sábado, 25 de dezembro de 2010

Noite Clara: O HOMEM DE CINZA



Agradecimentos a Vagner Campos, que avaliou o cenário da Noite Clara, e a Robert W. Chambers, pela dádiva do Sígno Amarelo.


DE REPENTE, TUDO FICOU ESCURO. NÃO HAVIA NADA LÁ, na mente daquele homem que passava pela rua. Um homem de aparência comum, usando roupas comuns, pouco notáveis, enfatizando suas feições ainda menos notáveis. Ele parecia ser um zé-ninguém que se confundia na multidão … mas isso era impossível. Se eu não sentia nada em sua mente, isso já o tornava perigoso.

Quando a Noite Clara caiu sobre nós, décadas atrás, bilhões de pessoas não aguentaram o choque de seus próprios poderes latentes, estourando suas mentes e cérebros. Outras pessoas entraram num frenesi de loucura e nisso, muitos foram mortos, muito foi perdido. Outras ainda, uma pequena minoria, da qual faço parte, sobreviveu e desenvolveu terríveis poderes psíquicos … e agora toda a população da Terra é composta de paranormais, todos demonstrando vários poderes mentais diferentes, todos … exceto os outros sobreviventes.

A mente daquele homem que caminhava em meio à multidão era igual à de um desses outros sobreviventes. O problema é que todos esses outros estão em coma. Mantidos em animação suspensa, alimentados por máquinas, com pouquíssima esperança de acordarem de um sono sem volta. E o homem sem mente continuava andando.

Eu o segui por alguns quarteirões … precisava falar com ele. Quando fui chegando mais perto, e a multidão ali – numa das poucas metrópoles que restaram no mundo – foi  se dissipando, a vontade de falar com o homem foi diminuindo. Ele continuou andando pelas vielas mais podres da cidade, e eu o seguia, sem coragem de abordá-lo.

Logo estávamos os dois perdidos em ruas cada vez mais estranhas, ou pelo menos eu estava muito confuso. Não sabia para onde o homem estava indo. Começamos a entrar numa das partes mais violentas da cidade, sujeitos mal-encarados me observavam a todo momento, vendedores de peças usadas e comida exótica me olhavam furtivamente … e o homem sem mente continuava andando, ninguém parecia notar sua presença, mesmo que ali, seu terno cinzento já estivesse destoando do cenário.

Comecei a me sentir extremamente paranoico. Que queriam aquelas mulheres que cochichavam nas janelas das casas quase em ruínas? O que eram aquelas bandeiras vermelhas esfrangalhadas, penduradas num poste quase derrubado? Que fazia o símbolo amarelo, o logo da multinacional Carcosa, entalhado no capacho de um dos casebres?

Logo, o homem sem mente virou por esquinas mais desabitadas, e entrávamos num setor de prédios arruinados, uma lembrança dos tumultos, loucuras e destruição da Noite Clara. Num certo ponto, senti um cheiro de almíscar, vindo de um janela quebrada; era bem forte. Ao olhar para a janela, vi o símbolo amarelo de novo. Pichado no que restava do vidro daquela janela. Amarelo forte, quase fluorescente.

Respirei fundo, o logo da Carcosa nunca havia me dado calafrios, mas aquilo na janela me fez parar o ritmo da caminhada. Meu coração acelerado, um pouco de taquicardia, quando fui olhar de novo o homem que seguia, ele havia sumido …



E não houve como encontrá-lo. Era inútil. Me veio a ideia insana de berrar seu nome naquele lugar desolado, mas eu não sabia o nome do homem sem mente. Se não tinha mente, desafiava a compreensão da minha telepatia, não devia ter nome … vaguei, quase em desespero, pelo setor desabitado, evitando as matilhas de cães que rondavam a área. Já ia anoitecendo. E eu precisava denunciar a existência daquela anomalia – daquela aberração, devia ser uma daquelas aberrações poderosíssimas, caçada pelo governo, por patrulhas especiais poderosas, mas não tão insanas quanto as aberrações. Tinha que me reportar a uma dessas patrulhas. Mas eu já havia sido alvo do recrutamento deles, minha telepatia era forte demais, meu lugar só podia ser dentro de uma patrulha de caçadores de aberrações. Qualquer outro lugar despertaria desconfiança demais, e eu seria considerado um inconveniente ou um inimigo. Felizmente, um oficial de patrulha amigo conseguiu me acobertar. Fiquei perdido nas memórias daquela época, enquanto vagava perdido nas ruas sem uma viva alma.

No dia seguinte, alvorecia, e eu consegui chegar a uma parte habitada da cidade. Ninguém estava mais prestando aquela atenção que eu percebi quando seguia o homem de cinza … sim, era um homem vestindo um terno cinza. E eu precisava … precisava falar com aquele homem … mas por quê? Algo sobre uma denúncia … não sei mais. Acho que o homem tinha uma denúncia a me fazer, algo a ser publicado pelo jornal onde trabalho … aquele homem de cinza chegou a falar comigo?

Por que não consigo lembrar? Ele me disse alguma coisa importante? O que eu estava fazendo naquela periferia labiríntica? A tal denúncia tinha algo a ver com a violência nos bairros mais pobres. Só podia ter a ver com os contrabandistas de óleo. Me sentei numa soleira de porta, pensativo, tentando lembrar. O que era mesmo que eu estava fazendo ali?

As pessoas passavam pela rua, eu coçava a cabeça, roía unhas, e ninguém me notava, minha telepatia me dava certeza disso. Não é para se admirar, porque, afinal de contas, quem era eu?

Já não sabia mais.

E quando uma esmola caiu no meu colo, não estranhei … agradeci, estava com tanta fome! Aquela moeda de periferia podia me render o almoço, se eu fosse insistente com os passantes, poderia ter meu jantar garantido, e aquela soleira de porta era confortável, o capacho macio,  já poderia dormir ali sem problemas, ninguém diria nada, aliás, por que diriam? Todos me conheciam, eu e minha roupa cinza esfarrapada.

Eu dormia ali todos os dias, há muitos anos, não era mesmo?

3 comentários:

  1. IMAGENS E ILUSTRAÇÕES, FONTES E AUTORES

    1
    Instalação e fotografia de Peter Root
    http://www.peterroot.com/index.php?/projects/ephemicropolis/

    2
    Quadro de Steven Archer, "The Yellow Sign"
    http://ego-likeness.livejournal.com/900238.html?thread=6034318

    3
    Pintura em parede na Inglaterra, de Christian Guemy
    http://www.zupi.com.br/index.php/site_zupi/view/a_cara_das_ruas/

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  2. Esse conto dá um novo sentido a Nietzichie a lutar contra demônios temendo se tornar um...

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  3. interessante...afinal o homem de cinza, pode ser um de nós, vc não acha? ou ele mesmo, associado a nós mesmo..q loucura..rsrrsrs
    R. Tavares

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