sábado, 13 de novembro de 2010

ERA UMA VEZ

De Arthur Ferreira Jr.'.
Com meus agradecimentos devotos a Maria do Carmo Zanini, Stanley Kubrick, Malu Fontes e LADY



ERA UMA TERRA DESOLADA: e elas sentavam-se à beira de uma estrada que ainda não existia.

Uma tinha uma cara de coruja amassada; às vezes, um jacaré enrugado.  A outra era, talvez, menos feia, com um sorriso amargo e um nariz comprido, vermelhão quando fazia frio, azulado quando fazia calor.

Mas as duas velhas não sabiam muito bem o que era calor, nem frio.  Não sei se estavam acima disso de choques térmicos e outras invenções do dia moderno, mas naquele ermo primal, um sertão ainda não devastado pela seca, mostrando as cicatrizes do degelo, eram como antigas rainhas, basiliscos antropoides pouco afetados pelas vicissitudes do mundo.

Nas cavernas próximas, rabiscos rupestres ilustravam a sabedoria e o perigo representado por aquelas duas velhas.  As ancianas haviam subido a encosta com uma dificuldade que não era simulada nem real, e agora, naquele agora de há milênios, sentavam-se perto de uma encruzilhada que ainda não existia.

A gente ruiva, de sobrancelhas largas e bastas e olhar profundo, que vivia ali perto, aprendera a temer as duas figuras.  Mas uma criança desse povo conhecedor, que um dia os magos do dia moderno chamarão de Neanderthal, sentia outra coisa que não medo: a curiosidade.



Sua gente estava lentamente sendo dizimada pelas hordas do Povo Invasor, e o menino ruivo subia a encosta em busca das velhas.  Seu pai lhe havia advertido contra: a primeira velha era quase um bicho, que assombrava pesadelos e roubava almas das crianças; a segunda talvez fosse um pouco mais amigável, mas cruzava os céus num estranho cilindro de madeira de sândalo, e isso não podia ser natural, quase coisa do Povo Invasor.

Mas o pai, de nome Yahppeto, pouco podia dizer, mesmo tendo se juntado com uma estranha, Clymmen, da tribo que ensinava a gente ruiva a construir veículos que deslizavam sobre a água, para fugir do Povo Invasor.  A mãe de Eppimeth, no silêncio da noite, o mandou falar com as velhas que iam se sentar perto da encruzilhada que ainda não existia.

A encruzilhada ainda não existia, mas a criança podia quase enxergar o movimento pelo ar: era uma zona de espíritos que dançam, e as serpentes que zombam da humanidade escorregavam travessas pelo éter.  O pôr-do-sol se aproximava, e Eppimeth enxergou as duas bruxas a confabular na beira da estrada que ainda não existia.

Levantou-se Kokka, devoradora de crianças e sonhos, e apontou o dedo magro na direção de Epimeth: "Filho de Clymmen, irmão de Athhal, Mennoe e do Lucifuge, que queres aqui neste lugar bendito?"



Sentada ficou Yagga, mãe dos diabretes e dos coriscos do céu, e continuou calada.  Ao longe, um estranho animal pastava, um avestruz gigante de bico cheio de dentes, relíquia das eras ainda mais primevas.

Epimeth por um momento enxergou as duas velhas como se fossem uma grande serpente, daquelas que engolem mamutes vivos, e uma aranha, daquelas que parecem caminhar no ar ao andarilhar teias invisíveis.

"Quero acabar com a guerra," disse o menino.  Os olhos da criança traduziam um sofrimento estóico que iam além de seus anos.

"Apois!" murmurou a segunda velha, que ruminava pensamentos incertos.  "Menino cego.  A guerra é vida.  Se não fôsseis enganados pela guerra, seriam enganados pelo mato que cercaria tuas vilas tão pequenas."

"Mas," continuou a primeira velha, "ele foi direto, não tentou nos enganar com ilusões que seu medo e receio podiam suscitar."  Virou a cabeça torta na direção da velha sentada, que assentiu, meio contrariada.  "É assim mesmo, menino?" inquiriu a velha Yagga, "você quer uma saída para a guerra?"

"Sim," disse a criança ruiva de olhos arregalados.



"Eis tua saída," gritou a velha Kokka, e de repente o menino enxergou uma moça que vinha sozinha pelo caminho que ainda naõ existia.  Era uma bela moça, de compleição morena, cabelos negros e ondulados, olhos brilhantes como frutos úmidos, e pertencia ao Povo Invasor; mas ele não conseguiu notar a diferença, naquele instante lhe era ruiva como uma de sua espécie.

Um vislumbre do futuro, a terra castigada por uma raça de abutres e carniceiros vestindo a pele de homens, fumegando de veneno e calor causticante, causando um degelo ainda maior que aquele visto há pouco, quis se meter pelos olhos do rapaz; mas escolheu enxergar depois.  Ali, na sua frente, só havia o desejo por Pantadora.

As velhas haviam sumido como se nunca estivessem ali, e era verdade, nunca estiveram ali.  Como antes, só haviam duas figuras na beira da estrada a se encontrar: Epimeth e Pantadora, e daquele amor proibido nasceu uma raça que apesar de sua união entre tão diferentes, ainda gera cisão, guerra e morte; e daquele amor sincero e incompreendido por seus próprios filhos, nasceram todos os males do mundo.

As duas velhas que ainda caminham pelas estradas e encruzilhadas que já existem, rindo-se da tolice de seus netos humanos, que ainda hoje, faça sol ou faça chuva, faça guerra ou faça paz, as perseguem em memórias, sonhos e pesadelos.

11 comentários:

  1. IMAGENS E ILUSTRAÇÕES, FONTES E AUTORES

    1
    http://sagrado-feminino.blogspot.com/2010/09/baba-yaga-velha-mulher-de-saber.html

    2
    http://www.rdos.net/eng/asperger.htm

    3
    http://www.jangadabrasil.com.br/revista/galeria/ca70009f.asp

    4
    Foto da cantora Rihanna, Getty Imagens

    5
    http://blog.talkingphilosophy.com/?p=675

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  2. Ótimo texto. Mas acho que você deveria postar mais textos da sua autoria! ^^

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  3. Eu gostava mais do outro Layout.

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  4. Mas esse texto É DE MINHA AUTORIA.

    Talvez não tenha ficado claro que tudo que está sem o nome de autor é de Arthur Ferreira Jr.'.

    Vou corrigir isso, mas quem é que vc achava que era o autor, Géssica? As pessoas que eu agradeci? Stanley Kubrick? rs

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  5. É, agora ficou bom o Layout, mas não tanto quanto era antes.

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  6. O que é que atraía no segundo layout?

    A mãe dos monstros centralizada? O amarelão na fonte do texto?

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  7. Ô RAPÁ! SARAPATEL! PAGODE!

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  8. Haha... Desculpe-me... É que da forma como você estava colocando os "agradecimentos" pareciam os autores.
    Me corrijo agora então! Parabéns pelo texto! Ótimo e muito bem feito!

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  9. Fiquei honrada pelo agradecimento. É um ótimo conto, e mui belo!

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  10. Felipe Menassa Moeckel de Carvalho7 de março de 2012 às 13:48

    Bem... então o homem de neanderthal se extinguiu por ter se misturado com o Povo Invasor? Outra, o Povo Invasor seria o povo indo-europeu? Ou o homem de cro-magnon? De qualquer forma, estes (Indo-Europeus) chegariam apenas no terceiro milênio AC, então uma horda que invadia a Europa durante o fim dos magdalenianos...? =/

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  11. Embora eu tenha pesquisado sobre neanderthal antes de escrever isso, é mais uma narrativa fabulosa do que uma ficção científica hard.

    Aproveito pra repassar meus blogs atuais, já que não estou usando o gmail que controla este aqui... boa parte do material daqui foi transplantada pra este aqui, o Lançados ao Caos
    http://insanemission2.blogspot.com/
    Embora o material da "Saga dos Prodígios tenha ganho sua própria página:
    http://sagadosprodigios.blogspot.com/
    Por sinal a saga, embora fantasia pós-apocalíptica, inclui um meio-neanderthal entre seus protagonistas.
    O material de traduções foi colocado aqui
    http://dominiopublicano.blogspot.com/

    Querendo comentar também nesses endereços, agradeço!

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