segunda-feira, 13 de junho de 2011

NO PRINCÍPIO ERA O PARADOXO

Arthur Ferreira Jr.'. apresenta o Episódio Vinte da SAGA DOS PRODÍGIOS, o primeiro da terceira fase, TEOGONIA




AS CHAMAS DOMINAVAM O HORIZONTE E CHARYA pôde enxergar a Torre Vermelha, a Torre Azul, a prisão-elevada e outros edifícios da cidade serem consumidos por trás das muralhas. O que estou fazendo aqui? Deveria ter acordado junto com os outros.

        “Não se assuste, menina,” soou a voz vinda do topo de uma árvore solitária na pradaria onde Charya contemplava o incêndio. “Isto aqui são apenas os últimos instantes das suas próprias criações. No mundo desperto, apenas segundos de diferença.”

        “Minhas criações? E quem é você, afinal?” A mulher no topo da árvore segurava a cabeça do inimigo que os Prodígios haviam acabado de derrotar. Ela usava vestes sacerdotais leves, exibia a Marca da Mãe-Monstro no rosto e sorria condescendente. Charya lembrou-se que ela estava presente na batalha dentro de sua própria mente... e que não havia interferido.

        Pelo menos, não aparentemente.

        “Observe.” A mulher ficou em pé na árvore, sem precisar de nenhum apoio, e apontou para exércitos que atacavam a cidade em chamas. Logo a cidade se desfazia numa nuvem e consumia os soldados.

        A nuvem se aproximava das duas, paradas no meio do nada e da vegetação rasteira. A cabeça de Mordekai abriu os olhos e a boca, “Vai acontecer tudo de novo ou vocês serão diferentes?”

        Charya soube que aquilo era só o material que havia preenchido o espaço vazio de sua mente, dissolvendo, deixando o campo livre e branco para ser o que ela quisesse, se um dia ela aprendesse como dominar mais a própria mente. Mas mesmo assim entrou em quase pânico quando a nuvem se aproximou, milhares de milhões de fragmentos metálicos rodopiando pelo ar e turbilhonando num trovejar sem fim, formando figuras e vultos em meio à escuridão que sua sombra provocava.

        “Nada pessoal,” gritou a voz da mulher por sobre o rugido da nuvem, “se precisar conversar, me procure aqui.” E aquela massa de trevas e metal engolfou Charya, que pouco antes de perder os sentidos – ou seria melhor dizer acordar – enxergou a desconhecida e a cabeça que ela segurava desfazer-se em fragmentos de metal e cristal reluzente e juntar-se a milhões de vozes, trovões, imagens, ícones, figuras, rostos, cheiros de óleo e sal, éter e carne podre, medos, desejos, conhecimento e esquecimento concentrados numa nuvem viva.

        Nada pessoal, nada pessoal, Charya acordou com a frase pulsando e repetindo no fundo da mente.

***


E de fato a frase a perseguiu até mesmo no dia seguinte, quando os cinco Prodígios saíam para sua primeira missão.

        O Ermo da Condenação começava a diminuir seu caráter agreste – o que tornava claro que eles estavam se aproximando das fronteiras da Terra Castanha. Haviam atravessado uma boa faixa de lodo cheio de húmus – Dova percebia a presença nítida das trufas logo abaixo da primeira camada de sedimentos, mas não estavam ali para catar trufas.

        Paradoxalmente, pensou Dova, porque eu fui “contratada” pra isso, não? Resgatada da prisão-elevada pra farejar trufas do Ermo. E ao invés disso, vou andando no meio desse nada com mais quatro pessoas que vestem o mesmo traje vivo que eu. Um de cada cor. E seria tudo mais estranho se o Grão-Mestre não tivesse contado aquelas coisas na noite de ontem.

        Berya andava logo ao lado de Dova e comentou em voz baixa, “Insuportável, não é?”

        “O que é insuportável? Seu uniforme-paradoxo tá coçando ou algo assim? ”

        “Não,” a garota mais alta respondeu, “a umidade das trufas mexe comigo. Eu as sinto lá embaixo, vivas. Quero sair daqui logo.”

        “É só isso mesmo? Você não parece muito bem... desde que acordou notei em você um ar de cansada. Apesar de não te conhecer antes das duas batalhas... nelas você não tinha essa expressão. É difícil não ter como voltar pra casa de seus pais, não é?”

        “Not exactly,” Berya respondeu no dialeto antigo que aprendeu no harém dos Mordekai, “eu vi meu pai morrer duas vezes, e nas duas eu me vi responsável por tudo. Agora eu sei que o Alienígena estava me controlando, e que eu não tenho culpa; e sei que na segunda vez, aquela coisa tinha só a aparência de meu pai. Mas a questão é que eu nunca gostei de meu pai de verdade, e só percebo isso agora. Mesmo quando não sabia que ele me pôs condicionada, a vida inteira com uma coleira dentro da cabeça, eu já sabia que ele não prestava: só não podia reagir.”

        “Eu não me dava muito bem com minha família, também. Só meu avô me entendia direito. Mas sinto falta da fazenda na fronteira, da vida em família... mesmo que vários da família não me fossem muito simpáticos, sabe?”

        “Você era uma dalai tsu como os outros que foram mortos, Dova-zula? Sabe, meu pai não teve nada a ver com aquele massacre. Foram os ortodoxos que te capturaram.”


        “Muito bem, Prodígios,” interrompeu a voz de Charya, soando direto nas mentes de todos, “Azif deu sinal de que já enxerga a Torre Azul. Preparem-se, porque talvez a cidade esteja sofrendo um cerco e seja difícil passar pelos zelotes.”

        “Sabe que eu duvido disso, não é, Charya?” A mente da Prodígio Vermelha funcionava como uma estação repetidora, permitindo que todos os cinco conversassem se estivessem perto o suficiente dela. Azif era o batedor, mas estava próximo o bastante para conseguir entrar em contato e reclamar, “Da última vez que estive aqui, era uma guerra civil desorganizada, e ainda não deu tempo de tropas de outros nomos chegarem por aqui.”

        “De qualquer forma, vamos ter cautela. Euro, vai mais adiantado pra dar cobertura a Azif.”

        O meio-neander olhou para trás – para as duas garotas que estavam até poucos instantes conversando, e mais diretamente para Berya – e, virando a cabeça de volta, avançou marchando, aproveitando que o terreno não era mais lamacento.

        “Então você não se lembra mesmo de ter destruído ou não a tearcubadeira que seu pai montou, Berya? Eu posso ajudar você a lembrar, isso nos pouparia tempo. Porque se não destruiu, é quase certo que ela foi roubada da Torre Azul.”

        A Prodígio Azul respondeu em voz alta, fora do canal telepático: “Desculpe, Charya-zula, mas prefiro que ninguém mexa com minha cabeça agora. Pode dar mais trabalho assim, porém é mais seguro. Sério.”

        “Calma, foi só uma sugestão e não uma ordem.” Charya fechou o canal telepático e pensou consigo mesma, nem eu mesma tenho certeza se ia conseguir o que sugeri. Eu não consigo acessar minhas próprias memórias, afinal de contas. Mas não posso parecer fraca demais. O Grão-Mestre me colocou como líder de campo dos Prodígios, esta é a nossa primeira missão e eu quero fazer de tudo pra não decepcionar ninguém. Recuperar a tearcubadeira da Torre Azul. Tirar a capacidade de gerar uniformes-paradoxo das mãos de qualquer sacerdote da Terra Castanha – ortodoxo ou herege.

        Hum. Me irrita um pouco esse hábito dela de nos tratar formalmente. Zul, zula. Tratamento típico dado a gente de fora da própria Família, na Terra Castanha.

        Oh, uma nuvem de fumaça no horizonte. Incêndio na cidade...? Não foi justamente de um incêndio que o Grão-Mestre mencionou em sua história?

        Só coincidência, não pode ser um sinal...

***


DO RELATO DO GRÃO-MESTRE FÍDIAS BENDANTE:

        Numa era anterior, o mundo conhecido se dividia entre duas grandes potências, duas grandes nações, e havia uma grande máquina numa cidade – uma máquina que podia transportar as pessoas para qualquer lugar do mundo, muito além do que você pode fazer agora, Azif. Essa máquina não funcionava direito e era uma relíquia de eras ainda mais remotas; mas era cobiçada, por alguma razão, por pessoas da nação oposta à da cidade.

        Naquela época, a humanidade estava se recuperando de uma praga que causava o esquecimento – todos, ou quase todos, eram como Charya... e o retorno da capacidade de lembrar trouxe consigo poderes incríveis. Um potencial imenso caía nas mãos dos homens, prodígios que vocês mesmos podem realizar, prodígios que vocês SÃO.

        Os humanos da nação que impôs o cerco a essa cidade – vamos chamá-la de Shamballa, assim a chamam em certos registros antigos – tinham o Povo Neander como prisioneiro, e grandes guerreiros e guerreiras do povo foram lançados no esforço de guerra contra Shamballa. Entre estes haviam cinco, que são importantes nesta história que conto agora.

        Um homem dessa nação invasora dotara um esquadrão especial de cinco neander, três homens e duas mulheres, com os primeiros uniformes-paradoxos conhecidos. O que reza a lenda é que ele sabia o que estava fazendo: não criando uma arma de guerra para sua nação, Aggartha, mas libertando todo o Povo Neander. Depois de praticamente incinerar a cidade para tomar a máquina de teleporte, o esquadrão assumiu o controle de Shamballa e voltou-se contra Aggartha. Os líderes humanos das duas nações tinham grandes poderes como os de vocês, mas os uniformes ampliaram tremendamente as capacidades dos neander – não só do esquadrão como do Povo Neander inteiro.

        Apesar dos poderes novos descobertos e das incríveis armas do passado redescobertas, essa guerra só fez desfazer as duas nações em várias outras menores e gerar zonas arrasadas... como o Ermo da Condenação.

        Com o tempo, o Povo se refugiou nas cavernas subterrâneas que um dia fizeram parte do Império de Aggartha, e cada bebê nascido desde esta época era unido a um uniforme-paradoxo. Os paradoxos aceitavam – e aceitam – os  neander com muito mais facilidade do que um humano como eu. O Povo Neander e o Paradoxo tornaram-se uma só espécie. O Paradoxo estruturou a cultura, a tecnologia e até os ritos de acasalamento dos neander – enquanto em uma pessoa como eu, um uniforme se alimenta de certos fluidos vitais, de certas energias, que me impediriam de ter filhos... nos neander essa ligação é suspensa em determinadas épocas do ano, e na prática é como se eles entrassem num cio, acasalassem e voltassem ao normal estéril depois da concepção.

        Uma mulher do Povo, quando grávida, é afetada pelo uniforme-paradoxo que ela veste, e o bebê já nasce com uma semente do Paradoxo em si, que cresce com o tempo, ajustado a ele. Vocês viram um processo parecido acontecer em Dova, vindo do uniforme de Euro, só que muito mais acelerado. Como o próprio Euro não nasceu de uma neander e sim de uma humana-padrão... a mesma mulher que deu a luz a você, Azif, e a você, Berya... o meu filho adotivo aqui não foi preparado para o Paradoxo e correria risco de vida se tentasse se unir a um uniforme.

        O Incêndio de Shamballa marcou o fim de uma era e o início de outra. Os poderes incríveis foram amainando, encontrados cada vez mais apenas em certas linhagens, e as armas estupendas foram ocultas por governantes paranoicos, mantidas nas mãos das elites. Mas se o que foi passado de boca a boca na minha Família for certo, começamos agora uma nova era: a Era dos Prodígios.





LEIA O EPISÓDIO ANTERIOR
BAIXE A COMPILAÇÃO DAS PRIMEIRAS FASES:
E

2 comentários:

  1. IMAGENS E ILUSTRAÇÕES, FONTES E AUTORES

    Todas as cinco imagens, esboços dos cinco Prodígios, de Arthur Ferreira Jr.'.
    Na ordem, Charya, Dova, Berya, Euro e Azif.

    ***

    A história contada pelo Grão-Mestre Bendante tem ligação com a noveleta ENTRE UM APOCALIPSE E OUTRO; embora não seja imprescindível lê-la pra entender a trama da Saga, aí está o link do pdf:
    http://www.4shared.com/document/Js6LLv5q/ENTRE_UM_APOCALIPSE_E_OUTRO_2.html

    ResponderExcluir
  2. http://sagadosprodigios.blogspot.com/2011/09/no-principio-era-o-paradoxo.html

    ResponderExcluir