma de infância. Na verdade, eu nem sabia o que era infância direito; a palavra "infância", porque sentir a infância, eram outros quinhentos. Imagina, então, trauma. O que era trauma?
Marina tinha 13 anos e sabia o que era trauma; ela me explicou.
Fazendo isso ela deu vida àquela criatura chamado trauma: era pior que bicho-papão, e eu e todas as crianças éramos presas fáceis desse monstro.
O trauma começou a aparecer não só debaixo da cama, como nas esquinas das ruas, nos rostos dos estranhos, dos desconhecidos que minha mãe dizia que eu não devia responder.
O trauma tinha milhares de rostos. Usava milhões de máscaras diferentes: a moça drogada que sentava no meio-fio; o mendigo que parecia ter mais de dois olhos quando eu olhava para ele de lado; aquele senhor com cara de empresário, que tinha uma mancha avermelhada esquisita na manga do paletó; a camelô que sorria sozinha enquanto guardava as mercadorias; o síndico do prédio que pedia para conversar com meu pai, a sós; a babá de meu irmão mais novo; o padre.
O cachorro do vizinho tinha cheiro de carniça. O gato que tomava sol na frente da casa passou a se empoleirar no muro, cheio de cacos de vidro, e dali de cima me fitava, sem piscar. O matinho detrás de casa passou a ser frequentado por todo tipo de inseto e cobra. Aquele atalho para a escola já não era mais seguro, porque tinha uma cabeça espetada numa espécie de poste pontiagudo, no meio de uma encruzilhada sombria. As névoas vinham e voltavam nos limites da cidade.
Um menino desconhecido um dia ficou parado na frente do meu colégio, quando todo mundo já tinha ido embora e meus pais estavam atrasados. Ele usava uma máscara amarelada. Não era Dia das Bruxas, nem estava perto. Ele não quis as guloseimas que eu ofereci, nem respondeu quando eu perguntei que travessura ele estava aprontando com aquela máscara.
Na verdade, ele respondeu. Ele só demorou uns cinco minutos.
Eu já tinha esquecido da pergunta, quando ele disse:
"Não é uma máscara."
Foi então que eu soube. Ele estava ali. Era o Trauma. Não me lembro do que aconteceu depois. Acho que acordei no dia seguinte, na minha cama. Ou foi de madrugada, na cama de meus pais, tremendo de medo?
Eu não sei onde ele se esconde. Depois daquele dia eu não enxerguei mais as coisas que rastejavam e espreitavam e rondavam e empurravam meus pensamentos e minha coragem para debaixo de um tapete invisível. Eu estava curado. O menino da máscara me curou.
Mas ... espere. Como só pude me lembrar disso agora?
Não era uma máscara.
Não.
Dedicado ao Caian Nevoeiro de 2025
Agradecimentos Especiais a Robert W. Chambers, Ambrose Bierce, August Derleth e H. P. Lovecraft
QUANDO EU TINHA 7 ANOS, me disseram que criança é mais vulnerável a traumas.
Eu nunca tinha ouvido falar de trauma de infância. Na verdade, eu nem sabia o que era infância direito; a palavra "infância", porque sentir a infância, eram outros quinhentos. Imagina, então, trauma. O que era trauma?
Marina tinha 13 anos e sabia o que era trauma; ela me explicou.
Fazendo isso ela deu vida àquela criatura chamado trauma: era pior que bicho-papão, e eu e todas as crianças éramos presas fáceis desse monstro.
O trauma começou a aparecer não só debaixo da cama, como nas esquinas das ruas, nos rostos dos estranhos, dos desconhecidos que minha mãe dizia que eu não devia responder.
O trauma tinha milhares de rostos. Usava milhões de máscaras diferentes: a moça drogada que sentava no meio-fio; o mendigo que parecia ter mais de dois olhos quando eu olhava para ele de lado; aquele senhor com cara de empresário, que tinha uma mancha avermelhada esquisita na manga do paletó; a camelô que sorria sozinha enquanto guardava as mercadorias; o síndico do prédio que pedia para conversar com meu pai, a sós; a babá de meu irmão mais novo; o padre.
O cachorro do vizinho tinha cheiro de carniça. O gato que tomava sol na frente da casa passou a se empoleirar no muro, cheio de cacos de vidro, e dali de cima me fitava, sem piscar. O matinho detrás de casa passou a ser frequentado por todo tipo de inseto e cobra. Aquele atalho para a escola já não era mais seguro, porque tinha uma cabeça espetada numa espécie de poste pontiagudo, no meio de uma encruzilhada sombria. As névoas vinham e voltavam nos limites da cidade.
Um menino desconhecido um dia ficou parado na frente do meu colégio, quando todo mundo já tinha ido embora e meus pais estavam atrasados. Ele usava uma máscara amarelada. Não era Dia das Bruxas, nem estava perto. Ele não quis as guloseimas que eu ofereci, nem respondeu quando eu perguntei que travessura ele estava aprontando com aquela máscara.
Na verdade, ele respondeu. Ele só demorou uns cinco minutos.
Eu já tinha esquecido da pergunta, quando ele disse:
"Não é uma máscara."
Foi então que eu soube. Ele estava ali. Era o Trauma. Não me lembro do que aconteceu depois. Acho que acordei no dia seguinte, na minha cama. Ou foi de madrugada, na cama de meus pais, tremendo de medo?
Eu não sei onde ele se esconde. Depois daquele dia eu não enxerguei mais as coisas que rastejavam e espreitavam e rondavam e empurravam meus pensamentos e minha coragem para debaixo de um tapete invisível. Eu estava curado. O menino da máscara me curou.
Mas ... espere. Como só pude me lembrar disso agora?
Não era uma máscara.
Não.
quarta-feira, 10 de novembro de 2010
ELOGIO DO ALCOOLISMO
Por Jorginho Demó
Ora, hoje estou sóbrio. Logo, irrito-me.
Porque não posso pôr uma mísera gota’rdente
Da água estonteante em meus lábios sequiosos?
Ficarás tonto, dizem. Ficarás inebriado.
Creio porém que o estado de inebriação é superior à
Lucidez que nos prende às firmes amarras da razão.
Dê-me logo esta garrafa plena de ilusões!
Bebo a sôfregos goles. Sinto escaldar-me a garganta.
Suficiente contudo não é, quero e posso tomar mais
E levo o resto da maldita noite a beber, a beber,
Potencialmente aumentando o tamanho de meu ventre,
Já inchado por esta gula, esta ânsia abominável.
Logo estou bêbado. Logo estou bêbado ainda mais.
Impulsionado pela própria turvação do vinho.
Passam-se alguns minutos. Não agüento mais continuar.
Peço que chamem um táxi, preciso sair daqui.
Corro às ruas antes de ser atendido, perturbado.
Caio na sarjeta, percebo os momentos finais.
Abstraio-me das centelhas a piscar antes que venha
O coma alcoólico, o esperado torpor, a sublimação.
Me deixem morrer. Não me socorram. Adeus.
Dedicado a uma figura que passou em minha vida, em 12/07/2004
Jorginho Demó é um heterônimo de Arthur Ferreira Jr.'.
Ora, hoje estou sóbrio. Logo, irrito-me.
Porque não posso pôr uma mísera gota’rdente
Da água estonteante em meus lábios sequiosos?
Ficarás tonto, dizem. Ficarás inebriado.
Creio porém que o estado de inebriação é superior à
Lucidez que nos prende às firmes amarras da razão.
Dê-me logo esta garrafa plena de ilusões!
Bebo a sôfregos goles. Sinto escaldar-me a garganta.
Suficiente contudo não é, quero e posso tomar mais
E levo o resto da maldita noite a beber, a beber,
Potencialmente aumentando o tamanho de meu ventre,
Já inchado por esta gula, esta ânsia abominável.
Logo estou bêbado. Logo estou bêbado ainda mais.
Impulsionado pela própria turvação do vinho.
Passam-se alguns minutos. Não agüento mais continuar.
Peço que chamem um táxi, preciso sair daqui.
Corro às ruas antes de ser atendido, perturbado.
Caio na sarjeta, percebo os momentos finais.
Abstraio-me das centelhas a piscar antes que venha
O coma alcoólico, o esperado torpor, a sublimação.
Me deixem morrer. Não me socorram. Adeus.
Dedicado a uma figura que passou em minha vida, em 12/07/2004
Jorginho Demó é um heterônimo de Arthur Ferreira Jr.'.
terça-feira, 9 de novembro de 2010
LICANTROPIA
Agradecimentos ao poeta português Gomes Leal por ter escrito um poema de nome idêntico a este, e outro de nome idêntico ao meu nome de net mais comum, @publicano; tudo isto acabei de saber agora.
Quando a carne se revolta em convulsões malignas,
Fazendo-me contorcer de dor em meio ao caos,
Metamorfoseando minha pele que embora impura
Ainda é humana, abandono a postura dos meros mortais
E torno-me um lobo faminto de caça nos campos urbanos.
De nada adianta a prata ou o acônito contra mim,
Estou acima, pairando sobre estas fraquezas,
Somente uma coisa eu temo, e esta escondo-a
No mais profundo recesso de minha animalidade:
O amor daqueles que em vão tentam me compreender!
Arthur Ferreira Jr.'., em 10/11/2004
Quando a carne se revolta em convulsões malignas,
Fazendo-me contorcer de dor em meio ao caos,
Metamorfoseando minha pele que embora impura
Ainda é humana, abandono a postura dos meros mortais
E torno-me um lobo faminto de caça nos campos urbanos.
De nada adianta a prata ou o acônito contra mim,
Estou acima, pairando sobre estas fraquezas,
Somente uma coisa eu temo, e esta escondo-a
No mais profundo recesso de minha animalidade:
O amor daqueles que em vão tentam me compreender!
Arthur Ferreira Jr.'., em 10/11/2004
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