AS TRÊS PRODÍGIOS CAMINHAVAM CAUTELOSAMENTE pela ravina, seguindo as indicações deixadas no terreno por Azif: um rastro óbvio ali, um grafito rabiscado no paredão crescente. Charya teve a impressão de que o rapaz encontrava-se nas bordas do alcance de sua telepatia – mas ainda assim o sentia com mais vividez do que podia detectar a presença de Euro.
Mais cedo, antes de saírem do acampamento contrabandista para a primeira missão designada pelo Grão-Mestre, Charya reuniu a todos e conseguiu estabelecer aquele elo telepático forte – ela ainda não sabia o quanto aquela ligação iria durar, mas seria útil tanto para comunicação quanto para coordenação em caso de batalha.
A maior dificuldade em estabelecer o elo havia sido com Berya (óbvio, dado que se conheciam há pouco tempo e a natureza um tanto retraída da Prodígio Azul) e – isso a preocupava – com Euro. Natural que sentisse Azif com mais força, já que guardavam dentro de si aquele amor não-concretizado, mas Euro parecia especialmente desfocado, desconectado... deprimido, talvez. Quanto a Dova, bem, a menina tornava tudo mais fácil, era uma catalisadora.
Charya a princípio imaginou que os acontecimentos durante a semana em coma haviam revelado a Euro mais sobre si mesmo do que ele gostaria de saber. As memórias vagas de ser uma espada – uma espada como a katana que empunhava naquele momento, enquanto as três desviavam-se das rochas que atravancavam o caminho – nas mãos de Dova mostravam a Charya uma luta sem sentido de Euro contra o próprio meio-irmão, e o murro descomunal que atingira a Prodígio Branca no rosto.
As cenas haviam acontecido dentro da mente da própria Charya, claro, mas a realidade daquilo tudo era inegável para os três combatentes, e a Prodígio Vermelha saboreava devagar o paradoxo de que, apesar dela também ter estado lá, na forma de espada, e de toda a aventura ter se desenrolado dentro daquele espaço em branco – espaço lethean, como o chamavam os neander – suas memórias eram mais tênues e ela não tinha noção direta do que havia acontecido com Berya e Euro.
Euro! De repente, aquela presença fraca do meio-neander, na orla extrema de sua percepção telepática, tornou-se vívida e pulsante – Charya enxergava sinestesicamente o ponto amarelo-claro virar um dourado reluzente, e sair apressado do alcance da mente da líder dos Prodígios.
Rápido! Vamos dar apoio a ele, soou a voz da Prodígio Vermelha na mente de Berya e Dova. Mas logo Charya percebeu que não tinha ideia do que poderiam enfrentar; e que talvez estivessem caindo numa armadilha; mas a ordem já havia sido dada, e não queria parecer indecisa.
Dova sentiu o cheiro de baunilha que era característico quando Charya tocava sua mente, uma pontada de medo, mas materializou seu armadoxo com facilidade e marchou para a frente na ravina onde antes Azif e Euro haviam se embrenhado. O báculo em sua mão servia não só para desferir golpes, como ajudava a focar sua intuição. Que diferença de quando tinha a “espada de Charya”, percebeu Dova, o descontrole de suas emoções naquela ocasião era evidente quando comparado à estabilidade que o báculo lhe fornecia.
Percebeu também de imediato que “ele” era Euro e não Azif; e algo também lhe dizia que precisava correr, correr como Euro havia feito – ela não havia visto nem ouvido a investida do meio-neander, mais à frente, mas sabia o que havia acontecido com ele, o elo telepático entre todos estabelecido por Charya aumentava tremendamente a empatia e a ligação que sentia com os outros Prodígios. É como se eles fossem minha verdadeira família, pensou Dova, e logo se arrependeu, lembrando do avô e do irmão Manyu. As cenas de quando fez a “cópia” do irmão em pedacinhos a estavam assombrando desde que despertara do coma.
Tentou ignorar a recordação e acompanhou as outras pela ravina, já ouvindo a voz de Azif gritar em sua mente, ecoada pelos poderes de Charya: Aranha gigante, demônio do Ermo, fardo que devemos suportar, cicatriz monstruosa dos erros de uma era passada, eu te exorcizo em nome da Rainha Mercúrio, que o Grande Goog me dê sabedoria na batalha, aquilo era uma prece, um mantra proferido em desespero mas solenidade. O tom apavorou Dova e reconfortou Berya – era idêntico ao tom dos sacerdotes da Terra Castanha.
Na planície negra, a terra fofa pelo húmus não atrapalhou em nada o ímpeto de corrida de Euro em direção à aranha azul – corria poucos centímetros acima do solo, sem ser impedido por nada em seu caminho. Os últimos passos da investida na verdade foram se tornando um grande salto, e de um salto uma voadora direto no grande abdômen do monstro, que recuou ferido e assustado pelo brilho dourado do ataque – era como se estivesse distraído e fosse pego de surpresa.
Aranhas daath não costumam ser desatentas assim, pensou Azif ao contemplar a cena, não são símbolos da vigilância incansável? O Prodígio Negro não perdeu muito tempo pensando após completar sua prece, e impeliu seu corpo pelo espaço na direção dos dois combatentes, buscando ajudar Euro a não ser trucidado pelo contra-ataque da aranha. O impulso arremeteu Azif para a frente, distorcendo o espaço e jogando-o direto para a planície de húmus.
Foi então que ali, a cerca de dez metros de Euro, notou o que havia acontecido com seu meio-irmão: besouros e outros insetos dourados enxameavam sobre seu uniforme-paradoxo, e antes que a daath pudesse reagir, Euro vestia novamente placas douradas sobre o uniforme amarelo, formadas a partir dos minúsculos insetos que o paradoxo havia liberado. Novamente, como havia sido no sonho coletivo há tão pouco tempo. Só que agora era tudo real.
Daquele ponto de vista Azif não conseguia enxergar o terrível terceiro olho na testa do Prodígio Amarelo, mas sabia que ele podia estar ali encimando uma tiara dourada, e alterando o comportamento de Euro como havia feito no espaço mental de Charya. Sacou a cimitarra do uniforme, pronto para intervir contra o próprio irmão se fosse preciso, de novo – mas agora havia a gigantesca aranha prendendo a atenção do “herói da Terra Castanha”, então era melhor ajudá-lo a matar o demônio do Ermo antes que algo pior acontecesse.
Aproveitando o atordoamento da aranha daath, Euro ergueu as descomunais manoplas douradas que agora cobriam suas mãos, ajustou melhor sua posição em volta do monstro e, de mãos entrelaçadas, golpeou os muitos olhos da aranha, esmagando alguns no processo.
Aliviado, Azif notou que o terceiro olho estava lá na testa de Euro, mas fechado. Empunhando a cimitarra que lhe serve de armadoxo, o Prodígio Negro sentiu de repente a presença de Dova correndo pela ravina em sua direção, e numa intuição profunda arremessou a cimitarra, girando contra a aranha, como nunca havia feito antes. A armadoxo rodou pelo ar como um bumerangue, cortando afiada uma das pernas articuladas do monstro, mas não retornou às mãos do dono – ao invés disso, foi o dono que se rematerializou com a cimitarra assim que esta fez seu estrago, num teleporte ainda mais espetacular pelo fato de que Azif reapareceu portando a máscara de gás e a musculatura artificial que havia sido característica do sonho compartilhado dentro da mente de Charya.
Quando virou a cimitarra na mão para dar-lhe balanço, sentiu-a mais pesada: durante o arremesso ela havia de alguma forma aumentado de tamanho, estava mais para um alfanje que uma cimitarra curta – forçando Azif a empunhá-la com as duas mãos.
Berya era um pouco mais rápida que as outras duas Prodígios e foi a primeira a chegar onde a ravina desembocava na planície negra. Uma mistura de excitação e horror tomou a Prodígio Azul; sentia uma energia incomum percorrer todo o seu corpo da cabeça aos pés, deixando seus cabelos arrepiados. Estacou bem onde o caminho pedregoso da ravina dava lugar ao húmus preto da planície, já com sua espada curta na mão. Quando as outras duas chegaram notaram de imediato como os olhos de Berya haviam se enchido de um azul profundo e de uma determinação intensa – como se ela fosse soberana de si, de tudo e de todos à sua volta.
LEIA O EPISÓDIO ANTERIOR
BAIXE A COMPILAÇÃO DAS PRIMEIRAS FASES:
BAIXE A COMPILAÇÃO DAS PRIMEIRAS FASES:
E