terça-feira, 1 de março de 2011

Vindos das Criptas da Memória

por Clark Ashton Smith
em 1917
Traduzido por Arthur Ferreira Jr.'. em 2011





Texto retirado de "Ébano e Cristal" ("Ebony and Crystal")





Eras e eras atrás, numa época cujos mundos maravilhosos já haviam ruído, e cujos poderosos sóis eram menos que sombra, habitava eu uma estrela cujo curso, já sem retorno, em sua decadência vinda dos altos céus do passado, estava cada vez mais aproximando-se de um abismo onde, diziam os astrônomos, seu ciclo imemorial encontraria um fim sombrio e desastroso.

    Ah, era estranha aquela estrela esquecida em seu golfo – quão mais estranha que qualquer sonho dos sonhadores nas esferas do hoje, ou que qualquer visão que já assomou os visionários, em sua retrospectiva do passado sideral! Ali, através de ciclos de história cujos registros empilhados, escritos em bronze, não podiam mais ser enumerados, os mortos vieram a superar, em definitivo, os vivos. E, construídas de uma pedra indestrutível, salvo na fornalha dos sóis, suas cidades cresciam ao lado das dos vivos, como as metrópoles prodigiosas dos Titãs, com muralhas que conjuravam sombras sobre as vilas próximas. E sobre tudo aquilo, havia a cripta fúnebre e sombria dos enigmáticos céus – um domo de sombras infinitas, onde o triste sol, suspenso como uma lâmpada enorme e solitária, não conseguia iluminar, e extinguindo suas chamas em face do inevitável, enviava um raio confuso e desesperador sobre os remotos e vagos horizontes, e as vistas ocultas eram ilimitadas, naquela terra visionária.



Éramos um povo sombrio, secreto e muito tristonho – nós, que habitávamos sob o céu do crepúsculo eterno, penetrado por altíssimas torres e obeliscos do passado. Em nosso sangue, sentia-se o calafrio da antiga noite do tempo; e nossos pulsos enfraqueciam com a insidiosa presciência do langor do Lethe. Sobre nossas cortes e campos, como vampiros invisíveis e letárgicos, nascidos dos mausoléus, ascendiam e flutuavam as horas negras, com asas que destilavam uma languidez maléfica, nascida do lamento sombrio e do desespero dos ciclos encerrados. Os próprios céus eram carregados de opressão, e respirávamos sobre eles como se num sepulcro, para sempre selado, com todas as estagnações da corrupção e da lenta decomposição, e da escuridão impenetrável, a não ser aos vermes que roem.

    Vivíamos de forma vaga, e amávamos como se ama nos sonhos – os tênues e místicos sonhos que flutuam sobre o limiar do sono inescrutável. Sentíamos por nossas mulheres, com sua beleza pálida e espectral, o mesmo desejo que os mortos podiam sentir pelos lírios fantasmagóricos dos campos do Hades. Nossos dias se passavam num vagar por entre as ruínas das cidades solitárias e imemoriais, cujos palácios de cobre corroído, e ruas que corriam entre linhas de obeliscos gravados a ouro, repousavam frágeis e macabros àquela luz mortiça, ou eram afogados para todo o sempre, em meio aos mares da sombra estagnante; cidades cujas igrejas vastas e construídas com o ferro preservavam sua aura de mistério e fascínio primordial, a partir da qual os simulacros de deuses esquecidos há séculos buscavam, com olhos inalteráveis, nos céus desesperançosos, a noite pressagiada, o esquecimento definitivo. Languidamente, cultivávamos nosso jardins, cujos lírios cinzentos ocultavam um perfume necromântico, que tinha o poder de evocar-nos para os sonhos mortos e espectrais do passado. Ou, errando pelos campos cinzas do outono perene, buscávamos as raras e místicas margaridas imortais, cujas folhas sombrias e pétalas pálidas, que floresciam debaixo de salgueiros de folhagem lívida e velada; ou cobertas por um orvalho doce e narcótico, pelo silêncio fluente das águas aquerônticas.

    E um por um, morremos, e nos perdemos na poeira do tempo acumulado. Percebemos os anos como um passar de sombras, e conhecemos a própria morte como o render-se do crepúsculo à noite.



Leia o original em inglês em:
http://en.wikisource.org/wiki/From_the_Crypts_of_Memory

2 comentários:

  1. IMAGENS E ILUSTRAÇÕES, FONTES E AUTORES

    1
    Wrinkles of the City (As rugas da Cidade), intervenção de JR
    http://www.zupi.com.br/index.php/site_zupi/view/jr_em_los_angeles/

    2
    Ilustração da Tóquio Pós-Apocalíptica, de Tokyogenso
    http://tokyogenso.deviantart.com/
    http://www.zupi.com.br/index.php/site_zupi/view/toquio_em_ruinas/

    3
    Da série fotográfica Desert Indoors, de Alvaro Sanchez-Montañes
    http://www.zupi.com.br/index.php/site_zupi/view/deserto_entre_quatro_paredes/
    http://www.alvarosh.es/

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  2. http://dominiopublicano.blogspot.com/2011/09/vindos-das-criptas-da-memoria.html

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